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Fala Val, “mulher, brasileira, lésbica e comunista”

Valdeni da Silva Sousa, a Val, 38 anos, é delegada por São Paulo na Conferência Nacional do PCdoB sobre a Questão da Mulher, aberta em Brasília nesta quinta-feira (29). Ela está decidida a trazer, para o debate com três centenas de delegados de todo o paí

Os trabalhos da Conferência ainda não começaram e Val acaba de ligar com o celular, de Brasília para sua cidade, Piracicaba. “Para falar com meu bem, saber como ela está”, explica, antes de falar ao Vermelho sobre sua proposta.



“Como os dedos de uma mão”



Em Piracicaba, a namorada de Val, Paula, enfermeira, 40 anos, três filhos, também militante comunista, está na torcida. Sua companheira – vivem juntas há três anos, “muio felizes” – se prepara para um gesto provavelmente inédito, pelo menos no âmbito de Conferência Nacional, o segundo fórum mais elevado do Partido, depois do Congresso.



“Existem várias bandeiras dentro do Partido, como os dedos de uma mão. Eu vou levantar mais um desafio, a questão da mulher lésbica”, explica ela. Em outras vezes, usa o termo da gíria GLBT, “entendida”. Mas enfrenta a questão sempre de frente: “Eu não vejo as pessoas dizendo 'eu sou lésbica'… Porque eu sou. Eu sou lésbica”.



Na etapa estadual paulista da Conferência, Val bateu nesta mesma tecla e despertou o aplauso dos cerca de 400 militantes presentes. Pela justeza da proposta, e a solidez dos argumentos, foi escalada entre as delegadas de São Paulo à Conferência Nacional.



Júlia Roland, dirigente estadual do PCdoB-SP, conta que houve quem perguntasse: “Mas a Val? Por que a Val?”. E Júlia: “Por isso mesmo que você está pensando”.



O preconceito dentro do PCdoB



Na Conferência Nacional,  ela está decidida a colocar o tema em pauta. “Eu pretendo levantar esta bandeira neste Congresso. Precisa ficar bem claro que o PCdoB está no movimento. E quero colocar também a questão do preconceito dentro do próprio PCdoB. O Partido é contra o preconceito? É. Mas… E você? É contra ou não é?”
Para Val, o preconceito é sempre “um osso bem duro”. Mas ela garante que “os meus caninos são fortes”.



Val comenta com a mesma franqueza e sem-cerimônia os ecos de sua eleição como delegada à Conferência. “Teve uns companheiros que não gostaram. Mas eu penso assim: se alguém tiver alguma coisa para falar de nós, mulheres entendidas, fale comigo, não pelos corredores.”



Da fábrica ao Sindicato e ao Partido



Valdeni da Silva Sousa entrou no PCdoB pela porta do movimento sindical. Foi a primeira mulher (e o primeiro funcionário com carteira assinada) a trabalhar numa pequena empresa química de Piracicaba, que mexe com tintas e vernizes, produtos tóxicos, voláteis e inflamáveis. “Se acender um isqueiro, não dá nem para correr”.
Na fábrica, conheceu o Sindicato dos Químicos de Americana e Região, em 2003. Desta fase, guarda na memória uma frase de uma assessora sindical, Solange: “Val, até quando você vai ser burro de carga?”.



Não demorou. Val descobriu a Cipa e elegeu-se cipeira, entre seis candidatos, com 82% dos votos. Conseguiu que a empresa passasse por fiscalização. Sindicalizou, puxou greve por salário, almoço (antes o sistema era a marmita) e contra as jornadas excessivas, enfrentou tentativas de suborno e ameaças. “Quando eu dei por mim eu era diretora do Sindicato”.



Pouco depois do Sindicato, Val conheceu o PCdoB, na porta da fábrica, durante uma distribuição do jornal do Partido, A Classe Operária. Disse: “Eu quero entrar nesse negócio, acho importante”. Procurou o PCdoB em Piracicaba, mas não havia ficha de filiação. Foi até Americana, a 40 km, e filiou-se. “Este Partido tem uma história muito linda, que me cativou”.



“Não queria ser outra pessoa”



Val trouxe para a militância sindical e comunista a condição e o orgulho de ser entendida, uma coisa que para ela vem de sempre. “Quem é lésbica, já nasce assim. Só que às vezes demora a se revelar”, afirma.



No caso dela, não demorou. Desde a infância em Dourados (MS), “eu tinha certeza quen eu ia gostar de mulher”, conta. Aos 17 anos de idade, reuniu os pais e contou: “Aquilo que vocês pensam que eu sou, eu sou mesmo”. A famiília aceitou. “As minhas namoradas foram sempre bem recebidas”, conta. “Estou muito tranqüila. Não queria ser outra pessoa”.



Os namoros de Val costumam ser estáveis e com coabitação. “Não temos problemas com a vizinhança”, conta ela. E nem na diretoria do Sindicato, onde hoje ela é responsável pela subsede de Piracicaba. Na diretoria da entidade, os jovens são os mais predispostos a encarar a sindicalista entendida com naturalidade. Já entre os de mais idade, “uns me respeitam, conversam comigo, mas se entra esse assunto meio que saem de lado, com um risinho amarelo”, conta ela.



Um ônibus para o Orgulho Gay



A sindicalista criou uma ponte entre o Sindicato dos Químicos e o movimento GLBT de sua cidade. Ela admite que Piracicaba, 370 mil habitantes, a 160 km da capital paulista, “nessa parte é conservadora”. Mas todo ano, em julho, sai um ônibus da cidade, custeado pelo Sindicato, para participar da Parada do Orgulho Gay em São Paulo.



A Parada de São Paulo é tida atualmente como a maior de suas congêneres espalhadas pelo mundo, e um grande acontecimento do calendário fixo de manifestações de massas na cidade: apenas o 1º de maio compete com ela.



Quem vai no ônibus de Piracicaba que Val organiza? “Vai mulher, vai homem, homem de bigode na cara, pai, avô, mas quando chega lá ele solta a franga, 'Uhu, uhu, uhu!'.”



É esta causa que Val quer ver o PCdoB abraçar por inteiro. “Eu não vim para cá à toa, vim para cá com a missão de erguer esta bandeiraa”, afirma. Ela vive a vida obedecendo a um lema pessoal: “Junto com a coragem, a vontade”. Está esbanjando tanto uma como a outra ao lançar o seu desafio. E termina anunciando: “Quem quiser me procurar, pode vir falar comigo”.



De Brasília,
Bernardo Joffily