Nelson Rodrigues e a histórica estréia de 'Vestido de Noiva'

Hoje (27) é Dia Internacional do Teatro. Para homenagear a ocasião, a revista Cult resgatou reportagem especial publicada em dezembro de 2006 sobre o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues. O texto, assinado por Fernando Marques, conta como a

Momento de decisão


 


Por Fernando Marques *


 


O primeiro e mais claro sinal de que, na noite de 28 de dezembro de 1943, já se adivinhava que algo inusitado estava por vir terá sido o número de espectadores presentes ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro: 2.205 pessoas lotavam a sala. Intelectuais como Manuel Bandeira haviam emprestado prestígio à peça em cartaz – em fevereiro, o poeta escrevera artigo elogioso sobre o texto. Cercado de cochichos e palpites, estreava Vestido de Noiva, a segunda peça do ainda obscuro Nelson Rodrigues, jornalista de 31 anos.


 


Os amadores da companhia Os Comediantes formavam o elenco, dirigido pelo profissional e exigentíssimo Ziembinski, polonês chegado ao país dois anos e meio antes. Por volta das 21h30, um dos membros do grupo veio à cena ler breve explicação, redigida pelo dramaturgo, a respeito do que se ia ver. E o espetáculo começava: ''Buzina de automóvel. Rumor de derrapagem violenta. Som de vidraças partidas. Silêncio. Assistência. Silêncio.''


 


O primeiro dos três atos transcorreu diante de uma platéia perplexa – houve poucas palmas ao final. O autor mantinha-se ''escondido no camarote, transido de timidez, numa expectativa dilacerante'', recorda o jornalista Augusto Rodrigues, 85 anos, irmão de Nelson. Este temia que o público não entendesse nada. Terminado o segundo ato, os aplausos foram ainda mais escassos.


 


Mas, ao final do espetáculo, após uma pausa que a Nelson deve ter parecido interminável, ''explodiram as palmas em todo o teatro. Foi uma unanimidade'', diz Augusto, testemunha da noite de estréia. Amigos ou vagos conhecidos exigiam ''o autor, o autor!''. Nos dias seguintes, as críticas iriam chamar Vestido de Noiva, ''no mínimo, de obra-prima'', lembra o jornalista.


 


Três planos


 


Surgida há exatos 60 anos, a peça tornou Nelson Rodrigues famoso da noite para o dia, ao menos nos meios literários (a popularidade irrestrita viria mais tarde). O enredo inovador reparte-se em três planos: realidade, memória e alucinação. A personagem principal, Alaíde, originária da alta classe média carioca, foi atropelada e, no hospital, em estado de choque, relembra momentos de seus 25 anos de vida, misturando-os ao puro delírio.


 


A memória dos embates travados com a irmã Lúcia, sua rival no amor de Pedro – o homem com quem Alaíde se casou -, e as fantasias alimentadas a partir da leitura do diário de madame Clessi, prostituta elegante morta em 1905, constituem o argumento, sem dúvida folhetinesco. Lembranças e alucinações se materializam fragmentariamente sobre a cena, enquanto, no plano da realidade, a moça agoniza na mesa de operações.


 


As cenas de Vestido de Noiva correspondem sobretudo ao que se passa na mente de Alaíde, em estrutura radicalmente nova para 1943. No Brasil sob a tutela de Vargas pontificavam as peças frívolas, registra Augusto Rodrigues; espetáculos que raramente se aventuravam para além do realismo da sala de visitas.


 


Augusto afirma ter acreditado desde sempre no sucesso da peça, por considerar Nelson ''um gênio'' e porque o dramaturgo pôde reunir ''uma equipe extraordinária'' – que se esfalfou em oito meses de ensaios, outra prática inédita na época.


 


A permanência da peça


 


Ziembinski, com ''a variedade das luzes empregadas'', e o cenógrafo Tomás Santa Rosa, que deu forma física às indicações do autor nos célebres arcos em que se distribuíram realidade, memória e delírio, foram colaboradores fundamentais para o êxito da peça. Vestido de Noiva assinalou o nascimento do teatro brasileiro moderno, tendo sido episódio decisivo para a revolução que se vinha delineando desde o final dos anos 30.


 


A importância histórica da peça está acima de qualquer polêmica. Pode-se perguntar, porém: e a sua vigência estética? O diretor Luiz Arthur Nunes levou diversos textos de Nelson Rodrigues à cena, inclusive Vestido de Noiva, em 1993, nos 50 anos da peça. Ele não tem dúvidas quanto à permanência do texto e diz que as montagens presentes e futuras devem eximir-se, tranqüilamente, de ''preocupações museológicas''.


 


Luiz Arthur ressalva apenas que, já na montagem feita há dez anos, pôde dispensar a separação estrita, espacialmente definida, dos três planos. No espetáculo de estréia, Ziembinski e Santa Rosa precisavam utilizá-la ''para que o público pudesse acompanhar a história'', um tanto quanto ''estilhaçada''. ''Hoje, o público está preparado para acompanhar o enredo sem essa ajuda tão explícita. Até porque os planos, afinal, se confundem'', diz o diretor.
 
Um dos exemplos nesse sentido encontra-se na cena em que Alaíde, Lúcia e Pedro se reúnem diante de uma cruz, símbolo ambíguo de amor e morte, quando as duas moças usam vestidos de noiva. A mãe das meninas, dona Lígia, aparece, dando ensejo a uma prosaica cena de família, mas temperada por elementos supra-realistas (Nelson indica estarmos no plano da alucinação). Memória e delírio superpõem-se aqui.


 


Outro exemplo, ainda mais incisivo, é o da cena final. Alaíde, já morta, vem entregar o buquê à irmã, que nesse instante se casa com o viúvo Pedro. Nelson ''abandona o recurso narrativo'' utilizado em quase toda a trama – o de mostrar o que se passa na cabeça de Alaíde – para projetar o que terá ocorrido tempos depois de sua morte, quando a personagem comparece ao palco na condição de ''poético fantasma'', define Luiz Arthur.


 


Ao mesmo tempo em que certas dificuldades se esclarecem (a misteriosa mulher de véu, vai-se saber no segundo ato, é Lúcia; Alaíde não matou o marido Pedro, apenas sonhou tê-lo feito), novos desafios são propostos ao público à medida que a história avança.


 


Diferentes encenações


 


Outros diretores ocuparam-se de Vestido de Noiva. O próprio Ziembinski voltou a ele em 1976. Márcio Aurélio, Eduardo Tolentino, Adriano e Fernando Guimarães foram alguns dos encenadores que, a partir dos anos 80, também enfrentaram a peça que Nelson considerava (com peculiar autocrítica) o seu soneto perfeito.


 


O texto alinha-se entre as peças psicológicas, uma das três fases em que se divide a obra do dramaturgo. As demais correspondem às peças míticas e as tragédias cariocas.


 


Se Nelson Rodrigues encontrou todo tipo de lisonjas com sua segunda peça, a terceira, Álbum de Família, o faria deparar-se com o fracasso – ainda que fracasso ruidoso, altamente promocional. Ele próprio diria: ''Vestido de Noiva teve o tipo de sucesso que cretiniza um autor. Parti para Álbum de Família, que é um anti-Vestido de Noiva. (…) Teatro não tem que ser bombom com licor.''


 


Crivado de incestos e assassinatos, o Álbum foi submetido à censura no início de 1946 – e proibido para o palco, embora liberado para sair em livro. A peça foi publicada em meados daquele ano, ao lado de Vestido de Noiva. Acompanhava-as prefácio escrito por Prudente de Morais Neto, que naturalmente defendia o Álbum das acusações de imoralidade.


 


Essa parece ter sido a deixa para o influente Álvaro Lins, que elogiara o Vestido, desancar Álbum de família. O crítico, ''dengoso do estilo'', como o chamou Nelson, mostrou-se perdulário nos sinônimos para negar valor ao texto, embora desaprovando qualquer espécie de censura: a peça de Nelson, dizia Lins referindo-se aos aspectos literários, ''soçobra num mar de enganos, equívocos, erros, atrapalhações e insuficiências''.


 


Seu principal argumento: a tragédia, gênero a que Nelson filiou o texto, exige que os episódios que a deflagram sejam excepcionais, únicos, tendo, por isso, força bastante para arrastar suas personagens à queda. Assim, em Édipo Rei, o protagonista comete um assassinato (mata o pai, sem o saber) e um incesto (casa-se com a mãe, também na ignorância do que fazia).


 


No Álbum, diferentemente do que se passa no clássico grego, o que há são vários incestos e vários assassinatos, conduzindo a história, afirmava o ferino Álvaro Lins, a cair no ''abundoso numérico''.


 


Ruy Castro


 


A polêmica em torno da peça espalhou-se pelos jornais e está relatada em O Anjo Pornográfico, biografia de Nelson escrita por Ruy Castro – que considera Álbum de Família mais importante que Vestido. Ruy, nesse ponto, ecoa opinião de Paulo Francis (sem os exageros de Francis) que, em artigo de 1980, afirmava ser ''um erro cultural grave'' privilegiarmos as formas redondas do Vestido preterindo a morbidez diabólica do Álbum.


 


Há outras peças de Nelson mais significativas que Vestido, segundo Ruy, como seria o caso de Senhora dos afogados ou de Beijo no asfalto. Mas o biógrafo ressalva: ''A melhor peça de Nelson, para mim, é a que estou lendo ou à que estou assistindo. Gosto de todas'', declara.


 


Nelson participou da polêmica a respeito de Álbum de Família com artigos que procuravam desqualificar, pelo humor, a autoridade de Álvaro Lins – artigos assinados não pelo próprio dramaturgo, mas por amigos. A sério, ele voltaria ao tema em depoimento de 1949, dado à revista Dyonisos, argumentando ter visado a ''um resultado emocional pelo acúmulo, pela abundância, pela massa de elementos''.


 


O argumento vale também para as demais peças do ciclo mítico – Anjo Negro, Senhora dos Afogados e Dorotéia -, nas quais as relações humanas são flagradas nas suas fontes arquetípicas.


 


A terceira fase da dramaturgia rodrigueana, conforme a divisão operada pelo organizador do Teatro Completo, Sábato Magaldi, é a das tragédias cariocas, inauguradas em 1953 com a genial A Falecida. A peça foi influenciada pelo sucesso dos contos de A Vida como ela É…, coluna que Nelson vinha publicando desde 1951 no jornal Última Hora.


 


As quatro peças míticas, entre elas Álbum de Família e Senhora dos Afogados, tinham tido destino bastante problemático na segunda metade dos anos 40. Nelson, em 1951, era um dramaturgo enjeitado – sorte irônica para quem colecionara elogios em 1943. A divulgação dos contos de A Vida como ela É…, marcados por golpes melodramáticos e lances cômicos, redirecionaria o seu teatro, que emergiu dos temas míticos para o cotidiano da zona norte carioca, sem abandonar, no entanto, os temas recorrentes de amor e morte.


 


17 ou 18 peças?


 


Certa dança de convenções torna singulares as tragédias cariocas: cenas melodramáticas esvaziam-se com o recurso ao humor, assim como passagens cômicas freqüentemente se exasperam ao contato de elementos mórbidos. O processo pode-se chamar de comicidade da desilusão – situações moralmente insustentáveis enervam o tom de farsa ou, ao contrário, a comicidade desmoraliza os temas graves, como ocorre na A falecida. Dez anos depois de o Vestido, a história de Zulmira iria indicar rumos novos a essa dramaturgia.


 


Sábato Magaldi considera Vestido de Noiva texto perene, um clássico a que vamos voltar como voltamos a gregos ou a Molière. Não só a engenhosidade dos planos continua válida, como ''a riqueza psicológica das personagens'', diz o crítico. Ele situa a peça entre as melhores de Nelson, ao lado de Senhora dos Afogados e de Toda Nudez Será Castigada – esta, uma das oito tragédias cariocas, a última e a mais numerosa das fases em que se reparte a obra.


 


As peças são, ao todo, 17 – e, entre elas, você não irá encontrar um texto chamado A Estrela do Mar. Mas, na página 328 do livro Cem Anos de Teatro em São Paulo, de Sábato Magaldi e Maria Thereza Vargas (Senac, 2000), lê-se:


 



Em 1951, ''o Departamento de Cultura da prefeitura instituiu um prêmio para teatro, ao qual concorreram trinta e uma peças, julgadas por José Geraldo Vieira, Francisco Luís de Almeida Sales e Ruggero Jacobbi. Abílio Pereira de Almeida obteve o primeiro lugar com Moinho de Ouro; Nelson Rodrigues e Helena Silveira o segundo, respectivamente com A Estrela do Mar e A Torre; e A. C. Carvalho, o terceiro, com O Céu num Dilema''.


 


Sábato Magaldi, Ruy Castro, Luiz Arthur Nunes e Augusto Rodrigues não têm notícia de A Estrela do Mar, suposta peça perdida – aliás, desconhecida – de Nelson. É provável que se trate de Senhora dos Afogados com o título trocado, arrisca Ruy. Sábato prefere ''não conjecturar no vazio'' – não há outras informações.


 


Maria Thereza Vargas também aposta em Senhora dos Afogados renomeada. Pois é: se a peça existe, o Teatro Completo sobe a 18 textos. No aniversário de Vestido de Noiva, cabe perguntar, mesmo que por mera curiosidade: onde andará A Estrela do Mar?


 


* Fernando Marques é jornalista e mestre em Literatura Brasileira pela UNB