Ânsias restauradoras do papa fazem mal a uma frágil Europa

Por Rina Gagliardi, no Liberazione*
Cláudio Flávio Juliano, o imperador romano entre 361 e 363 depois de Cristo, passou à história como “Juliano o Apóstata” porque, apesar dos poicos anos de seu reinado, tentou retomar os cultos pagãos. Na ver

Ora, dirigindo-se aos bispos da União Européia, o papa Ratzinger restaura essa ameaçadora sentença condenatória, agora não contra uma pessoa e sim contra um continente inteiro. A Europa, segundo Bento XVI, está maculando-se com o pecado de “apostasia” – do cristianismo, de Deus, de si própria, isto é, de suas raízes históricas, morais e espirituais.



Tolerância zero para com os apóstatas



Mais ainda: se a atual tendência demográfica continuar, afirma o pontífice, a Europa corre o risco de “despedir-se da história”. Está a perigo de simplesmente desaparecer, seja assoberbada por “novos bárbaros” islâmicos, seja porque oTodo-Poderoso decida puni-la e precipitá-la no nada.



Estamos talvez face à tolerância zero para com os apóstatas. Para eles, no mínimo, o inferno.



Esse papa não cessa de surpreender com seus ataques, sempre rigorosamente voltados para trás. Não contente em ter devolvido a Igreja Católica aos tempos do 1º Concílio do Vaticano (que em 1870 estabeleceu o dogma da infalibilidade papal), agora a referência privilegiada é ao século 4 dC, quando Constantino proclamou o cristianismo religião oficial do Império Romano e Teodósio a tornou obrigatória.
Passaram-se 17 séculos, uma ninharia para a Igreja de Roma e para o seu soberano. Este insiste na sua cruzada teológica: os valores do cristianismo coincidem, tout court, com aqueles da humanidade e da civilização; portanto, são “absolutos”, indiscutíveis, inecogiáveis. Assim, é lógico que a religião avoque a si nada mais, nada menos que o controle da Natureza (dos corpos das mulheres).



Planos de um partido europeu católico



Porém o papa sabe (ou deveria saber) que já perdeu a batalha para inserir no tratado constitucional europeu as famosas “raízes judaico-cristãs”.



Mas Bento XVI trata de se reaproximar daquela parte da cultura liberal (Croce, Chabod) que afirmou, seja a impossibilidade de “não se dizer cristão”, seja um vínculo constitutinte entre a idéia de Europa e a religião cristã. O objetivo estratégico, ainda que possa parecer uma veleidade irrealista, é o renascimento, ou mais propriamente o nascimento, de um “partido católico” (clerical) capaz de agir em escala européia, no espaço público europeu, como uma pequena porém possante falange – na Itália já se deu os primeiros passos, até com certo sucesso; processos análogos poderiam entrar em ação na Espanha, na Alemanha, em algumas partes do Leste. Um “Teodem” auropeu poderia por fim satisfazer as ênsias restauradores de Bento XVI, num quadro de crescente debilidade da política e de crise da própria constituição européia.



Sempre uma proposta “forte”



Por estes motivos de fundo, os comunicados do papa contêm um risco que não deve ser menosprezado: por intervirem numa situação de dramática virada da política, de sua idealização, de sua capacidade de falar do futuro. Pois é verdade que a Europa por nascer corre o risco também de não nascer, enquanto capacidade de se reconhecer como comunidade de povos, modelo de civilização, cultura viva de solidariedade e acolhimento, subjetividade autônoma. E portanto corre o risco não só de ser percebida como uma entidade distante e abstrata, mas de carecer de identidade, de raízes e futuro.



É verdade que a crise de coesão social dispara, e tira sentido ao próprio “estado do mundo”. E é verdade que está crescendo com força (inclusive nas filas da esquerda) a tentação de fugir da política, abandonando toda confiança na possibilidade de mudar a realidade e tudo delegando à ética – aos valores “inegociáveis”, à esfera da consciência individual, à dimensão que não conhece avanços nem “compromissos”.
Aqui a Igreja anticonciliar de Ratzinger e Ruinie Bagnasco mostra suas armas, promessas, miragens. Nesse mundo onde é preciso ir à guerra, por falta de água e comida ou por enferma histeria contra um vizinho, nesta Europa que, a exatos cinquenta anos de sua solene fundação, resvala para o nada, nesta Itália onde o cansaço de viver, e de mudar nem que seja um milímetro do que existe, com frequência se torna insuportável, as violentas “verdades” de Bento XVI são sempre uma proposta “forte”. A proposta de cortar o nó górdido, renunciando à modernidade e à laicidade, restituindo à autoridade ecleseástica a gestão da mente e do corpo, resisgnando-se a arquivar por um tempo indefinido qualquer aspiração à liberdade e à libertação. Quando dizemos que a barbárie é imposta como se fosse um êxito concreto da humanidade, não é disso que falamos?



* Diário italiano comunista; fonte: http://www.liberazione.it; intertítulos do Vermelho