Arte na guerra: Palestina abre espaços para artes plásticas

Em 2006, a galeria Al-Hoash, um embrião do futuro Museu Nacional de Arte Contemporânea Palestina, foi inaugurada no coração da Jerusalém árabe.
Por Benjamin Barthe, do Le Monde Diplomatique

Tudo começou numa noite do verão de 2004, por ocasião de um jantar oferecido por Mazen Qupty, um advogado renomado de Jerusalém Leste, que possui a mais vasta coleção de arte palestina do mundo. A singular beleza dos quadros dependurados nas paredes da sua sala de estar entusiasma os seus convidados, todos eles diplomatas estrangeiros.



Há um ramalhete de flores à moda impressionista, uma cena folclórica impregnada de uma luz alaranjada, um vasto xadrez de colagens e de cores, alguns nus estilizados e, ao lado da mesa da sala de jantar, uma fantasmagoria que traz um garoto brincando com um balanço, numa cena cercada por representações de mulheres.



Ao serem informados que essas obras constituem apenas uma amostragem da coleção, que inclui mais de 160 quadros, os convidados se dizem espantados com o fato de o seu anfitrião ainda não ter tido a idéia de montar um museu. “Eu lhes respondi imediatamente que aquilo era um sonho, um belo de um sonho, porém um sonho irrealizável”, conta Mazen Qupty, um elegante quinqüagenário que conquistou fama e fortuna defendendo os interesses das Igrejas cristãs em Terra Santa. “No contexto atual, os palestinos têm muitas outras prioridades que passam antes das artes”, acrescenta.



O argumento não convenceu ninguém, nem mesmo o seu autor. Alguns meses mais tarde, Mazen Qupty reuniu cerca de vinte artistas e homens de negócios palestinos interessados em encarar o desafio e, na primavera de 2006, a galeria Al-Hoash, um embrião do futuro Museu Nacional de Arte Contemporânea Palestina, foi inaugurada no coração da Jerusalém árabe. “Tudo começa como um sonho”, comenta o advogado, sorrindo. Ele foi naturalmente nomeado diretor do conselho de administração.



Sem demora, diversas atividades foram organizadas: vernissages, retrospectivas, oficinas, visitas organizadas para alunos de escolas ou donas de casa do bairro… Em poucos meses, a galeria confirmou suas promessas: Ela dinamizou a cena artística palestina e proporcionou um alento a uma comunidade carente de identidade, por causa do muro que a deixa isolada da Cisjordânia e do fechamento pelas autoridades israelenses da Casa do Oriente, a sede não oficial da Autoridade palestina em Jerusalém.



“Em árabe, Al-Hoash designa o pátio interno das casas”, explica a conservadora, Salwa Mikdadi, que participou do lançamento do projeto com o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e do Museu nacional de arte norueguês. “É um espaço tradicional no qual a família recebe os convidados. A escolha deste termo é intencional. Nós queremos criar um centro artístico que satisfaça não os desejos da elite, e sim as necessidades da comunidade”.



Mas, os fundadores têm outros objetivos em mente. Para eles, o local e o nome da galeria são temporários. Mazen Qupty e as personalidades que o apóiam nessa aventura, tais como Zahi Khouri e Mounib Al-Masri, dois dos empreendedores os mais ricos dos territórios, já estão trabalhando na preparação da etapa seguinte: a construção de um verdadeiro museu, para o qual Mazen Qupty se comprometeu desde já a ceder a sua coleção.



“É um objetivo essencial, este de juntar o nosso patrimônio e de mostrar o que nós sabemos fazer”, diz o benfeitor dos artistas palestinos. “Os Estados Unidos e Israel conseguiram convencer o mundo de que nós somos terroristas. Mas tudo o que nós queremos é ser vistos como seres humanos, e a arte, nesta perspectiva, exerce um papel de marca maior”.



O projeto, que poderia tomar a forma de uma aldeia, e que comportará oficinas e residências de artistas, está orçado em cerca de US$ 20 milhões (R$ 42,93 milhões). “Se for comparada com os US$ 400 milhões [R$ 858,64 milhões] que irá custar o Museu Guggenheim em Abu Dabi [Emirados Árabes Unidos], a nossa ambição parece bastante modesta, mas, na escala da Palestina, trata-se de um imenso canteiro de obras”, diz Mazen Qupty.



Um dos principais obstáculos é a carência de profissionais qualificados. Isso se deve ao fato de as autoridades militares israelenses terem impedido até o final dos anos 1980 o ensino das belas-artes nas universidades palestinas. “Essa estratégia tinha um objetivo similar àquele de banir o uso da bandeira palestina ou de impedir a venda de certos livros”, conta Rime Fadda, a diretora da Associação Palestina pela Arte Contemporânea. “Tratava-se, e, numa certa medida, trata-se até hoje, de impedir toda forma de expressão identitária coletiva”.



Muitos artistas que cresceram no decorrer dos anos 1970 e 80 se formaram por conta própria, de modo pragmático. É o caso de Khaled Hourani, que se tornou aos 41 anos um dos artistas plásticos palestinos que mais se destacam na atualidade. Em contrapartida, outros dos seus colegas, por terem obtido uma bolsa ou porque a sua família fora expulsa da Palestina em 1948, estudaram no exterior. É o caso do pintor Samir Salameh, de 62 anos, que foi aluna da escola das Belas-Artes em Paris.



Atualmente, graças ao apoio dos consulados estrangeiros, essa chance é oferecida a um número crescente de jovens talentos, tais como Jawad Al-Malhi, um autodidata que se mudou para Londres em busca de aperfeiçoamento. Se comparados com os seus vizinhos jordanianos, os artistas palestinos dão mostras de uma fecundidade rara, que cada vez mais vem abrindo espaços na cena internacional, entre outros nos campos da fotografia e do vídeo. Este é o caso da jovem fotógrafa Emily Jacir, que divide o seu tempo entre Ramalá, na Cisjordânia, e Nova York.



Contudo, a camisa-de-força da ocupação, mais rígida do que nunca desde o início da Intifada, segue dificultando um grande número de vocações. “Por causa do fechamento das passagens em volta da faixa de Gaza, tornou-se impossível trazer para cá os criadores que vivem naquela área, para participarem de oficinas que nós organizamos na Cisjordânia”, diz Rime Fadda. “Recentemente, um jovem artista de Ramalá que havia obtido uma bolsa para estudar no exterior foi impedido de deixar o país pelo exército israelense”.



Catherine David, uma conservadora francesa, membro do júri do concurso do melhor jovem artista do ano, que foi organizado no final de 2006 pela Fundação Qattan de Ramalá, constata que essa situação tem efeitos negativos sobre a produção. “Nós constatamos uma tendência dos criadores a se recolherem em si mesmos. Muitas das obras são da ordem da compulsão pessoal, ao passo que o trabalho consiste justamente a tomar certa distância em relação ao mundo e ao material utilizado”.



A sua colega Salwa Mikdadi, por sua vez, mostra-se mais otimista: “Apesar da situação, o meio artístico palestino esbanja energia. É como uma bola que você tenta esmagar e que acaba saltando todas as vezes para o alto”.



Para proteger e incentivar este foco de criação, o onipresente Mazen Qupty e seus cúmplices fundaram uma Academia de artes em Ramalá, que deverá proporcionar já neste ano uma formação relativa às técnicas de criação contemporâneas. Esta se define como uma ruptura em relação ao academismo que vem sendo ensinado há dez anos nas faculdades de Nablus e de Gaza.



Uma parte dos funcionários do futuro museu foi enviada para o exterior, com o objetivo de se familiarizar com os métodos modernos de gestão e de preservação do patrimônio artístico. A abertura do museu está prevista para ocorrer dentro de dez anos.



Para tanto, nós esperamos, explica Mazen Qupty, que “as autoridades israelenses consentirão a emitir uma autorização para construir”. Ou ainda, que nessa data, no que seria um sonho acalentado entre todos, Jerusalém Leste não será mais ocupada.



Uma empreitada de salvamento
Reconstituir um patrimônio em migalhas. Esta é a grande façanha do colecionador palestino Mazen Qupty. Do período que precedeu o ano de 1948, resta muito pouca coisa. A quase totalidade dos quadros dos primeiros pintores palestinos, realizados durante os anos 1920-1940, foi destruída por ocasião do êxodo forçado de 700.000 árabes da Palestina.



“Na maioria dos casos, esses precursores eram jovens cristãos, formados na arte do ícone por especialistas russos, e que optaram pela pintura sobre tela”, conta Mazen Qupty. “Na época, as suas criações não interessavam a ninguém, a não ser à elite cristã. Quando essas famílias tiveram de fugir, a maioria não teve condições para levar consigo as pinturas”.



Conversando com amigos e conhecidos e visitando as dependências das belas residências de Jerusalém, Mazen Qupty conseguiu salvar uma série de óleos sobre tela assinados por dois pioneiros, Sophie Halaby e Tawfik Jawhariya, e que foram menosprezados pelos seus herdeiros. “Seria vão imaginar que nós possamos encontrar tudo o que foi perdido ou roubado”, diz Salwa Mikdadi, um curador de exposição. “Mas é importante procurar conservar e manter a memória do nosso patrimônio”.



Durante os anos 1950 e 1960, quase todos os criadores, na sua maioria, traumatizados, pararam de trabalhar. Uma nova geração acabou surgindo no final dos anos 1970, liderada por Slimane Mansour, célebre pelas suas composições à base de lama seca, e pelo pintor abstrato e francófilo Samir Salameh.



Em 1979, uma exposição permanente foi organizada na universidade árabe de Beirute. Este projeto deveria ter resultado na abertura de um museu de arte palestina. “Mas, em 1982, os israelenses invadiram o Líbano”, conta Samir Salameh, “e a exposição, que se encontrava à proximidade dos escritórios da OLP, foi enterrada sob os escombros”.



Hoje, a comunidade dos artistas-criadores palestinos está mais dispersa do que nunca. A artista conceitual Mona Hatoum vive em Londres e expõe no MoMA de Nova York, enquanto o pintor Vladimir Tamari, nativo de Jaffa, reside em Tóquio, e Samir Salameh dá idas e voltas entre a região da Sarthe (na França) e Ramalá.



Essa dispersão não assusta Mazen Qupty: “No dia em que nós reuniremos as obras de todos esses artistas num mesmo lugar, todos verão que eles compartilham as mesmas raízes”.