Galeano e Chomsky analisam os EUA e a América Latina

A pedido da agência de notícias BBC, o escritor e pensador uruguaio Eduardo Galeano e o escritor e professor norte-americano Noam Chomsky responderam a um questionário idêntico, com temas relevantes a respeito dos Estados Unidos e da América Lati

Governos de esquerda, imperialismo, relação com o Iraque e prioridades para a região são alguns dos temas abordados. Confira abaixo o questionário:



1. Em que medida é um desafio para Washington a chegada ao poder de figuras como Evo Morales na América Latina?



Eduardo Galeano – Haverá quem diga, na Casa Branca: ''A democracia nós dá desgostos. O voto popular é uma arma a mais no arsenal do terrorismo.'' ''Até quando continuaremos agüentando, de braços cruzados, estas provocações?''



Noam Chomsky – É um desafio extremamente sério, particularmente porque tem lugar junto a outras duas mudanças no hemisfério. Desde a Venezuela à Argentina, os países da região estão escapando do controle estadunidense, movendo-se na direção de políticas independentes e de integração econômica. Estão começando a reverter os padrões de dependência de potências estrangeiras e o isolamento entre si que data da época da conquista espanhola.


 


A eleição de Evo Morales reflete o ingresso da população indígena no cenário político do continente, em Chiapas, da Bolívia ao Equador e em outros lugares, onde se escutam chamados a uma ''nação indígena''.


 


Junto a outras forças populares, os povos indígenas estão exigindo o controle de seus próprios recursos, o que representa uma séria ameaça para os planos de Washington de ter acesso aos recursos do hemisfério ocidental, especialmente os energéticos. Isto é especialmente certo na Bolívia, que tem as maiores reservas de gás da região depois da Venezuela.


 


As transformações na região são em parte uma reação ao efeito desastroso das políticas neoliberais durante 25 anos pelas instituições financeiras internacionais dominadas pelos EUA. Não é um segredo nem para os economistas, nem para as populações dos países em questão que naquelas nações que seguiram as recomendações daquelas instituições (como se fez na América Latina) houve uma acentuada queda no crescimento e no progresso em matéria de indicadores sociais. Isto em comparação com períodos anteriores e – de forma dramática – em contraste com países que ignoraram essas recomendações, notavelmente no Sudeste asiático, que implementou políticas mais próximas às que possibilitaram o desenvolvimento dos países ricos.


 


A Bolívia tinha seguido rigorosamente as regras das instituições financeiras internacionais – exceto quando a revolta obrigou a deixá-las de lado – e sofreu uma queda em sua renda per capita, como assinalou recentemente o economista Mark Weisbrot.


 


A Argentina – há alguns anos a criança modelo do FMI [Fundo Monetário Internacional] – sofreu um colapso desastroso e em seguida se recuperou mediante a violação das regras das instituições financeiras internacionais, não satisfazendo a Washington ou ao capital internacional.


 


A Argentina está pagando agora quase US$ 1 bilhão para ''libertar-se para sempre'' do FMI que, em palavras do presidente argentino Néstor Kirchner, ''agiu com o nosso pais como um promotor e um veiculo que causaram a pobreza e a dor dos argentinos''.


 


A Argentina foi ajudada pela Venezuela, que comprou grande parte da divida argentina e também vendeu petróleo a preço baixo. A recente entrada da Venezuela no Mercosul foi descrita por Kirchner como um ''marco'' no desenvolvimento do bloco e foi qualificada pelo presidente Lula do Brasil como ''um novo capitulo na nossa integração''.


 


Em um encontro convocado para marcar o ingresso da Venezuela, o presidente Chávez disse que ''não podemos permitir um projeto puramente econômico, para as elites e as transnacionais'', referindo-se ao Acordo de Livre Comércio para as Américas, Alca, o projeto promovido por Washington que suscitou grande oposição da opinião pública.


 


A Venezuela e outros países na região estão aumentando os laços econômicos com a China e com a União Européia. Se está dando também em termos mais amplos uma integração Sul-Sul (especialmente com o Brasil, a Índia e a África do Sul). Tudo isto preocupa profundamente a Washington.



2. Tornou-se irrelevante para os EUA que cada vez mais governos da região sejam de esquerda?



Galeano
– Há alguns sinais de que se dá o contrario. Está sendo cada vez mais irrelevante para a região que os EUA opinem sobre os governos que elegemos.



Chomsky – Ao contrário. É um problema sério para Washington, um desafio aos princípios básicos da doutrina de Monroe formulada há 180 anos. Os EUA não tiveram o poder para implementar essa doutrina no hemisfério até a Segunda Guerra Mundial, mas desde aquele momento o fizeram por meios que vão da extrema violência aos controles econômicos. Estes meios, no entanto, já não estão disponíveis, como aprenderam tristemente os estrategistas do presidente Bush quando apoiaram a falida tentativa de golpe na Venezuela em 2002.


 


Estes meios de dominação se vêem, no entanto, corroídos pela tendência à integração das economias da região, pela diversificação das relações internacionais, pela busca do controle dos recursos nacionais e a rejeição das receitas das instituições internacionais.


 


Tudo isto causou muitas dores de cabeça a Washington, que reagiu. Sob a duvidosa cobertura da ''guerra contra o narcotráfico'' e da ''guerra contra o terror'', Washington incrementou mais a ajuda militar e policial que a social e econômica. O treinamento de tropas latino-americanas aumentou claramente. O Comando do Sul (SouthCom) tem agora mais pessoal na América Latina do que a maioria das agências federais civil somadas e seu foco são o ''populismo radical'' e outros assuntos internos.


 


O treinamento militar passou das mãos do Departamento de Estado ao Pentágono (Departamento de Defesa), ficando liberado do que era pelo menos uma supervisão mínima por parte do Congresso em matéria de direitos humanos e em relação à democracia.


 


Os EUA estão estabelecendo bases militares ao longo de todo o hemisfério. Mas os meios tradicionais de subversão, de intervenção militar e de controle econômico se debilitaram seriamente.



3. Os EUA continuam sendo, como alguns acreditam, o império todo-poderoso e fator crucial no destino econômico ou político da região?



Galeano – ''A lebre faz o caçador'', diz um velho provérbio italiano. É o olhar do fraco que faz todo-poderoso ao poderoso. Quem todo-poderoso? Nem os deuses, menos ainda os homens. Me lembro de um grafite em uma parece de Santiago do Chile: ''Todos os deuses foram imortais.''



Chomsky – Os EUA nunca foram ''todo-poderosos'' e menos ainda agora. Apesar disso, ainda dominam o continente e o mundo, certamente em termos de poder militar.


 


Mesmo com a evolução de uma ordem econômica tripolar nas décadas recentes (América do Norte, Europa, Nordeste Asiático com crescentes vínculos com o resto da Ásia), e com as mudanças no Sul, a dominação econômica estadunidense nem sequer se aproxima do que foi no passado e, de fato, é bastante frágil.


 


Um olhada a fundo sobre este tema requereria, no entanto, uma análise mais profunda do que queremos dizer com ''Estados Unidos''. Se nos referimos à população estadunidense, a dominação é menor. Mas se nos referimos aos que de fato são os donos do país, o sistema corporativo, o panorama é diferente.


 


Mas o famoso ''déficit da balança comercial'' estadunidense diminui consideravelmente quando consideramos as importações de multinacionais dos EUA e suas subsidiárias no exterior como exportações estadunidenses, o que é apropriado se identificamos o país com os que em grande medida são mesmo donos dele.



4. A América Latina será ainda menos prioritária para os EUA devido à guerra no Iraque e a outros acontecimentos de maior importância para Washington?



Galeano – Que eles fiquem com as coisas deles, para nós se trata de perder o medo. A cultura da impotência, triste herança colonial, ainda ata nossas mãos. Continuamos aceitando que nos façam exames, que nos digam o que se pode e o que não se pode… Me lembro de uma assembléia operária, nas minas da Bolívia, há um tempinho, mais de trinta anos: uma mulher se levantou, entre todos os homens, e perguntou qual é nosso inimigo principal. Se ouviram vozes que responderam ''O imperialismo'', ''A oligarquia'', ''A burocracia''… E ela, Doitila Chungara, esclareceu: ''Não, companheiros. Nosso inimigo principal é o medo e nós o levamos dentro de nós''. Eu tive a sorte de ouvir isso dela. E nunca mais me esqueci.



Chomsky – Suspeito que a América Latina estará muito em cima na lista de prioridades dos EUA. Enquanto a América Latina era silenciosa e obediente, parece haver sido ignorada pelos EUA. Digo ''parece'', porque na realidade, sua subordinação parecia segura e as políticas para a região eram desenhadas com base nisso.


 


Esta postura de aparente negligência em relação à região mudou rapidamente quando houve sinais de independência. Recordemos que a extrema hostilidade dos EUA com Cuba desde 1959 é atribuída em documentos internos ao ''desafio com sucesso'' por parte de Cuba em relação a políticas estadunidenses que remontam à Doutrina Monroe.


 


O desafio é intolerável por si, porém mais ainda quando, como no caso de Cuba, se teme que o sucesso desse desenvolvimento independente possa ser um ''exemplo contagioso'' que ''infecte'' a outros, parafraseando termos utilizados por Kissinger ao se referir ao Chile de Allende. Kissinger temia que o Chile poderia inclusive ''infectar'' ao sul da Europa, uma preocupação que compartilhava com Leonid Brejnev.


 


Além disso, como disse, os estrategistas de Washington deram por estabelecido que poderiam contar com os ricos recursos da América Latina, em especial em matéria energética, Mesmo nos prognósticos mais prudentes, se pode dizer que não renunciariam a estes recursos com equanimidade.



5. Mais além das declarações e diferenças entre Washington e presidentes como Hugo Chavez, são muito mais importantes outras ferramentas no jogo do poder? São mais importantes hoje outros mecanismos de pressão como o fechamento de mercados ou a modificação de tarifas aduaneiras?



Galeano – A máquina usa muitos dentes. A máquina abre a boca e mostra os dentes financeiros, políticos, jornalísticos, militares… Se não assusta, não funciona.



Chomsky – A integração econômica internacional é de enorme relevância, mas não devemos cair em apreciações erradas que são freqüentes. Os mecanismos desenvolvidos e impostos pelos EUA e seus aliados não são ''tratados de livre comércio''.


 


São uma mistura de liberalização e protecionismo desenhada – não surpreendentemente – de acordo com o interesse dos seus criadores: as corporações multinacionais e os Estados que estão a seu serviço como ''ferramentas e tiranos'', para utilizar a expressão com a que James Madison descreveu o surgimento do capitalismo de Estado no seu início.


 


Os acordos comerciais garantem amplamente o direito a fixar preços de monopólio. Privam também aos países em desenvolvimento dos mecanismos que empregaram as sociedades industrializadas ricas para alcançar seu estado atual. Além disso, o que se chama de ''comércio'' é em parte uma ficção econômica, que inclui vastas transferências infra-firmas dentro das economias ricas, que não constituem mais ''comércio'' que o do Kremlin quando produzia componentes em Leningrado, transportava-os para Polônia para sua montagem e em seguida devolvia-os para sua venda para Moscou, em uma ''exportação'' e ''importação'' que atravessava fronteiras formais.


 


Mesmo deixando tudo isso de lado, as economias dos países ricos, e especialmente os EUA, dependem em grande medida do dinâmico setor estatal para socializar o custo e o risco e privatizar os lucros.


 


E os acordos apenas podem se chamar ''acordos'', pelo menos se consideramos ao povo como parte essencial destas sociedades. Estes acordos, impostos praticamente em segredo, têm sido tremendamente impopulares, na medida em que o povo foi conhecendo seu conteúdo…


 


No Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), as únicas palavras certas são ''América do Norte''. No entanto, a eficácia destes mecanismos depende em ultima instância da aceitação pública, e como ficou em evidência recentemente na América Latina, essa aceitação está longe de estar garantida.