Rádio e TV: pedidos de concessão podem ser rejeitados pela primeira vez

Em protesto à falta de condições para analisar processos de outorga de emissoras de rádio e TV, deputados rejeitaram pela primeira vez um lote de pedidos. Caso expõe fragilidades e coloca necessidade de novos procedimentos.

Desde a aprovação da Constituição Federal de 1988, o Congresso passou a ser também responsável pela apreciação de pedidos de outorga, permissão, autorização e renovação de emissoras de rádio e TV. A mudança foi saudada à época como moralizante frente ao constrangedor festival de concessões promovido pelo presidente José Sarney e por seu ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães, para garantir a extensão de sua estada no Palácio do Planalto para cinco anos. Logo após a sanção da Carta Magna, a nova incumbência do Parlamento provocou um efeito colateral não previsto: o grande número de processos passou a atrapalhar e, em alguns casos, trancar a pauta do Congresso.


 


Para resolver o problema, a Câmara acatou parecer do então deputado Nelson Jobim a partir do qual os processos passaram a tramitar apenas pelas comissões de Ciência e Tecnologia, para análise de mérito, e de Constituição e Justiça, para avaliação sobre a constitucionalidade. A norma estabilizou o rito e deu origem à repetição do procedimento em que o Ministério das Comunicações (MiniCom) avalia os pedidos e envia um parecer ao Congresso, que aprecia a “mensagem” (como é chamada na burocracia legislativa) da pasta nas comissões já citadas da Câmara e na Comissão de Educação do Senado.


 


Esta dinâmica vigorou até o dia 20 de dezembro do ano passado, quando os parlamentares da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara rejeitaram 83 processos. A motivação do ato inédito foi o questionamento sobre as condições débeis que os integrantes da comissão têm para avaliar as mensagens do Ministério das Comunicações. Um dos problemas apontados foi a falta de documentação e informações suficientes por parte do MiniCom para subsidiar a avaliação da validade ou não dos pedidos de outorga ou renovação que chegam à CCTCI.


 


“Desde que iniciei o meu primeiro mandato eu estranhava muito que tivesse de aprovar projetos sem a menor base objetiva que pudesse sustentar a avaliação. Tinha dificuldade de me pronunciar por que não tinha condições de aferir no país se estava correto”, diz Luiza Erundina (PSB-SP). Segundo a deputada paulista e ex-prefeita de São Paulo, o trabalho dos deputados acaba sendo apenas burocrático, de chancela, o qual ela classifica de “irresponsável” na forma em que é feito hoje. À falta de transparência nas mensagens do ministério soma-se a falta de estrutura do Congresso para avaliar projetos de todos os cantos do País. “O problema é o tempo hábil para checar uma série de coisas, documentação, situação de empresas. O processo chega na Câmara, a capacidade da comissão na prática de análise é muito baixa”, reclama o outro integrante da comissão, o deputado Walter Pinheiro (PT-BA).


 


Segundo Pinheiro, como não há condição de avaliar a documentação que vem pelo curto prazo entre a sua distribuição e a votação, os deputados acabam confiando no parecer do relator. Esta situação agrava outro problema central do castelo de cartas da tramitação de outorgas no Congresso: a apreciação dos processos por parlamentares proprietários de concessões de rádio e TV. “Os próprios parlamentares da bancada da mídia compõem a comissão que analisa isso [a CCTCI, que avalia os processos de outorga]”, critica James Görgen, do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom). De acordo com Görgen, os relatores acabam sendo os parlamentares do estado da emissora solicitante, que aprovam por ser se tratar de pedidos ligados ao seu grupo político ou conectados com um político concorrente, contra quem o relator dificilmente quer “comprar uma briga”.


 


Para o pesquisador do Epcom, esta relação promíscua é um dos principais responsáveis pela situação de quase aprovação automática dos processos que vêm do MiniCom. “Não há impedimento ético destes parlamentares votarem matérias sobre radiodifusão. Isso criou este tipo de cartório em que os deputados homologam pacotão de concessões”. Ele explica que a lógica se ampliou pelo fato dos políticos terem descoberto as emissoras educativas (TVEs) e comunitárias como instrumentos de manutenção e expansão da influência política nas suas bases eleitorais.


 


Mudança à vista?


 



Apesar da conveniência desses sistema para alguns (principalmente os parlamentares concessionários), a rejeição dos 83 projetos representou revolta inédita desde que esta dinâmica foi instaurada. Mas para os parlamentares entrevistados por Carta Maior, há uma resistência grande em chegar ao cerne da questão: a alteração do próprio procedimento. “Vamos rever esta legislação, não queremos simplesmente rejeitar sem dar uma solução legal, pois o quadro normativo [da radiodifusão] está desatualizado”, diz Luiza Erundina (PSB-SP). “Acho que a gente deveria tentar urgentemente reunir o ministério e os congressistas para encontrar um caminho que nos levasse a aumentar o rigor, aumentar critérios e coibir abusos”, propõe Walter Pinheiro.


 


No entendimento do deputado baiano, o Congresso deve ser dotado de maior estrutura que dê condição aos parlamentares de realizar uma avaliação minimamente criteriosa de cada processo. “Tem que ter instrumento que melhor armasse o deputado para ele se posicionar. Fazer audiência pública ou coisa mais correta, ficar aberta a algum tipo de consulta”, defende. A posição é endossada por Görgen. “O parlamento precisa ter um corpo técnico tão bom ou melhor do que do MiniCom”, aponta.


 


O primeiro passo na busca de soluções já foi dado com a criação de uma subcomissão no âmbito da CCTCI para discutir exatamente o tema das concessões. A comissão definiu um plano de trabalho e uma série de audiências públicas para aprofundar a reflexão sobre o assunto. Mas segundo Luiza Erundina, a subcomissão foi esvaziada pela ausência dos parlamentares concessionários que a integram. Tampouco houve cooperação do ministério, cujo titular, Hélio Costa, se recusou a participar de uma audiência com ex-ministros e declinou um convite para uma reunião só com a sua presença alegando “falta de agenda”.


 


A relação conflituosa entre deputados e o ministro certamente se acirrou com a rejeição dos 83 projetos. Em entrevista ao jornal “O Estado de São Paulo”, Costa afirmou que a ação dos parlamentares teria sido uma “provocação” em resposta à retirada de 225 processos da comissão (linkar matéria) promovida pelo ministro e pelo presidente Lula em julho deste ano. “Tudo sai daqui rigorosamente como prevê a lei”, disse Hélio Costa.


 


Dúvida


 



O ineditismo da rejeição está gerando inclusive dúvida sobre o trâmite dos processos a partir de agora. Segundo Silvio Avelino, diretor da Coordenação de Comissões Permanentes da Câmara, os pedidos de outorga, permissão e autorização seguirão para análise na CCJ e depois para a Comissão de Educação do Senado. Se a comissão de Educação mantiver a rejeição, os projetos serão arquivados. Se ela mudar o parecer pela aprovação, será o Plenário das duas casas em sessão conjunta que terá de votar, por maioria simples, o destino dos processos. Já no caso dos pedidos de renovação de outorgas, a Constituição Federal exige que a não-renovação se dê somente no caso de votação nominal de dois quintos dos parlamentares do Congresso. Ou seja, os processos de renovação rejeitados supostamente irão diretamente para plenário para apreciação do conjunto dos deputados e senadores.


 


Durante todo este processo, o Executivo, que é autor dos pedidos, pode solicitar os processos de volta para reapresentação. Essa possibilidade pode “salvar” os processos, mas também pode botar “mais lenha na fogueira” depois da retirada dos 225 processos realizada pelo governo. Em última instância, explica Avelino, a decisão sobre como se dará a tramitação será dos presidentes das duas Casas. Considerando a presença forte de parlamentares concessionários e da dor de cabeça possível que estes processos podem trazer, dificilmente a sua rejeição será mantida. Mas o episódio serviu para colocar mais um problema no borbulhante setor de comunicação a ser resolvido.


 


Fonte: Carta Maior / Jonas Valente