Artigo: O papel histórico da UNE na reforma universitária

Leia o artigo de Márcio Pereira Cabral, membro da executiva da União Nacional dos Estudantes (UNE). Com o título “Refazendo e aprendendo com a nossa história”, o texto analisa o papel decisivo que a entidade cumpriu durante os debates para a reforma unive

Refazendo e aprendendo com a nossa história


 


Por Márcio Pereira Cabral*


 



Se não há país “onde a opinião se divida em maior número de cores, e se não se encontra teoria que entre nós não tenha adeptos”, segundo já observou Alberto Torres, princípios e idéias não passam, entre nós, de “bandeira de discussão, ornatos de polêmica ou simples meio de êxito pessoal ou político”. Ilustrados, às vezes, e eruditos, mas raramente cultos, não assimilamos bastante as idéias para se tornarem um núcleo de convicções ou um sistema de doutrina, capaz de nos impelir à ação em que costumam desencadear-se aqueles “que pensaram sua vida e viveram seu pensamento”.


 


A interpenetração profunda que já se estabeleceu, em esforços constantes, entre as nossas idéias e convicções e a nossa vida de educadores, em qualquer setor ou linha de ataque em que tivemos de desenvolver a nossa atividade já denuncia, porém, a fidelidade e o vigor com que caminhamos para a obra de reconstrução educacional, sem estadear a segurança de um triunfo fácil, mas com a serena confiança na vitória definitiva de nossos ideais de educação.


 


Em lugar dessas reformas parciais, que se sucederam, na sua quase totalidade, na estreiteza crônica de tentativas empíricas, o nosso programa concretiza uma nova política educacional, que nos preparará, por etapas, a grande reforma, em que palpitará, com o ritmo acelerado dos organismos novos, o músculo central da estrutura política e social da nação


 


(Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, 1932)


 


O final da década 50 foi marcado por um forte debate educacional no Brasil, o que era uma conseqüência natural para o período, pois a educação pública brasileira somente havia sido implantada enquanto sistema nacional e de caráter público no período do Estado Novo (pós-Revolução de 30).


 


Duas concepções se confrontaram durante todo este período: a defesa da educação pública e gratuita como atribuição exclusiva do Estado para garanti-la (com origem nos Pioneiros da Nova Escola – ABE), contra a concepção da concessão pública que garantia a presença dos setores privados (principalmente religiosos) no ensino superior brasileiro da época (organizados pela AEC).


 


Para isso, era necessário, neste período, reformar o sistema educacional que ainda permanecia sob a concepção da LDB de 1948 que contava com forte influência da Nova Escola.


 


A UNE
No início dos anos 60, o Brasil vivia a renúncia de Jânio Quadros, e a campanha da legalidade tratou de garantir a posse do vice-presidente eleito, João Goulart. Neste mesmo período, os estudantes, através da UNE, retomavam um papel protagonista na política brasileira. Logo empossado, o discurso do governo, mesmo sob o controle do regime parlamentarista, era por aprofundar as reformas capazes de impulsionar o desenvolvimento nacional. Lógico que a educação entrou na pauta central das reformas de base.


 


Mesmo retomada para o campo progressista, a UNE ainda não havia compreendido o seu papel no questionamento de qual projeto educacional seria capaz de impulsionar a expansão do ensino superior brasileiro e também não compreendia ainda qual era a real correlação de forças nesta disputa de projetos. Enquanto isso, no Congresso Nacional tramitava uma nova LDB, impulsionada por uma forte mobilização de setores da Sociedade Civil defensores do ensino privado.


 


Carlos Lacerda foi o responsável por apresentar um substitutivo ao projeto do Conselho Nacional de Educação e também se colocou como o principal articulador no Congresso dos interesses dos setores privados, forçando assim uma forte oposição ao projeto do CNE. Este substitutivo foi aprovado em janeiro de 1960 e em agosto de 1961 no Senado, que, embora o tenha alterado bastante na sua forma, ainda manteve a concessão pública para a exploração privada do ensino brasileiro.


 


Decepção
Lembrando que nesse período o presidente era João Goulart, mas o regime era parlamentarista, as forças progressistas não tiveram poderes para vetar os artigos da LDB que atacavam o ensino público. Assim, João Goulart não pôde concretizar o seu compromisso assumido perante as forças que garantiram sua posse (inclusive a própria UNE) de modificar a redação final da LDB de 1961.


 


Isso gerou uma forte decepção por parte do movimento estudantil. Foi redigida uma nota, assinada por Aldo Arantes, então presidente da UNE, e aprovada em um Coneg, repudiando o sancionamento da lei por conter um caráter fortemente privatista. A partir disto, surge no interior da UNE o debate da necessidade de uma reforma universitária para o Brasil.


 


O governo – que via a necessidade de uma forte mobilização social para retomar o controle sobre o Estado, acabando com o regime parlamentarista – passou a estimular os setores organizados a defenderem bandeiras democráticas e que propiciassem reformas profundas no Estado brasileiro.


 


Descompasso
Mas o movimento estudantil parecia estar mais interessado em articular suas bandeiras mais corporativas. Passou a adotar como estratégia a defesa da paridade nos órgão colegiados das IES, abandonando o diálogo com o governo. Assim surge a greve do 1/3, que a UNE passou a adotar como estratégia para acumular forças para impulsionar as mudanças.


 


A LDB voltou a ser tema de discussão pelos setores educacionais. Os estudantes não aceitavam as concessões que o governo havia dado aos setores privatistas como estratégia para retomar a sua legitimidade. Assim os estudantes passaram a defender que a participação ativa das representações estudantis no interior das universidades seria o instrumento capaz de impulsionar uma reforma por dentro do sistema educacional, fugindo assim do dialogo com o governo e com o Congresso Nacional.


 


Para isso, era necessário modificar o artigo 78 da LDB, segundo o qual cada IES determinaria a forma da representação dos setores organizados no interior de cada instituição. Os estudantes temiam que os estatutos destas universidades pudessem vetar a sua participação e, assim, surge com força o movimento pela mudança do artigo 78, onde a UNE passa a ser a principal referência na disputa por mudanças na educação superior brasileira.


 


A estratégia foi dar um ultimato ao governo para que, no dia 1º de junho de 1963, o Conselho Nacional de Educação (CNE) enviasse ao Congresso a mudança da LDB. Do contrário, os estudantes decretariam greve estudantil em todas as universidades até que a LDB fosse modificada. Lógico que o CNE não atendeu o ultimato dos estudantes, e a greve passou a ser organizada por todo o país.


 


Uma greve ampla
A mobilização promovida pela UNE conseguiu atingir a maioria das universidades brasileiras e estendeu-se até meados de agosto, e mesmo assim as reivindicações da UNE não foram atendidas pelo governo. “Durante esses quase três meses, na mais longa greve nacional de estudantes no Brasil, realizaram-se numerosas assembléias e seminários locais sobre a reforma universitária, lançaram-se manifestos e chegou-se a ocupar a sede do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro, de onde os manifestantes foram expulsos pela policia do exército.” [1]


 


Nestes seminários, os debates passaram a aprofundar a necessidade de uma reforma mais ampla, para além das mudanças na LDB. Eram imprescindíveis “destronar as torres de marfim” instituídas pelas cátedras e democratizar internamente as universidades para que elas pudessem cumprir um papel central nas mudanças mais profundas do Estado brasileiro. Sendo assim, os estudantes saem da passividade e incorporam um espírito crítico e mobilizador para que as mudanças de fato ocorressem.


 


O governo viu-se em uma situação constrangedora, pois tentava conciliar interesses inconciliáveis, e também não poderia romper a sua relação com a UNE estabelecida na campanha da Legalidade. Logo, tratou de enviar ao Congresso algumas modificações possíveis na LDB que levassem os estudantes a retrocederem da sua posição de greve.


 


Mas a resposta da direita veio na forma de combater veementemente a postura do governo de atender reivindicações de estudantes “baderneiros e provocadores de desordem”, portanto não aceitaram a retomada do debate sobre a LDB de 1961. O argumento central era baseado na incapacidade de jovens, com pouca vivência acadêmica, de intervirem em assuntos estratégicos como a educação superior.


 


O governo e os estudantes
Sendo assim, o Conselho Nacional de Educação, que praticamente passou a ser um palco de intensos e acalorados debates, tratou de tomar uma posição conciliatória, criando dispositivos limitadores para a participação dos estudantes nas decisões internas das IES.


 


Como a pauta da UNE não havia sido atendida, logo a greve do 1/3 começou a perder força e a UNE suspendeu as mobilizações. Derrotada e desacredita por parte de sua base, a UNE ainda viu criar-se no país um clima de um possível golpe para acabar com o poder de João Goulart. Sob conseqüência do fracasso da greve, o movimento estudantil começa a perder um centro de ação, o que poderia provocar um período de imobilismo e descrédito.


 


A UNE convocou um Seminário Nacional de Reforma Universitária em Belo Horizonte, que aprovou uma inflexão e um amadurecimento na tática a ser adotada pelo movimento estudantil. Para obter conquistas reais, a entidade deveria evitar o enfrentamento direto contra as forças conservadoras e hegemônicas, sendo necessário criar canais de diálogos que propiciassem conquistas pontuais e que dariam condições para que mudanças no sistema de ensino pudessem ser conquistadas gradativamente.


 


Assim, a UNE volta-se para a criação de um maior diálogo com o poder legislativo a quem encaminharam projetos de emendas à Constituição e à LDB. Essas emendas estavam articuladas aos projetos de reforma universitária propostos pela entidade, embora a UNE soubesse do caráter tático e parcial das alterações pretendidas. O centro das reivindicações eram a democratização da universidade, sendo o seu principal fundamento o acesso (aumento de vagas) e a democratização interna das IES.


 


Novo foco
Logo em seguida ocorre o golpe militar de 1964, e o movimento pela reforma passa a ser secundarizado pela UNE em detrimento da luta contra a ditadura. A reforma universitária só passaria a ser uma pauta forte do movimento estudantil no período da reconstrução da UNE e tem se estendido até os dias de hoje.


 


Como o movimento estudantil tem levado esse debate por décadas, algumas conquistas foram realizadas em todos esses anos, como a criação de novas universidades públicas e a livre organização estudantil, conquistada em 1985. Outras várias derrotas sofremos, principalmente na década de 90, com a retomada do projeto privatista com muito mais fôlego no Brasil.


 


Mas o que não perdemos foi o fato de nunca mais ficarmos isolados e enfraquecidos no debate educacional, não perdendo assim a capacidade de diálogo – e de obter conquistas pontuais que possam possibilitar uma universidade verdadeiramente democrática e popular num futuro próximo.


 


Essa tática elaborada pela geração de estudantes da década de 60, a qual tem sido sempre mencionada como referência nas lutas estudantis, inclusive por setores contrários ao projeto da reforma do atual governo, ainda permanece sendo o principal motivo que nos leva a não desistir da aprovação de pontos importantes no atual projeto de lei 7200/2006 e na possibilidade de ainda vencermos esta discussão no Congresso Nacional.


 


Protagonismo
A UNE de hoje permanece honrando o seu passado e reforçando assim o seu papel protagonista pela conquista de uma verdadeira reforma universitária para o Brasil.


 


O ano de 2007 promete grandes batalhas, e a UNE já precisa ligar os seus motores e impulsionar a 2ª Caravana da Reforma, capaz de ampliar os nossos esforços na aprovação e disputa de uma reforma mais profunda e comprometida com um projeto estratégico de nação.


 


* Márcio Pereira Cabral é diretor de Políticas Educacionais da UNE