Partidos e especialista debatem legado da guerra civil espanhola

Uma discussão mais política que histórica: a vontade de reconhecer as vítimas do lado perdedor da Guerra Civil põe em confronto os dois grandes partidos. O início do debate sobre as vítimas do franquismo coincidiu com os governos do PP

A polêmica sobre a memória histórica da Guerra Civil e do franquismo é um debate mais político que histórico. Não existe só uma memória, mas muitas, e o valor que os historiadores lhes dão é muito relativo. A memória encontra-se num primeiro estágio da ciência histórica, uma verdade que está sendo reescrita a cada dia, a partir dos novos documentos que são revelados. As memórias devem ser submetidas à crítica dos especialistas para que tenham valor histórico.


 


Na verdade, a questão mais profunda que se coloca quando se debate na Espanha a recuperação da memória histórica é que as vítimas de um dos lados, que foi o dos perdedores da Guerra Civil espanhola, foram as grandes esquecidas. Obviamente o foram durante o franquismo, pela repressão a que foram submetidas e o silêncio imposto pela ditadura, o que não ocorreu com as vítimas dos excessos no lado republicano. Mas também foram marginalizadas as vítimas da guerra e da repressão franquista durante a transição, porque o empenho político se concentrou em conseguir as liberdades.


 


Uma vez consolidada a democracia na Espanha e quando foi aberta a maioria dos arquivos sobre a contenda de 1936-39 e sobre o franquismo, começou-se a falar nas vítimas esquecidas e houve uma corrente que denunciou aquela perda de memória, a amnésia em contraposição à anistia, por parte dos dirigentes da transição.


 


Esse interesse pelos esquecidos coincidiu com os governos do Partido Popular, o que foi interpretado como uma tentativa da esquerda de pôr em dificuldades os partidários de José María Aznar, crença que de alguma maneira se confirmou quando o Partido Socialista Operário Espanhol incluiu em seu programa eleitoral o que chamou de recuperação da memória histórica. O PP também não soube agir com presteza quando se negou a assumir repetidamente no Congresso uma condenação ao franquismo e o direito ao reconhecimento das vítimas e de seus parentes. Houve inclusive um apelo ao patriotismo constitucional, mais carregado de boas intenções que eficaz, por parte de alguns setores da centro-direita.


 


O debate sobre a recuperação da memória histórica se manteve até agora no campo de batalha político entre os dois grandes partidos, e diversificou-se com a reivindicação dos parceiros do governo de Zapatero para que ela vá mais longe. Para Gabriel Elorriaga, dirigente popular, “o governo gerou uma polêmica artificial, distante das preocupações dos espanhóis, que não beneficia ninguém, em um claro exemplo de como causar problemas desnecessários”. Para a vice-presidente María Teresa Fernández de la Vega, o governo “não quer reescrever a história. Não cabe a nós. São os historiadores que a escrevem. O que o governo faz é dar cobertura legal aos direitos violados” dos dois lados da guerra civil.


 


Alguns pensam que a revisão da história é romper o pacto da transição. Por outro lado, uma decisão de um juiz de Valência, tomada com o fim de frear obras da prefeitura realizadas por erro em uma fossa de cadáveres de republicanos, diz que “é necessário dignificar e recuperar a memória. É preciso preservar o patrimônio histórico como de interesse público relevante”.


 


O governo da Catalunha declarou em 18 de julho de 2006, no 70º aniversário do início da Guerra Civil, que “a recuperação da memória histórica é um ato de justiça e de liberdade (…) à memória dos que perderam a vida como conseqüência da Guerra Civil nos campos de batalha ou na retaguarda, por motivo de sua ideologia, suas crenças e seu compromisso político”.


 


Na opinião do catedrático Francesc de Carreras, “não faz sentido falar de memória histórica como patrimônio coletivo, já que isso implica que se trata o passado como algo estabelecido de uma vez por todas, e não como algo diverso, submetido sempre ao debate crítico. Mas ainda é menos aceitável que a determinação desse chamado patrimônio coletivo esteja ao cuidado dos poderes públicos”, como reza o artigo 54.1 do Estatuto da Catalunha.


 


Para Manel Perona, da Associação para a Memória Histórica, trata-se de uma questão de “valor político”, enquanto Gervasio Puerta, da associação Ex-Presos e Vítimas do Franquismo, exige “o reconhecimento documental de cada vítima, a exumação de seus restos, sua inumação em um lugar apropriado e a inscrição nos registros civis da causa real de sua morte”.


 


Fonte: La Vanguardia
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves / UOL Mídia Global