Saramago: ''Interessa-me a criança que fui''

O escritor José Saramago conta, em seu ensaio autobiográfico “As Pequenas Memórias”, a origem de seu sobrenome. Acoplado ao “lacônico” José de Sousa que seu pai pretendia que fosse, Saramago foi batizado por um funcionário bêbado do Registro Civil de Gole

Em “As Pequenas Memórias” o senhor diz que, assim como Leandro, o senhor teve os seus toques de dislexia. O que parecia ser algo incomum entre os escritores, hoje parece muito freqüente, considerando o número de autores que confessa ter algumas dificuldades com algumas palavras. Como o senhor analisa esse fenômeno e qual a importância que ele teve em sua formação?


Os meus problemas não foram os de uma simples e passageira dislexia. O meu problema foi, e continua a ser, o tartamudeio, a gagueira. Aqueles que gozam da sorte de uma palavra solta, de uma frase fluida, não podem imaginar o sofrimento dos outros, esses que no mesmo instante em que abrem a boca para falar já sabem que irão ser objeto da estranheza ou, pior ainda, do riso do interlocutor. Com a passagem do tempo acabei por criar, sem ajuda, pequenos truques de elocução, usar os bloqueios leves como pausas propositadas, perceber com antecipação a sílaba onde irei ter dificuldades e mudar a construção da frase, etc. Curiosamente, se tiver de falar para cinco mil pessoas estarei mais à vontade do que a falar com uma só. Salvo em situações de extremo cansaço nervoso, hoje sou capaz de controlar adequadamente o meu débito verbal. A gagueira, no meu caso, passou a ser uma pálida sombra do que foi na infância e na adolescência. Aprendi à minha própria custa.


 


O senhor relata no livro alguns episódios de sua vida como adolescente, incluindo nele as brincadeiras com Domitília. Que importância tem e o que significa o sexo para Saramago?


O sexo é. Especular sobre a importância e o significado dele não levará a outra conclusão: o sexo é, e não só é, como tem as suas razões. Não discutamos com o sexo, ele acabará sempre por ganhar a partida. Às vezes, para justificar as nossas tentações, dizemos que a carne é fraca. E não se repara que se a carne cede é porque o espírito já havia cedido antes…


 


De modo geral, os escritores preferem falar de sua iniciação literária ou da vida adulta quando escrevem a autobiografia. Por que o senhor decidiu se fixar na infância e adolescência?


Nunca escreveria uma autobiografia da pessoa adulta que sou. Creio que me sentiria ridículo e desistiria logo à segunda página. A mim interessava-me a criança que fui, o adolescente que começava a ser, isto é, a pessoa em construção. Interessavam-me a ingenuidade perante o mundo, a desprevenção, a ausência de idéias feitas. E nada disto é possível encontrar no adulto.


 


Já que falamos de autobiografias, outro Nobel, Günter Grass, acaba de lançar a dele. Tinha dúvidas que numa autobiografia o senhor revelasse ter pertencido à juventude salazarista, algo improvável considerando suas posições ideológicas. Em algum momento o senhor sentiu simpatia pelo ditador?


Chegou a hora de fazer a minha confissão. Eu pertenci à juventude salazarista, que se chamava Mocidade Portuguesa. Pertencíamos todos: alunos da instrução primária, do ensino secundário, do ensino superior, todos sem exceção. Era, por assim dizer, automático. Digo no livro como consegui escapar a usar o fardamento e creio que essa foi a minha primeira vitória contra o fascismo. Mais não podia fazer. E para a revolução ainda era cedo.


 


O cinema começa a se interessar por seus livros. Como o senhor imagina um filme a partir de Ensaio sobre a Cegueira?


O livro suscita facilmente imagens no espírito do leitor, e isso seria, ao mesmo tempo, um caminho e um perigo: o de fazer do filme uma mera ilustração do romance. Mas, conhecendo, o trabalho de Fernando Meirelles como conheço, estou tranqüilo quanto a este particular. O que peço ao filme é que consiga dizer com mais força o que eu tentei dizer no livro: que há demasiado absurdo no modo como a humanidade está vivendo (e sofrendo, e morrendo) para continuarmos a suportá-lo. Mudar a vida? Sim, com a condição de que sejamos capazes de mudar de vida…


 


Algumas das pessoas que o senhor conheceu quando jovem, como o sapateiro Francisco Carreira, viraram personagens em seus livros Qual o personagem que ainda não ocupou lugar em sua literatura?


Não vejo ninguém a quem pudesse utilizar nesse sentido, salvo talvez, para não sair das Pequenas Memórias, o barqueiro Gabriel mas teria de inventar tudo, inventar-lhe uma vida que não acertaria em nada ou quase nada com o que terá sido a vida desse homem. Quanto a projetos, rodam-me na cabeça um ou dois, mas nada que valha a pena falar neste momento.


 


O mundo que o senhor conheceu em sua infância desapareceu ou está em ruínas. Como o senhor viu a entrada de Portugal na comunidade européia e o desaparecimento de culturas regionais em sua terra?


Não desapareceram de todo, mas aquilo em que se vão transformando deve-se menos à influência da União Européia do que ao rolo compressor que é a globalização, da qual me atrevo a dizer que é, com todas as letras, um totalitarismo.


 


O senhor sempre esteve ao lado de intelectuais brasileiros engajados em lutas políticas. Como viu a vitória de Lula e o que espera desse segundo mandato?


Não preciso dizer que Lula era o meu candidato, mas também não preciso dizer que espero (que exijo…) muito mais dele no novo mandato que agora vai começar. Não discuto o seu direito de afastar-se de Hugo Chávez e de Evo Morales, mas permito-me recomendar-lhe que não vá para a cama todos os dias com o Fundo Monetário Internacional… E que não se esqueça dos problemas sociais do Brasil. Lula já deve ter percebido que o poder não só intoxica, como cega. Abra os olhos, presidente. Sobretudo não permita que fechem seus olhos. Era preciso tê-los fechados, para não ver o que se passava no PT.


 


Fonte: Diário do Nordeste