Artigo: Os acidentes de trabalho e o dedo de Lula

O secretário nacional de Políticas Sociais da CUT, Carlos Rogério de Carvalho Nunes, é o autor do artigo abaixo, publicado originalmente no Portal do Mundo do Trabalho. No texto, Carlos Rogério põe em xeque um juiz que, há quase dez anos, mini

Acidente de trabalho: o dedo de Lula


 


Por Carlos Rogério de Carvalho Nunes *


 


Se dependesse do juiz Edmundo Lellis Filho, de Cotia, na Grande São Paulo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não deveria se preocupar com os adesivos distribuídos pelo PSDB no Sul do país durante a campanha das eleições presidenciais deste ano com o desenho de uma mão aberta, com apenas quatro dedos, dentro de um círculo atravessado por uma tarja símbolo de “proibido”. Segundo o juiz, o dedo mínimo tem “muito pouca utilidade”.


 


Em 1997, ele considerou improcedente o pedido de auxílio de acidente de trabalho requerido pelo metalúrgico Valdir Martins Pozza, que perdeu os movimentos do dedo mínimo ao romper o tendão enquanto limpava uma retificadora. “Não é fato comprovado que sua capacidade de trabalho foi efetivamente diminuída pelo acidente, até porque o dedo lesado, mínimo, muito pouca utilidade tem para a mão e, por muitos estudiosos em antropologia física, é considerado um apêndice que tende a desaparecer com a evolução da espécie humana”, diz a sentença.


 


Para evitar absurdos como esse, Lula baixou a medida provisória n° 316 determinando que o trabalhador vítima de acidente no trabalho ou que apresente doença relacionada à sua atividade passa agora a ter o nexo ocupacional (relação entre a doença e o trabalho) automaticamente estabelecido. Caso a empresa não concorde, ela terá que provar que o trabalho não é a causa da doença ou acidente. Ou seja, está invertido o chamado ônus (obrigação) de provar.
 
Antes da medida provisória, quando a empresa não emitia a Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT) o trabalhador era afastado por “doença comum”, o que implicava em suspensão do contrato de trabalho, no não recolhimento do FGTS e na perda da estabilidade no emprego por no mínimo um ano após o retorno ao trabalho. A medida provisória garantiu também o Nexo Técnico Epidemiológico (NTE).


 


Essa inovação representa muita coisa. Dados da Dataprev, Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social, indicam que por ano há mais de sete mil amputações de mãos entre os cerca de 23 milhões de segurados do Seguro de Acidentes do Trabalho. Mas este número representa menos de um terço da população economicamente ativa, estimada hoje em 83 milhões de trabalhadores. Os acidentes e doenças são, possivelmente, muitos maiores do que apresentam os dados oficiais. São gastos R$ 32,8 bilhões por ano, segundo dados da Previdência Social, com benefícios por incapacidade temporária ou permanente. A parte majoritária da assistência médica e hospitalar é prestada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e os benefícios por incapacidade temporária ou permanente são arcados pelo Ministério da Previdência Social.


 


A gravidade do problema não se limita ao Brasil. Segundo estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ocorrem anualmente no mundo cerca de 270 milhões de acidentes de trabalho e aproximadamente 160 milhões de casos de doenças ocupacionais. Essas ocorrências chegam a comprometer 4% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial. Em um terço desses casos, cada acidente ou doença representa a perda de quatro dias de trabalho. Dos trabalhadores mortos, 22 mil são crianças, vítimas do trabalho infantil. Ainda segundo a OIT, em todo o mundo morrem, por dia, em média cinco mil trabalhadores devido a acidentes ou doenças relacionadas ao trabalho.


 


No caso brasileiro, a dramaticidade do problema chegou à instância máxima da Justiça. No dia 3 de março de 2005, o Supremo Tribunal federal (STF) decidiu que a competência para o julgamento de ação de indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidente de trabalho é da Justiça Comum, e não da Justiça do Trabalho (o artigo 114, inciso 6º da Constituição Federal, na redação conferida pela emenda constitucional nº 45, diz expressamente que “compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho). A decisão suscitou polêmica e o STF reviu a decisão.


 


Segundo a assessoria de imprensa do STF, quem se sentir lesado pode entrar com recurso extraordinário que o Supremo decidirá qual ramo da Justiça terá a incumbência de julgar a ação. O advogado e assessor da Vice-Presidência da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Renan Arrais, diz que mesmo com a emenda constitucional nº 45 há conflito de competência. “Quando o caso já está em andamento, a tendência é que a Justiça Comum julgue o caso, mas novas ações a competência é da Justiça do Trabalho”, diz ele.


 


A Constituição Federal diz em seu artigo 5º, inciso 35, que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça ao direito. Isso significa que ou a Justiça Comum ou a Justiça do Trabalho deverão decidir quanto aos pedidos de dano moral apresentados nos processos em andamento. Não há jurisprudência consolidada no STF sobre o tema, depois que entrou em vigor a emenda constitucional nº 45. O Supremo poderá adotar uma súmula sobre o tema, mas ela só valerá para a Justiça do Trabalho quando entrar em vigência a súmula vinculante. “Enquanto não há uma súmula vinculante, os tribunais regionais do trabalho estão livres para se posicionarem de forma contrário ao Supremo”, afirma Renan Arrais.


 


Talvez a nossa histórica falta de parâmetros para enfrentar essa grave questão venha a se constituir em capacidade de mudar rapidamente e de transformar os problemas em novas formas de combater o descaso com as condições de trabalho. Para isso será necessária, antes de tudo, uma pressão maior por mudança na filosofia de muitas empresas, abrindo espaço para a contribuição efetiva dos trabalhadores por melhorias das condições de trabalho, estimulando as performances dos sindicatos e das Cipas para a obtenção de menores índices de acidentes de trabalho. O debate em andamento ajuda essa tarefa. Não há razão para o movimento sindical não tomar o assunto nas mãos.


 


* Carlos Rogério de Carvalho Nunes é secretário nacional de Políticas Sociais da CUT e membro da Corrente Sindical Classista (CSC)