Robert Fisk: O fosso libanês se alarga; revolução no ar

Por Robert Fisk, de Beirute*
Com o gabinete de ministros de Fouad Siniora escondido no Grande Serralho (sede de governo), por trás de quilômetros de arame farpado e milhares de soldados — uma verdadeira “Zona Verde” no coração de Beirute –, a oposiçã

“Um governo de transição”, foi como o ex-general Michel Aoun o chamou. Já Naeem Qassem, vice-presidente do Hezbolá, vaticinou que as demonstrações de massas eram o “dia do separatismo”.



“Apoiado pels EUA”: o beijo da morte



Estaria a milícia do Hezbolá, que conteve o desastroso bombardeio israelense do Líbano em julho-agosto, realmente planejando um golpe em benefício de seus apoiadores iranianos e sírios, como o senhor Siniora insinua? Ou são o senhor Siniora e seus colegas de gabinete — sunita, cristão e druso — que trabalham em benefício dos estadunidenses e israelenses, como proclama o líder do Hezbolá, Hassan Nasrallah?
É fato que a administração Siniora é mencionada na imprensaamericana como “o governo apoiado pelos EUA” — o que é o beijo da morte para qualquer líder árabe hoje em dia.



Já o rompimento do general Aoun com seus correligionários cristãos pode se mostrar fatal para ele.  Apenas devido a sua estranha aliança com o Hezbolá pode este proclamar que sua oposição representa tanto cristãos como muçulmanos.
Em uma das ironias da política libanesa, foi o mesmo general da reserva Aoun que travou uma “guerra de independência” com os amigos sírios do Hezbolá, em 1990, conflito que ele perdeu e que custou mil vidas.



Com a palavra “o povo da rua”



Porém mesmo apoiadores do governo Siniora foram apanhados de surpresa pelo enorme número de libaneses que o Hezbolá conseguiu mobilizar ontem. Homens e mulheres que em muitos casos vieram das aldeias e dos bolsões de pobreza urbanos que sofreram uma destruição quase total na guerra de julho-agosto.



Seus porta-vozes desempenharam o papel de representantes dos pobres. “O povo da rua”, foi como um estouvado clérigo sunita chamou-os na sexta-feira. É gente que não tem tempo a perder com as classes privilegiadas ou as pretensões feudais dos apoiadores do governo — Amin Gemayel, pai do ministro da Indústria assassinado, Nayla Moawad, viúva de um presidente libanês assassinado, Saad Hariri, filho do assassinado ex-primeiro ministro Rafik Hariri, e Walid Jumblat, filho do líder druso assassinado Kamal Jumblat.



Quem está no coração dos sunitas



Caso a política e a história do Líbano não fossem tão trágicas, haveria nisso um toque de Gilbert e Sullivan (referência a uma parceria de autores de óperas cômicas da Inglaterra vitoriana). O senhor Siniora hoje é visitado regularmente pelo atarefado embaixadorzinho Jeffrey Feltman. Mas um dos predecessores do senhor Feltman disse poucos anos atrás que o visto de entrada de Siniora nos EUA não era válido, pois ele, Siniora, era tido como tendo dado dinheiro para uma entidade beneficiente associada com — sim — o Hezbolá. E houve mais de um sorriso de escárnio quando o senhor Qassem anunciou que o senhor Siniora trabalhava para os americanos e israelenses.



“Morte aos EUA, morte a Israel”, ele bradou, e naturalmente a massa de manifestantes repetiu sua gasta retórica.  Para as nações árabes que dão apoio ao governo Siniora,a mensagem de Qassem foi simples: “Somos nós e não vocês quem está no coração dos sunitas do mundo árabe”.



O perigo para Siniora é que a convicção de Qassem provavelmente está correta. Com efeito havia um quê de revolução no ar neste domingo, quando os pobres, a juventude das aldeias e o povo dos cortiços de Beirute convergiram para a Praça dos Mártires, onde a tumba de Hariri se achava isolada por um cordão.



Leila Tueni, a filha de mais um líder político libanês assassinado, o jornalista Jibran Tueli (anti-sírio, como todas as vítimas), declarou a apenas algumas centenas de metros dos protestos que o verdadeiro motivo de Nasrallah para querer derrubar o governo Siniora, cujos ministros xiitas renunciaram, era impedir a aprovação de um tribunal da ONU para processar os assassinos de Hariri. Ela e o resto dos apoiadores de Siniora acreditam que estes incluem alguns dos aparatchiks de alto escalão do serviço de inteligência da Síria.



Temores de guerra religiosa



Porém algo ainda mais perigoso foi deixado de lado ontem. O tamanho da multidão aparentemente permitem que Qassem e Aoun reclamem um governo diferente, ou rival. Porém não foram os xiitas e sim os simpatizantes de Siniora que venceram as últimas eleições no Líbano. Se esse resultado eleitoral já não é válido, o que isso indicaria sobre o respeito do Hezbolá pela política eleitoral e a Constituição do Líbano?



As crescentes divisões xiitas-sunitas neste país refletem, numa versão pálida mas também assustadora, a tragédia das duas confissões religiosas na Mesopotâmia (Iraque). Xiitas atacaram duas vezes o subúrbio sunita de Tarek al-Jdeide, em Beirute, onde foi assassinado um xiita convertido em mártir pela oposição; o mufti da mesquita sunita de Qoreitem é acusado de atacar os imãs históricos xiitas, Ali e Hussein.
Jumblat foi convidado por estudantes da Universidade Libanesa a permanecer em casa, após um confronto entre alunos xiitas e sunitas. “Esta universidade é para todos os libaneses”, insistiu Jumblat. Mas… e o Líbano?



* Correspondente no Oriente Médio do diário
britânico Independent; intertítulos do Vermelho



Fonte: http://news.independent.co.uk/world