Eros Grau viu “sabor de totalitarismo” na cláusula de barreira

“Uma lei com sabor de totalitarismo. Bem ao gosto dos que apoiaram a cassação de mandatos e de registro de partido político” durante a ditadura, foi como o ministro Eros Grau classificou a cláusula de barreira, ao ler seu voto no Supremo Tribunal Federal

“Da cláusula de barreira diz Marcello Cerqueira, em exposição proferida em congresso de Direito Constitucional realizado no mês de novembro que passou: “Essa cláusula (barreira, exclusão, desempenho), abolida com a redemocratização, em 1985, agora retorna (aparentemente agravada) na Lei 9.096/95 (…) Introduz-se, no Direito Constitucional, norma de exceção em face da qual está previamente censurada a liberdade partidária, a possibilidade de expressão de correntes e pensamentos políticos que não se enquadrem na ‘propalada’ regra iníqua que implica negar seu aperfeiçoamento em uma sociedade complexa e diferenciada. É como um jardineiro que impede que flores novas desabrochem e se poupe de apenas regar antigas ervas, que podem ser daninhas”.



Essa cláusula, designa-a o eminente professor como “corredor da morte das minorias políticas”.



A Constituição do Brasil afirma como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil o pluralismo político [art. 1º, V]. Por outro lado, os partidos políticos com representação no Congresso Nacional são titulares de legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança coletivo e ação direta de inconstitucionalidade [arts. 5º, LXX e 103, VIII]. Todos os partidos políticos, todos eles, sem distinção de nenhuma ordem, desde que estejam representados no Congresso Nacional.



Essa lei na ADI impugnada faz porém distinções entre os partidos, tratando-os de modo diferenciado. Isso de modo a entrar em testilhas com o disposto no artigo 17 e §§ da Constituição. De sorte a agravar mesmo o direito de associação, objeto de garantias estipuladas nos incisos XVII, XVIII e XIX do artigo 5º da Constituição.



A lei, de modo oblíquo, reduz a representatividade dos deputados eleitos por determinados partidos, como que cassando não apenas parcela de seus deveres de representação, mas ainda — o que é mais grave — parcela dos direitos políticos dos cidadãos e das cidadãs que os elegeram. Para ela, o voto direto a que respeita o artigo 14 da Constituição do Brasil não tem valor igual para todos. Uma lei com sabor de totalitarismo. Bem ao gosto dos que apoiaram a cassação de mandatos e de registro de partido político; bem ao gosto dos que, ao tempo da ditadura, contra ela não assumiram nenhum gesto senão o de apontar com o dedo. Não apenas silenciaram, delataram…



Uma lei tão adversa à totalidade que a Constituição é, tão adversa a esta totalidade que o mesmo partido político pelo qual poderá ter sido eleito o Chefe do Poder Executivo será, sob a incidência de suas regras, menos representativo do que os demais partidos no âmbito interno do Parlamento.



Múltipla e desabridamente inconstitucional, essa lei afronta o princípio da igualdade de chances ou oportunidades, corolário do princípio da igualdade. Pois é evidente que seria inútil assegurar-se a igualdade de condições na disputa eleitoral se não se assegurasse a igualdade de condições no exercício de seus mandatos pelos eleitos.



Discorrendo sobre as maiorias e o despotismo da maioria, sobre o absurdo de uma maioria fixada meramente por via matemática e estatística, Carl Schmitt afirma a necessidade de pressupor-se, sempre, um princípio de justiça material, se não quisermos ver desmoronar de uma só feita todo o sistema da legalidade. Esse princípio é o da igualdade de “chance” para alcançar aquela maioria, aberta a todas as opiniões, a todas as tendências e a todos os movimentos concebíveis. Sem esse princípio, a matemática das maiorias seria um jogo grotesco, um insolente escárnio. Quem obtivesse a primeira maioria a deteria para sempre — seu poder seria permanente.



Quase à mesma época Herman Heller afirmava, significativamente, que o parlamentarismo descansa de modo muito especial em um conteúdo comum de vontade que integra todas as oposições. Pois essa unidade política deve realizar-se, como sua essência requer, em condições da maior liberdade e igualdade de possibilidades de atuação política para todos os grupos.



Anoto ainda aqui, parenteticamente, que há vinte anos sobre esse mesmo princípio escreveu o Ministro Gilmar Mendes, em artigo publicado na RDP número 82, então discorrendo sobre a jurisprudência constitucional alemã.



A igualdade de chance em verdade não acresce sentido inovador à igualdade. Antes, pelo contrário, desdobra-se da sua própria raiz. Igualdade significando isonomia não apenas entre partidos, porém, sobretudo, entre eleitores. Isonomia com a qual a Lei n. 9.096/95 é de todo incompatível.



Julgo procedente a ADI.”



* Até esta segunda-feira (11) o sítio do STF (http://www.stf.gov.br) ainda não fornecia a íntegra do voto do relator do julgamento, ministro Ministro Marco Aurélio Mello, que fundamentou a decisão unânime; assim que seja possível o Vermelho reproduzirá na íntegra este importante documento de defesa da liberdade partidária no país