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O difícil caminho da democracia: crítica da legislação eleitoral e partidária do Pós-85 (4)

Na última parte da série sobre legislação escrita por Luiz Carlos Orro, o autor trata da lei eleitoral. No artigo, Orro afirma que “as normas legais não apenas disciplinam os processos eleitorais; mais que isso, exercem forte influência sobre o resultado

A Lei Eleitoral


Luiz Carlos Orro de Freitas*




Não se pode olvidar que, por ocasião das eleições, repetem-se, tanto na lei eleitoral, como nas Resoluções emanadas do TSE, as discriminações que afrontam os elementares princípios de democracia e isonomia.


Nesse particular, tal como vinha de ocorrer no período 1964-1985, o casuísmo tem sido a tônica: editou-se uma lei para cada eleição realizada depois de 1985, à exceção dos pleitos de 1998 e o do ano corrente, ambos regidos pela lei 9.504/97.


É preciso reafirmar sempre que as normas legais não apenas disciplinam os processos eleitorais; mais que isso, exercem forte influência sobre o resultado dos pleitos, pois as mesmas não são neutras, pelo contrário, refletem os interesses do poder político da qual se originaram. A codificação dos efeitos políticos da legislação eleitoral deve-se a Douglas W. Era, em The Political Consequences of Electoral Laws, segundo Lima Júnior, onde se afirma que as leis eleitorais é que vão definir os mecanismos que traduzem preferências eleitorais em poder político institucionalizado.


Pode-se mesmo afirmar que as elites brasileiras cuidaram de erigir uma democracia a “conta-gotas”, sempre dosando medidas e contramedidas tendentes à preservação do status quo. Evidente que os diversos diplomas eleitorais objetivavam, em primeiro lugar, conter o crescimento de partidos outros, principalmente das correntes de esquerda. Por isso, repetiu-se o surrado expediente de a cada eleição, uma lei.


De saída, apesar das críticas que lhe são feitas, há de se aplaudir a edição da Lei 9.504, em 1997. A concepção que norteou a construção legislativa eleitoral atual difere das que lhe antecederam desde 1985, justamente pela pretensão de que venha ela a se tornar uma lei eleitoral permanente. A medida é salutar, no sentido de pôr fim ao casuísmo construído a cada ano eleitoral. Antes do seu surgimento, foram nove os diplomas legais a reger as eleições realizadas entre 1985 e 1996, aí se incluindo a Lei de Inelegibilidades (Lei Complementar 64/90), que é sofrível em vários aspectos.


Andou bem o legislador ao inserir na atual lei a obrigatoriedade do candidato ter filiação partidária e domicílio eleitoral um ano antes do pleito, como condição de elegibilidade, que é prevista constitucionalmente. De se aplaudir, pela relevância das inovações que traz, é a Lei 9.840/99, nascida de iniciativa popular, sob inspiração da Igreja Católica, que coletou mais de 1,5 milhão de assinaturas em todo o país. Está tendo no ano em curso sua primeira experimentação prática de possibilitar o banimento da praga da compra de votos, do abuso de poder econômico e político, pois dotou os órgão da Justiça Eleitoral de mecanismo eficiente e célere – a investigação judicial- para ordenar, observado o devido processo legal, a cassação de registros de candidatos e até mesmo de diploma dos que forem condenados após a posse. Cabe lamentar, no entanto, que permanece vigente até os dias de hoje, em grande parte dos seus dispositivos, principalmente nos de ordem formal, processual, o Código Eleitoral (Lei 4.737/65), herança do período militar, o que ainda está a reclamar moderna e corajosa solução.


Isso posto, vejamos como se alteraram as regras da disputa eleitoral ao longo do período. O prazo entre a homologação de candidaturas, em convenções partidárias, e o dia do pleito, encurtou consideravelmente. Já foi de 150 dias, como na eleição de 1986, quando se elegeu a Assembléia Nacional Constituinte que aprovou a atual Carta Política. Esteve em 120 dias, como nas eleições de 1985, 1898, 1994 e 1996.


Em 1992, houve o mais curto período de campanha: apenas 45 dias. Pela lei atual, é de menos de 90 dias o período de campanha, que só pode ser iniciada a partir de 6 de julho do ano eleitoral, pena de pesadas multas. Note-se que as disposições das leis anteriores, combinadas com o previsto no Código Eleitoral, artigos 240 a 256, permitiam a propaganda eleitoral a partir da realização da convenção partidária, o que hoje é vedado. Menor prazo para a campanha, menor prazo para se aprofundar o debate sobre os problemas econômicos, sociais, administrativos, em nível local ou nacional. Os donos do poder parecem não gostar da crítica das ruas, da possibilidade de mobilização intensa da população, de ver debatidas e esmiuçadas mazelas e fracassos da administração pública. Daí, com certeza, a opção por um menor prazo para a campanha. É intrigante a contradição que exsurge da pesquisa realizada: ainda no período ditatorial, ordenou a lei que as convenções partidárias fossem realizadas 6 meses (180 dias) antes das eleições que ocorreram em 1982.


Alia-se a isso uma menor campanha pelo rádio e televisão, os dois mecanismos mais eficientes para se atingir o eleitorado. Em 1985, 1984 e 1986, foram 60 os dias de campanha eletrônica, agora fixados em apenas 45 dias. Definitivamente, as elites políticas não parecem querer maior discussão em época eleitoral. Mais grave ainda é o critério legal de distribuição do horário para propaganda eleitoral gratuita.


No pleito de 1985, adotou-se critério bastante democrático: metade do tempo, de 1 hora, foi dividido igualmente entre todos os candidatos, outra metade na proporção das bancadas das Câmaras Municipais. Eram tempos de conquistas democráticas, ainda com poucos partidos figurando no cenário político. Já em 1988, apenas 5 minutos de 1,5 hora diária foram divididos por igual entre os partidos sem representação no Congresso, e outros 25 minutos também distribuídos igualmente, mas apenas para partidos que contassem com representação federal.


Em 1996, apenas 1/5 do tempo foi distribuído por igual, sendo os outros 4/5 divididos na proporção das bancadas da Câmara dos Deputados. Federal. Em aberta ofensa ao princípio da isonomia, da igualdade na disputa pelo voto, a Lei 9.504/97 estipula que apenas 1/3 do tempo distribuir-se-á por igual, sendo o restante repartido segundo a representação existente na Câmara dos Deputados. E mais: pretenderam os legisladores de 1997 excluir da participação no horário gratuito os candidatos cujos partidos não contassem com Deputados Federais eleitos no último pleito. O TSE, em louvável decisão, apreciando representações do PRONA e do PSTU, negou aplicação ao malsinado dispositivo 29, por flagrante inconstitucionalidade. Assim foi que os candidatos desses partidos tiveram voz, inclusive o folclórico Enéas, que, com votação reduzida à insignificância de suas propostas – a bomba atômica brasileira, por exemplo – nenhum mal trouxe ao aperfeiçoamento da democracia brasileira.


Quanto às coligações, parece sedimentado preceito de índole democrática, de permiti-las. Via de regra, o instituto foi autorizado por todas as leis eleitorais editadas desde 1985, em que pese naquele ano, e, em 1996, ter sido aprovada a obrigatoriedade da coligação ser majoritária e proporcional, camisa-de-força a serviço dos grandes partidos, a quem, em geral, cabe indicar o cabeça de chapa. Já nas demais regências, com soe acontecer na atual lei eleitoral, é facultada a celebração de coligações nas eleições majoritárias, ou nas proporcionais, ou em ambas. Elogiável, nesse sentido, a complementação normativa oriunda do TSE, que, interpretando a lei, possibilitou inclusive o concerto de coligações várias no âmbito proporcional, desde que integradas pelos mesmos partidos abrigados no guarda-chuva  da coligação majoritário.


Em conclusão, há ainda longo caminho a percorrer no aperfeiçoamento da experiência democrática hodierna. Faz-se necessário varrer do ordenamento jurídico eleitoral e partidário os dispositivos que se caracterizam como lex ad persona, que se destinam não à generalidade dos partidos, mas apenas àqueles aos quais interessam certos fatos passados – a eleição de grande bancada federal no pleito imediatamente anterior. A permanência dos diversos preceitos ad hoc fragiliza o processo democrático, não confere estabilidade a uma convivência sadia e construtiva entre as diversas correntes políticas.


Há os que anotam a fragilidade do sistema partidário brasileiro, que estaria em processo de profunda erosão. A erosão do atual quadro partidário e o desnorteamento quanto às perspectivas futuras, para serem vencidos, necessitam de mais ampliação da democracia, e não de mais restrições e arbitrariedades. A par das chagas aqui apontadas, o regime de liberdade está a sofrer severa ameaça, com a propalada reforma política e partidária acalentada por Fernando Henrique e pelos partidos que lhe dão sustentação política e parlamentar. A vigência plena da cláusula de barreira há que ser anulada, e não antecipada, como querem os atuais donos do poder.


Frise-se que, nem mesmo a ditadura militar conseguiu implantar o mecanismo antidemocrático, também chamado de cláusula de desempenho. No período da abertura política, com o esgarçamento das bases de sustentação do regime de exceção, partidos recém-criados, como o PDT, PTB e PT, só não perderam sua representação política devido à suspensão das regras do parágrafo 3º, artigo 152 da Constituição (introduzido pela Emenda Constitucional 11, de 13 de outubro de 1978), que exigiam um mínimo de 5% da votação nacional para a Câmara dos Deputados, recolhidos em pelo menos nove Estados, com um mínimo de 3% em cada unidade federativa.


Nos dias de hoje, existem os eternos copiadores de experiências forâneas, que enamorados pelo modelo eleitoral e partidário alemão apontam como solução a implantação imediata da barreira de 5% e do voto distrital misto. Novamente, medidas que têm destinatários certos, visto que vão beneficiar os atuais grandes partidos, ao passo em que representarão obstáculo ao crescimento de outros partidos, principalmente aqueles de esquerda. Evidente que tal sistema eleitoral beneficia sobejamente o poder econômico, uma vez que metade dos parlamentares passará a ser eleita em eleição majoritária, como ocorre atualmente com os Senadores.


Ao reforço da tese, Lima Júnior já analisou as vantagens do sistema proporcional sobre o majoritário. O autor registra ainda que, também durante a ditadura, tentou-se a implantação do sistema distrital misto de representação no Legislativo, através da Emenda Constitucional 22, de 29 de junho de 1982, que terminou revogada em 15 de maio de 1985, via da Emenda Constitucional 25. Como se vê, tais propostas não constituem novidades, são velhos expedientes dos quais já lançaram mão ditadores de outrora.


Como já vivenciado nos últimos tempos, até mesmo uma questão que, à primeira vista parece insignificante, como por exemplo, incluir-se ou não os votos em branco no cálculo do quociente eleitoral para as eleições proporcionais, opera mudanças decisivas no quadro dos eleitos, pelo que Lima Júnior vai dizer que “Aos maiores partidos é atribuída a parcela maior de poder do que aquela efetivamente autorizada pelo eleitorado. Aos partidos menores é atribuída menor parcela de poder do que a pretendida pelo eleitorado. Partidos com votações menos expressivas podem até mesmo ter sua representação cassada no cálculo eleitoral”. Efetivamente, isso ocorreu em todo o período pós-85, distorcendo o resultado das urnas, quando em torno de 40 cadeiras de Deputado Federal, do total da Câmara, eram apossadas pelos grandes partidos em detrimento de outros que obtinham baixa votação e não perfaziam o quociente eleitoral, que o voto em branco tornava artificialmente alto.


Por isso é que não há como discordar de Lima Júnior, que assevera que “As diversas formas de distorção da representação política geradas pelo cálculo eleitoral violam o princípio da soberania popular e da representação nas democracias liberais, pois o ideal da igualdade política perante a lei é desrespeitado, o que atinge os atores essenciais do processo eleitoral – partidos e candidatos, e eleitores. Nesse sentido, é correto postular que um sistema eleitoral será tanto mais democrático quanto melhor assegurar a igualdade política dos atores envolvidos no processo eleitoral.”


A aberração do voto branco contabilizado na eleição proporcional só recentemente foi expurgada, justo com a Lei Eleitoral 9.504/97. Observe-se ainda que nenhuma lei do período jamais incluiu o voto em branco na eleição majoritária, para fins de apurar-se a necessidade ou não de realização de segundo turno.


A controvérsia acerca de qual será o quantitativo ideal de partidos em funcionamento no país não deve ser resolvida por decreto, por meio de imposição de restrições antidemocráticas. É falsa e avessa aos ideais democráticos a solução proposta por alguns dos expoentes dos que hoje são grandes partidos, no sentido de que o ideal seria uma democracia, já nem tanto liberal, com apenas uns cinco ou seis partidos realmente competitivos, onde o restante, que se fundam entre si, num processo de imolação política, ou permaneçam numa espécie de limbo, como partidos de 3ª classe, aqui já referenciados.


O problema talvez resida justamente em que, na tradição republicana brasileira, o eleito seja mais prestigiado que o partido que lhe deu legenda, muitas vezes se tornando este um mero instrumento para a obtenção de mandatos. Ausente o instituto da fidelidade partidária, “após a eleição, como o mandato pertence exclusivamente ao representante “do povo” e deixou de ser partilhado com o partido, o parlamentar possui total autonomia e independência política”.


Para refrear a criação de partidos motivada por interesses menores, duas medidas básicas se fazem necessárias. A primeira, já iniciada pela Lei 9.504/97, diz respeito ao prazo de filiação partidária, estipulado em um ano antes do pleito. Para fortalecer as estruturas partidárias, seria de bom alvitre um prazo mínimo de dois anos de filiação. A convivência interna mais longa, a prática do trabalho de doutrinação, de construção e reforçamento da estrutura partidária possibilitaria experimentar potencialidades, qualidades e defeitos dos filiados. Assim, as questiúnculas interna corporis, verdeiras brigas de famílias e compadres, em muitas das vezes, poderiam ir dando lugar a partidos mais estáveis, com perfil político-ideológico mais definido, com estrutura tendendo ao permanente e não às acomodações que vêm ocorrendo nos anos anteriores aos pleitos. Junte-se a essa uma segunda iniciativa, de se aprovar a fidelidade partidária.

Assim, o mandato conquistado pertenceria ao partido, entidade basilar da democracia, e não ao indivíduo eleito, que, ao desligar-se da legenda, para ela deixaria o mandato, a ser assumido por suplente do partido ou coligação. Em pouco tempo, não haveriam mais os tais partidos de aluguel; findar-se-ia o muda-muda de partidos que se assiste a cada início de legislatura nas casas parlamentares.


Então? Onde está o problema nodal? Nos grandes ou nos pequenos partidos?
Se em 1985 os três maiores partidos (PMDB, PDS, PP, entre seis) detinham 91% das cadeiras da Câmara dos Deputados37, em 1990 esse percentual caiu para 58% (PMDB, PFL, PSDB, em um total de 22 partidos representados). Já em 1998, apenas 18 partidos elegeram deputados federais, sendo que os três maiores (PFL, PSDB e PMDB) perfaziam apenas 56% das cadeiras. Certamente por serem os principais beneficiários da existência dessas legendas-apêndices, ao amealhar a cada ano, para engordar suas bancadas, parlamentares que não elegeram, são os grandes partidos justamente os menos interessados em ver aprovadas tais medidas, preferindo prosseguir em suas maquinações contra a democracia, talvez lutando contra uma tendência histórica inexorável, a do crescimento do voto progressista.




*advogado, consultor jurídico legislativo em Goiânia e delegado Nacional do PCdoB junto ao TSE
 



BIBLIOGRAFIA
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Trabalho acadêmico apresentado para obtenção do título de especialista em Políticas Públicas pela UFG (Departamento de Ciências Sociais), em agosto de 2000.
Texto inserido no Jus Navigandi nº 543 (1.1.2005).
Elaborado em 08.2000.