Depois da vitória: para onde vai a revolução venezuelana?

Por Bernardo Joffily
Um único boletim parcial da apuração dos votos na eleição presidencial da Venezuela decidiu a parada: graças à votação e apuração eletrônicas, cinco horas depois do fechamento das urnas já se conhecia 78,3% dos votos e também o ven

Diversas variáveis incidem sobre esta pergunta — políticas, sociais, econômicas e outras. A maioria favorece o avanço do projeto. Mas há também pontos frágeis. Vejamos algumas das variáveis mais importantes.



Oito anos de votações crescentes



A votação deste domingo foi a mais chavista das quatro que Hugo Chávez já ganhou (afora outras cinco de caráter parlamentar ou regional).



Na primeira delas, em dezembro 1998, o coronel do exército recém-saído de dois anos de prisão teve 56,2% dos votos. Seu principal concorrente chegoiu a 40,0%.



Na segunda, em julho de 2000 (após os trabalhos da Constituinte de 1999 e a promulgação da Constituição Bolivariana), chegou a 59,8%. O adversário a 37,5%.


No histórico referendo revogatório de 15 de agosto de 2004 (que não foi propriamente uma eleição presidencial, mas teria poderes para derrubar o presidente), também: teve 59,1%.



 Desta vez, conforme a parcial de quase quatro quintos dos votos, subiu para 61,4%. O arversário, Manuel Rosales, teve 38,4%.



Um movimento do povo trabalhador



Este resultado é ainda potenciado pelo comparecimento sem precedentes. O presidente que fez campanha para se reeleger com “mais de 10 milhões de votos”, o que parecia impossível num país com tradição abstencionista de 35% a 40%, deve chegar ao fim da apuração com  mais de 12,5 milhões de votos.



Além de consolidar uma maioria crescente, Chávez assiste a um descenso histórico da oposição que o enfrenta, basicamente conservadora, para não dizer direitista, e pró-americana. À luz das últimas semanas, esta até recuperou algum terreno: conseguiu se unir em torno de Rosales e livrar-se de um resultado ainda pior. Mas ao longo dos últimos anos, desde o golpe fracassado de abril de 2002, é visível o seu refluxo.



Há sinais de que o chavismo, nascido na oficialidade patriótica das forças armadas, consolidou-se hoje no povo trabalhador. Este cada vez mais veste a camiseta vermelha bolivariana, vota no “comandante” e acompanha com simpatia seu longo programa dominical de TV, o “Alô Presidente”. A velha central sindical CGV, um braço da oposição entre os trabalhadores, foi desbaratada dando lugar a um sindicalismo chavista, ainda incipiente e precário. A juventude jogou um papel importante na campanha de 2006. Mesmo as convicções oposicionistas das camadas médias dão sinais de erosão.



Aspectos mais favoráveis na cena externa



A cena internacional é outra variável que favorece o avanço bolivariano. Quando Chávez chegou ao Palácio de Miraflores, Fernando Henrique Cardoso presidia o Brasil, Carlos Menem a Argentina, o general Hugo Banzer a Bolívia, Alberto Fujimori o Peru, Julio Sanguinetti o Uruguai, Jamil Mahuad o Equador. Chávez era um estranho no ninho. Oito anos mais tarde, o mapa político sul-americano está quase coimpletamente subvertido em seu favor.



Por outro lado, os Estados Unidos do presidente George W. Bush, que Chávez gosta de chamar de “o Diabo”, não são exatamente o que eram. Desgastaram-se no atoleiro bélico iraquiano, e, conseqüentemente, perderam a maioria para os democratas tanto na Câmara como no Senado, nas eleições do mês passado.



É possível ver um nexo entre isso e a recente declaração do subsecretário do Estado americano para a América Latina, Thomas Shannon, reconhecendo que as instituições democráticas funcionam na Venezuela. Chávez retribuiu neste domingo, depois de votar,  dizendo que “São bons sinais que vêm dos Estados Unidos”, e que “com todos querermos ter boas relações, inclusive com os Estados Unidos”.



Isto seria impensável ainda em setembro. Foi quando Chávez começou a chamar Bush de “o Diabo”. E quando a Casa Branda revidou detendo por algumas horas o ministro das Relações Exteriores venezuelano, Nicolás Maduro, no Aeroporto de Nova York. É cedo para dizer se há aí o início de uma distensão. Mas não é impossível que haja, até porque a política de associar Chávez a um “Eixo do Mal” latino-americano nada rendeu aos EUA.



Petróleo também ajuda…



A variável econômica também favorece o avanço bolivariano. Os anos de 2002 e 2003 foram desastrosos, com quedas de quase dois dígitos no PIB (Produto Interno Bruto), devidas sobretudo à sabotagem patronal e dos quadros dirigentes da estatal do petróleo, a PDVSA. Mas já em 2004 o PIB cresceu 17,3% (!); em 2005 foram 9,3%; para 2006, a projeção é de 6,9%.



Pesa aí a conjuntura criada pela alta dos preços internacionais do petróleo, que representam, três quartos das exportações venezuelanas (que se concentram… nos EUA). É com o dinheiro do petróleo que o governo Chávez sustenta seus ousados projetos sociais, como o de alfabetização, o de saúde, o dos mercados populares, o da reforma agrária.



É igualmente o petróleo em alta que banca gestos de política externa que vão da ajuda a Cuba à criação da rede de TV Telesur, à iniciativa de implantação da Alba (Aliança Bolivariana das Américas), à realização do Fórum Social Mundial de 2006 em Caracas, à construção da refinaria venezuelano-brasileira de Pernambuco e ao projeto do supergasoduto ligando a Venezuela à bacia do Prata.



A revolução encontra seu discurso estratégico



Além disso, a revolução bolivariana encontrou um discurso estratégico, ao assumir a luta por um “socialismo do século 21” e “latino-americano”. A posição anterior do bolivarianismo e do seu comandante era explicitamente de “terceira via”, com todas as debilidades que isso acarreta.



Chávez assume a autocrítica sem rodeios, como fez à véspera da eleição, em uma entrevista que durou três horas, inclusive com a Venevisión, uma espécie de Globo venezuelana). Além de Simón Bolívar, cita agora Eduardo ganeano e Carlos Mariátegui, para pregar um “socialismo latino-americano, que tome como vertente principal o indigenismo de nossas terras” (clique aqui para ver).



O calcanhar de Aquiles



Todas estas variáveis propícias conspiram a favor do avanço do processo, que merece, à sua moda, o nome de revolucionário. A formidável vitória deste domingo resultou delas.



No entanto, assim como a solidez de uma corrente é determinada pelo seu elo mais frágil, e a Venezuela bolivariana mostra também um calcanhar de Aquiles.
“O calcanhar de Aquiles do processo venezuelano é que não conta com instrumentos políticos adequados às transcendentais tarefas que se propõe a realizar”, garantia, logo depois do referendo, a escritora chilena Marta Harnecker, hoje presença marcante em Caracas. Para superar essa fraqueza crônica, ela elencava vários desafios políticos, econômicos, institucionais e comunicacionais.



Às vésperas da eleição, Marta Harnecker voltou a esta tecla. “O velho modelo de Estado continua de pé e com muita força, apesar das intenções de Chávez. E o mesmo acontece com o flagelo da corrupção. Avançou-se muito pouco, ou nada, na estruturação de um instrumento político mais adequado aos grandes desafios do processo revolucionário bolivariano. Continua, e talvez se tenha acentuado, a disputa por cargos nos diferentes níveis de direção. A direção eleitoral Miranda, criada para dirigir o processo eleitoral presidencial de 3 de dezembro, foi hegemonizada pelo Movimento V República (MVR), provocando mal-estar nos demais partidos políticos e na população. Na construção de um instrumento unitário dos trabalhadores, em lugar de se avançar retrocedeu-se. Há demasiada dispersão. Os velhos métodos continuam em vigor”, criticou, sem piedade, a pensadora marxista (clique aqui para ler o artigo).



Um debate em plena ebulição



No fundo, o “instrumento político” de uma revolução é o partido revolucionário. O bolivarianismo criou o seu partido, o MVC, com resultados eleitorais notáveis, mas também com as fraquezas que o parágrafo acima aponta. Nestas circunstâncias, o processo venezuelano depende em enorme medida da figura do “comandante”, que é um comunicador sensacional, um dínamo incansável, um homem de princípios e comprovadamente capaz de aprender, mas, afinal, um homem, incapaz portanto de substituir o “instrumento político” coletivo e estruturado.



Este é um debate em plena ebulição na Venezuela, onde recebe com freqüência o nome de “construção do estado-maior da revolução”, com participação decisiva do próprio Hugo Chávez. Seu objetivo é a edificação da força organizada capaz de dar ossatura ao imenso movimento social e político iniciado em 1998. Tira partido das variáveis propícias citadas, e ao mesmo tempo as potencia, para que a revolução bolivariana se consolide e triunfe.