Venezuela, 3 de dezembro: trunfos e limites bolivarianos

Por Marta Harnecker, de Caracas*
No vitorioso processo revolucionário bolivariano, as tentações golpistas da oposição e dos EUA têm esbarrado num exército que se encontra esmagadoramente envolvido na defesa da legalidade revolucionária e democrática.

As duas vitórias de 2002



O fracasso do golpe militar de Abril de 2002 (mais de 80% dos generais da cadeia de comando mantiveram-se fiéis a Chávez e à Constituição) constitui a primeira grande derrota da oposição e um verdadeiro brinde para Chávez.



Estas circunstâncias permitiram que os atores tirassem as máscaras e o povo adquirisse um  nível político muito mais elevado (dentro das forças armadas e entre os quadros civis já se sabe com quem se conta e com quem se não conta). Criaram o terreno propício para avançar na depuração da instituição militar. Dividiram a oposição. Proporcionaram a recuperação de setores cada vez mais numerosos das camadas médias, que antes estavam contra o processo, ao verificarem a anarquia a que poderia conduzir a marginalização de Chávez.



A intenção frustrada de paralisar o país em 2 de dezembro de 2002 foi a segunda grande derrota da oposição. O país não parou. Chávez não vergou. E, mais importante, a indústria petrolífera passou a partir daí realmente para o controle do Estado venezuelano. Este foi o segundo grande brinde da oposição. Pela sua atitude subversiva, sabotadora, cerca de 18 mil quadros de nível alto e médio, opositores do governo e que de fato exerciam o controle da empresa petroleira PDVSA, criaram as condições legais para serem despedidos.



A vitória de 2004



A ratificação do mandato do presidente Chávez no referendo revocatório de 15 de agosto de 2004 – um processo inédito na história mundial – foi a terceira grande derrota que sofreu a oposição venezuelana. O triunfo de Chávez com uma enorme diferença de votos (6 milhões contra 4 milhões), perante o olhar atento de observadores internacionais que ratificaram unanimemente os seus resultados, foi o terceiro brinde da oposição. Ninguém podia mais duvidar do caráter democrático do governo.



Como observou entre outros Eduardo Galeano, conhecido escritor uruguaio, o referendo foi “uma injeção de optimismo neste mundo onde a democracia está tão desprestigiada” por ter sido incapaz de resolver o problema da pobreza.



Esta não foi a vitória de um homem mas de um projeto humanista e solidário, tanto na sua projeção nacional como internacional; de um projeto de país que se levanta como alternativa ao modelo liberal, voraz e predador: um modelo de desenvolvimento endógeno e de economia social.



Foi o triunfo da atual Constituição venezuelana, a única Constituição do mundo que contempla a figura do referendo revocatório do mandato presidencial.



Mas foi sobretudo, a vitória do povo, da organização popular, das pessoas dos bairros pobres, mas também da classe média, que respondeu ao chamado do presidente para se organizar em todos os lugares, tomando a iniciativa, sem esperar que os organismos de condução da campanha fossem constituídos.



Nova etapa: os conselhos comunais



Com este triunfo começa uma nova etapa do processo revolucionário bolivariano. Os guerreiros midiáticos ficaram sem munição. A oposição deixou cair a máscara, perdeu muita credibilidade, agudizaram-se as lutas internas entre suas frações.



A oposição foi derrotada nessa batalha, mas era evidente que as forças partidárias de Chávez não tinham ganho a guerra. Não se podia esquecer que num país de 26 milhões de habitantes, cerca de 4 milhões votaram pela revogação do mandato. Também não se podia esquecer as expectativas que o triunfo ia criar naqueles 6 milhões de pessoas que votaram pelo “Não” à revogação.



Os desafios a enfrentar nesta nova etapa eram muito variados, como escrevemos poucas semanas depois do referendo num trabalho para a Monthley Review (Venezuela: Uma revolução sui generis, 2004).



O processo revolucionário bolivariano devia dar um salto qualitativo na participação e protagonismo do povo. A idéia força mais importante do presidente Chávez: “a pobreza não poderá ser eliminada se não se entregar o poder ao povo” devia materializar-se em formas organizativas e participativas concretas.



E em parte assim se fez. Surgiu a figura dos conselhos comunais, Realizando um cálculo aproximado, estimou-se que a Venezuela podia ter cerca de 25 mil comunidades. E cada uma delas devia eleger uma instância que fizesse as vezes de um governo comunitário. A esta instância chamou-se conselho comunal, e há hoje uma lei que o sustenta, promulgada em abril deste ano. Em poucos meses em quase um quarto do país estavam constituídos os conselhos comunal e a maior parte deles tinham recebido apoio do governo para a realização de pequenas obras que consideravam prioritárias. Esta medida estimulou enormemente a participação.



No entanto, pouco se avançou noutra medida participativa fundamental: o orçamento participativo municipal. As prefeituras e executivos, com raras excepções, continuam a decidir que obras executar sem a participação dos munícipes. Será tarefa do próximo governo dar um forte impulso a este processo, que é uma arma muito importante na luta contra a corrupção e a ineficácia.



Papel do Estado num novo modelo



É também indispensável avançar no desenvolvimento de um novo modelo produtivo alternativo e para isso considero essencial a iniciativa estatal. A meu ver é preciso ir consolidando grandes empresas estatais em áreas estratégicas: petróleo, eletricidade, telecomunicações, finanças, distribuição alimentar e transportes.



Nestes anos, já se avançou bastante neste caminho. A Venezuela transformou-se de um país financeiro, exportador de matérias-primas, num país com uma sólida base agrícola e industrial, produtor de bens e serviços de consumo popular.



Procurou-se um maior equilíbrio territorial através dum desenvolvimento harmônico e proporcional entre as regiões, para superar o esvaziamento e colapso das cinco cidades que concentram 75% da população. Exemplos disso são a Cidade do Aço no Estado Bolívar, onde estão sendo instaladas quatro indústrias básicas, e o pólo de desenvolvimento endógeno Caicara-Cabruta nas margens do Rio Orinoco.



Está se criando, por outro lado, uma nova geração de empresas básicas orientadas para aprofundar o desenvolvimento endógeno. Refiro-me à criação da Companhia Nacional de Indústrias Básicas (Coniba) e às suas onze filiais, e à Corporação Petroquímica da Venezuela (Pequiven), que pretende fortalecer capacidades tecnológicas inovadoras para transformar matérias-primas em produtos de crescente valor agregado, que permitam substituir importações e diversificar a oferta exportável. O Estado também está investindo nas indústrias estratégicas, como as telecomunicações (CVC Telecom) e aquelas que têm a ver com a segurança e a soberania alimentar, como a Corporação Venezuelana Agrária (CVA), casa matriz de novas empresas do setor agrícola.



Economia popular: novas relações



Apesar disso, colocávamos, em setembro de 2004, como necessidade o desenvolvimento em grande escala da economia popular, através de cooperativas e associações dos mais diversos tipos que permitissem a participação com protagonismo dos trabalhadores no processo, para assim se ir alcançando uma transformação das relações de produção.



Aqui, além do enorme crescimento do número de cooperativas, impulsionou-se as chamadas “empresas de produção social”, inspiradas em princípios de solidariedade, cooperação, complementaridade e sustentabilidade económica e financeira, como forma de ir construindo um modelo baseado em novas relações sociais de produção que libertam o trabalho assalariado da exploração do capital.



Por outro lado, assinalava então a necessidade dos trabalhadores desempenharem um importante papel na gestão das empresas, assegurando a aplicação de uma lógica humanista e solidária. No que respeita a equipamento, ainda que os avanços locais não tenham sido significativos em nível nacional, houve avanços notáveis, tanto na indústria elétrica no Estado de Mérida, como na empresa de alumínio Alcasa, no estado de Bolívar. E aumentou o número de empresas recuperadas nas mãos dos trabalhadores.



Acordo com o capital industrial



Também considerei, como uma das tarefas prioritárias da etapa que começou depois do referendo, a necessidade de resolver o problema do emprego. Para isso, além das iniciativas já referidas, era necessário impulsionar também a reativação do setor industrial privado disposto a colaborar com o projeto de desenvolvimento endógeno proposto pelo governo.



Neste sentido, estabeleceu-se um acordo marco com este setor, através do qual o governo outorga créditos a uma taxa de juro mais baixo, sempre que as ditas empresas cumpram certos compromissos sociais, como, por exemplo, que se comprometam a dedicar pelo menos 10% das suas receitas às necessidades mais prementes das comunidades adjacentes e que permitam a participação dos trabalhadores na sua gestão.



Integração continental: indispensável



Eu colocava então a necessidade de avançar na integração latino-americana como condição indispensável para o desenvolvimento dos projetos econômicos do governo. Este desenvolvimento foi muito superior ao esperado. O novo cenário político, saído dos recentes triunfos eleitorais presidenciais na região, cria cada vez mais e melhores condições para a integração.



Sustentei, também, que outro dos desafios ao governo depois do referendo era melhorar a correlação de forças no campo institucional. E aqui a melhoria foi notável. As eleições para governadores e prefeitos tiveram resultados muito positivos para o governo. As eleições de 2004 transformavam em 22 os oito governadores que apoiavam o governo. A oposição só governa dois dos 24 estados. A Assembleia Nacional (Parlamento) é exclusivamente bolivariana, uma vez que nas eleições de 2005, os candidatos da oposição terem pressentido a derrota, optando por não concorrer para desprestigiar o órgão legislativo.



Pontos débeis: o velho modelo de Estado



Esta acumulação quantitativa de forças nas instituições devia ter-se traduzido numa acumulação qualitativa, num aumento da eficiência, em que cada um dos atores governamentais desempenhasse melhor as suas respectivas responsabilidades, pondo em prática com eficiência os projetos e iniciativas anunciados pelo governo.
Mas isto está muito longe de se ter alcançado. O velho modelo de Estado continua de pé e com muita força, apesar das intenções de Chávez. E o mesmo acontece com o flagelo da corrupção.



Avançou-se muito pouco, ou nada, na estruturação de um instrumento político mais adequado aos grandes desafios do processo revolucionário bolivariano. Continua, e talvez se tenha acentuado, a disputa por cargos nos diferentes níveis de direção. A direção eleitoral Miranda, criada para dirigir o processo eleitoral presidencial de 3 de dezembro, foi hegemonizada pelo Movimento V República, provocando mal-estar nos demais partidos políticos e na população.



Na construção de um instrumento unitário dos trabalhadores, em lugar de se avançar retrocedeu-se. Há demasiada dispersão. Os velhos métodos continuam em vigor.



A oposição volta à cena, reunificada



Neste contexto, os meios de comunicação da oposição, claramente maioritários, exagerando exponencialmente os erros e debilidades do governo, e tergiversando sobre o seu projeto, conseguiram recriar um clima contrário a Chávez, influindo num número significativo de venezuelanos. As forças políticas da oposição, que saíram do referendo dizimadas e dispersas, conseguiram nos últimos meses superar a sua crise, concitando a simpatia de um número não desprezível de venezuelanos…



Ao bombardeio midiático de todos os dias e todas as horas, soma-se agora uma oposição finalmente unificada em volta de Manuel Rosales, como candidato presidencial da oposição. O ex-governador de Zulia (um dos maiores estados, na fronteira com a Colômbia, estratégico para o país) tem a seu favor um governo relativamente bom, e  levou a cabo uma bem montada campanha eleitoral. Promete conservar tudo o que é bom no governo de Chávez e aperfeiçoá-lo. Anuncia demagogicamente que depositará diretamente na conta de cada família pobre uma significativa soma de dinheiro das receitas petrolíferas.



Por último, por trás dos biombos da estratégia oposicionista, está sempre presente o governo norte-americano. Para os EUA, Chávez tornou-se uma verdadeira obsessão. Washington recorrerá a qualquer meio ao seu alcance para se livrar dele.


 


Prognóstico: 20 pontos



A poucas semanas da votação, percebendo todas estas limitações e obstáculos, e as ameaças de um novo período de distúrbios provocados pela oposição, o presidente começou a envolver a juventude como motor central da sua campanha. Tornou a juventude uma força moral que permitirá superar a apatia e os vícios que arrastam as gerações anteriores.



Se a juventude bolivariana não trabalhar seriamente por conquistar novos eleitores nas semanas que faltam, tudo faz pensar que, apesar dos notáveis êxitos que obteve o povo venezuelano, será muito difícil que o presidente Chávez obtenha resultados eleitorais melhores que os do referendo. Esta apreciação é confirmada pela maioria das pesquisa de opinião, que dão a Chávez uma vantagem de 20 pontos, os mesmos 20 pontos de dois anos atrás.



* Psicóloga e escritora chilena; intertítulos do Vermelho