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O difícil caminho da democracia: crítica da legislação eleitoral e partidária do Pós-85 (2)

Na segunda parte da série escrita por Luiz Carlos Orro, o autor se debruça sobre legislação partidária. “A democracia brasileira que se constrói atualmente, como democracia representativa que é, deveria assegurar pleno respeito ao princípio constitucional

A legislação partidária

Luiz Carlos Orro de Freitas*


Foram necessários exatos dez anos para que se sepultasse a Lei Orgânica dos Partidos Políticos herdada do regime militar. Somente em 1995, veio a ser aprovada a novel legislação sobre os partidos, a Lei 9.096/95, já decorridos sete anos do advento da Constituição de 1988.

O lapso temporal, excessivamente longo, já é indicativo da estratégia de pé no freio com que os novos detentores do poder político trataram a questão partidária. E não se pode dizer que essa é questão de somenos importância. Pelo contrário, cuida-se de ponto crucial para o efetivo funcionamento de uma democracia.

Acerca de qual modelo de democracia se discute nessas linhas, as limitações do objeto proposto não permitem maior aprofundamento, pelo que se opta por apresentar brevíssimas considerações conceituais. Em da Silva, a democracia é tratada como ''conceito histórico''. Não sendo por si um valor-fim, mas meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência humana''… Situa a experiência brasileira contemporânea com sendo uma democracia representativa, em que a ''participação popular é indireta, periódica e formal, por via das instituições eleitorais que visam a disciplinar as técnicas de escolha dos representantes do povo''.

Sobre a república democrática burguesa, Bottomore traz citação de Marx em As lutas de classes na França de 1848 a 1850, em que este analisa que, ao mesmo tempo em que sanciona o poder social da burguesia, esse sistema ''retira as garantias políticas desse poder, impondo-lhe ‘condições democráticas que, a todo momento, contribuem para a vitória das classes que lhe são hostis e põem em risco as próprias bases da sociedade burguesa’''  . Lima Júnior propõe centrar o debate, no mínimo, em torno da formulação ''democracia de massas, com alto grau de liberalização e participação''. De qualquer forma, todavia, os institutos do sufrágio universal, liberdades políticas, império da lei e competição política hão que se fazer presentes.

A democracia brasileira que se constrói atualmente, como democracia representativa que é, deveria assegurar pleno respeito ao princípio constitucional da isonomia, visto que a igualdade constitui o signo fundamental da democracia. Mas essa observância não vem ocorrendo quanto à matéria eleitoral e partidária. Senão, vejamos.
A Constituição de 1988 assegura no artigo 5º que '' todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…''. Adiante, no capítulo V – DOS PARTIDOS POLÍTICOS -, garante o art. 17 da Carta Magna: '' É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:IV- funcionamento parlamentar de acordo com a lei. … Já o parágrafo 3º preceitua que ''Os partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e televisão, na forma da lei. '' (sublinhamos, para destacar)

Ora, a igualdade de todos há que ser entendida em seu sentido material, e não apenas formal; ou seja, a igualdade perante a lei, e igualdade na lei, consoante as melhores doutrinas. Assim, o princípio constitucional tem como destinatário não só o aplicador da lei, o Poder Judiciário, mas também, e principalmente, o legislador, não assistindo a este editar leis desprovidas de necessário conteúdo generalizante quanto ao alcance da norma. Por isso mesmo é que, no Estado Democrático de Direito, o ordenamento jurídico não dá guarida às leis com endereço certo, onde ausente a generalidade normativa, recusando-as sob a pecha de inconstitucionalidade.

No entanto, ao regulamentar a Carta Política, a legislação infraconstitucional adotada após 1988 vem, em cascata, promovendo grave ruptura com o princípio da isonomia legal, ao estabelecer privilégios para os partidos que detém as maiores bancadas no parlamento federal, aqueles que reúnem maioria para aprovar a lei em benefício próprio, em detrimento dos demais partidos.

Tanto a Lei do Partidos Políticos – Lei 9.096/95-, como o diploma eleitoral vigente, a lei 9.504/97, que regeu as eleições de 1998 e as que estão em curso, foram editadas em desacordo com o princípio supracitado, ao estabelecerem profundas desigualdades nas condições de participação entre os chamados grandes e os pequenos partidos no processo eleitoral. Torquato Jardim, que serviu como Ministro no TSE, é incisivo em apontar vícios de inconstitucionalidade na legislação de regência.

É curial observar que, frequentemente, vê-se nos meios de comunicação, sempre estimulado por representantes políticos dos partidos que hoje empalmam o poder, um enviesado debate sobre a necessidade de se promover a reforma política e partidária, onde sempre há aqueles que clamam por novas leis que venham restringir o número de partidos existentes.

Ora, a cláusula de barreira, principal ameaça à democracia representativa, à disputa em condições de igualdade entre as várias organizações partidárias, já existe; foi introduzida pela Lei dos Partidos Políticos, em 1995, impondo severas restrições às agremiações que não alcancem determinado patamar de desempenho eleitoral. Suas draconianas disposições, ainda que de certa forma amenizadas provisoriamente, estão em pleno vigor, como aqui se vai demonstrar.

A cláusula de barreira está contida no capítulo II – Do Funcionamento Parlamentar – , art. 13, da Lei dos Partidos – nº 9.096/95- fixando que somente tem direito a funcionamento parlamentar o partido que obtiver no mínimo 5% da votação para a Câmara dos Deputados. Exige ainda que este percentual esteja distribuído nacionalmente, com o mínimo de 2% por Estado em pelo menos 1/3 das unidades da Federação. Os percentuais são calculados desconsiderando-se os votos brancos e nulos.

Essa é a regra geral, de caráter permanente, que passou a ter vigência imediata, desde a publicação do texto legal. O texto é vago, e, em que pese a expressão ''funcionamento parlamentar'' não estar ainda de todo esclarecida, quanto ao seu significado e alcance, o certo é que a norma foi aplicada de pronto, provocando profundas distorções e agudas injustiças, principalmente quando se trata da distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do horário gratuito no rádio e televisão entre os partidos.

À época da aprovação da LPP, a atuação dos partidos de esquerda, em especial das bancadas do PCdoB e PSB, resultou na fixação de uma regra provisória, inserta no art. 57, no Capítulo VI – Disposições Finais e Transitórias. Por essa regra, estabeleceu-se uma ''clausulazinha de barreira'', de 1% da votação nacional, mais a obrigatoriedade de eleger Deputado Federal em pelo menos 5 Estados. Criou-se, portanto, um período de transição, postergando-se para o ano de 2.006 a exigência da votação nacional mínima de 5%. Então, o que pretendem esses defensores de maiores restrições aos partidos é antecipar para já a vigência desse dispositivo, aliando a isso outros casuísmos como o voto distrital e o voto facultativo.

O que em geral é desconhecido da opinião pública é que esse período de carência em relação ao patamar de 5% dos votos não impediu a aplicação imediata dos critérios discriminatórios quanto à distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do horário gratuito, reservando aos partidos que alcançaram a votação nacional de 5% parcelas escandalosamente maiores que aquelas destinadas aos partidos que atingiram a faixa de 1%. A distorção se agrava quando a comparação se faz em face dos partidos que nem mesmo chegaram ao 1%, como se esmiuça adiante. Em suma: a legislação partidária vigente instituiu, por assim dizer, partidos de 1ª, 2ª e 3ª classe.




*advogado, consultor jurídico legislativo em Goiânia e delegado Nacional do PCdoB junto ao TSE