Reforma da Previdência: as ruas enfrentam os palácios

Os trabalhadores franceses são um exemplo de como as manifestações populares podem frear as reformas neoliberais. Já em 1988 um primeiro-ministro francês vaticinou que a reforma da previdência poderia derrubar vários governos. E derrubou.
 

Por Osvaldo Bertolino


 


Em todo o planeta há uma percepção, cada vez mais forte, de que o padrão de vida dos trabalhadores está sendo ameaçado pelo imenso poder concedido aos grandes grupos privados pela “globalização” neoliberal. Ou seja: as privatizações e a busca agressiva da produtividade por meio da pressão sobre os países para a liberalização de suas economias — principalmente a chamada “flexibilização” das leis de proteção social e trabalhista — representam uma barreira que o capital tenta erguer contra o trabalho. Aumento da produtividade quer dizer, sucintamente, mais valor agregado à produção por cada hora trabalhada. A apropriação deste valor é a grande questão posta em debate, para o movimento sindical, pelo modelo capitalista contemporâneo. Não é possível imaginar o capitalismo sem classes e luta entre elas.


 



Atualmente, além do desemprego gigantesco existem muito fatores que indicam um acirramento dessa luta. Baixos salários, regimes de superexploração, trabalho escravo de presos e infantil e restrições à liberdade sindical são cada vez mais freqüentes no mundo. As empresas dos países industrializados mudam a base de suas operações para tirar vantagem da mão-de-obra barata nas regiões pobres do planeta. Há algum tempo, a CUT recebeu, como denúncia, folhetos de propaganda sobre o potencial lucrativo de alguns países. A República Dominicana oferecia mão-de-obra a um custo, ''incluindo benefícios'', de 1 dólar por hora. Bangladesh garantia mão-de-obra ''produtiva e barata'', com a vantagem de que ''a lei proíbe a formação de sindicatos e as greves são ilegais''. As ameaças a aposentadorias, férias e adicionais de remuneração, de restrições na assistência médica, no seguro-desemprego e em outros benefícios também estão presentes nos países desenvolvidos.


 


O “estatismo” francês e alemão


 


Para os liberais, o assunto “globalização” não deve ser julgado em termos de ''contra'' e ''a favor'' — como se ela fosse um programa partidário ou um sistema de idéias, em relação aos quais houvesse a opção de aderir ou rejeitar. Como eles se imaginam os donos do mundo, acham que podem impor seu pensamento único como um conjunto de realidades que passaram a fazer parte da vida econômica mundial. Eles vêem a resistência dos povos à “globalização” confusamente, alguma coisa tramada por “esquerdistas”, não se sabe bem como, e promovida mundo afora pelos sindicatos e Ongs. E disso vem, de um jeito ou de outro, a responsabilidade pela maioria das coisas erradas que existem por aí, a começar pelo desemprego.


 



Recentemente, para a ideologia liberal outro perigo veio juntar-se à resistência: a defesa popular — ou populista — do “estatismo” francês e alemão, com suas gigantescas máquinas públicas, custos sociais elevados, que vai na direção oposta da “liberdade de iniciativa” do modelo anglo-saxão — a política econômica conservadora já há muitos anos vigente na Inglaterra e nos Estados Unidos. É difícil para os arautos da “globalização” sustentar seus pontos de vista diante das mazelas sociais mesmo das economias desenvolvidas, sobretudo a dos Estados Unidos. A todo momento fica demonstrado que os trabalhadores norte-americanos estão entre os que pagam mais caro pelos efeitos das políticas conservadoras — a General Motors, por exemplo, pretende demitir 25 mil funcionários até 2008.


 



A queda Alain Juppé


 



Na Europa, o Estado de bem-estar social foi concebido para injetar compaixão no capitalismo. Por toda parte, governos social-democratas criaram benefícios para os idosos, os desempregados e os pobres. Foram estabelecidas regras para aumentar os salários, garantir empregos e melhorar as condições de trabalho. Afirmar que não dá mais para bancar todos esses benefícios, mesmo com os elevados ganhos de produtividade da segunda metade do século 20, é faltar com os mais elementares princípios da verdade. Por isso, os esforços para cortar benefícios afundam em meio à resistência popular — como as sucessivas greves na França atestam. A questão real é que a sobrevivência do Estado de bem-estar social é a condição para evitar a volta do capitalismo sem freios do século 19. 


 


O ponto central dessa polêmica é a previdência social. Em 1988, Michel Rocard, então primeiro-ministro do governo socialista de François Mitterrand, já antecipava as dificuldades à frente das tentativas reformistas. ''A reforma das aposentadorias tem poder para derrubar vários primeiros-ministros'', afirmou. Seu vaticínio se confirmou em 1995, quando o premiê de direita Alain Juppé decidiu encarar o problema. O chefe de governo não resistiu no cargo depois de um inesquecível dezembro de greves e intensas manifestações populares, as maiores realizadas no país desde maio de 1968. Com a queda de Juppé, a questão foi para a geladeira — e lá ficou até que o presidente Jacques Chirac foi reeleito.


 



A queda de Jean-Pierre Raffarin


 



A reforma da previdência, já encaminhada pela maioria dos vizinhos europeus na década de 90, virou a grande prioridade de seu governo. Chirac quis aproveitar a maioria parlamentar para mexer num vespeiro capaz de fazer o termômetro social atingir as mais elevadas temperaturas. Foi exatamente o que se viu: milhões de trabalhadores protestaram em mais de uma centena de cidades francesas, e numerosas paralisações foram decretadas, principalmente nos serviços de transporte público (trens, ônibus e metrô) e da educação, superando todas as expectativas iniciais. A insistência do governo, aliada a um amplo trabalho de propaganda enganosa, não arrefeceu a resistência. ''As ruas não governam o país'', reagiu o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin. Governavam: Raffarin, atingido pela derrota do governo no referendo sobre a Constituição da União Européia em maio de 2005, foi substituído por Dominique de Villepin e a reforma da previdência voltou para a gaveta.


 


O sistema de bem-estar social teve seu apogeu na Guerra Fria. Com a derrocada do bloco soviético, o caráter ideológico da discussão entre as vantagens do capitalismo “menos desumano” sobre o capitalismo selvagem se acentuou. Os governos dos países europeus começaram a fazer contas e, do nada, “descobriram” que o chamado welfare state havia se tornado caro e pesado demais para ser mantido. A Inglaterra iniciou o processo em 1979 pelas mãos liberalizantes da dama de ferro, Margaret Thatcher. O atual governo britânico publicou uma lei que prevê um aumento progressivo da idade da aposentadoria, até chegar a 68 anos. Além disso, a pensão não será mais indexada na inflação, como atualmente, mas no aumento dos rendimentos. Na Alemanha, o governo de ''grande coalizão'' de Angela Merkel anuncia que fixará o aumento da idade legal de aposentadoria para 67 anos até 2029. A Itália deve abrir em janeiro negociações para uma nova reforma, que pode aumentar a idade da aposentadoria. A Comissão Européia pediu em fevereiro que os países da União Européia (UE) ''intensifiquem seus esforços de reforma diante do rápido envelhecimento das populações''.


 



 


Economia dinâmica


 



Os liberais perdem a razão quando se constata, entre outros dados, que por trás dos sistemas de aposentadoria existe uma indústria trabalhando a todo o vapor. Dos medicamentos e serviços de saúde aos automóveis, dos alimentos ao setor financeiro, não há área de negócios que escape da influência das mudanças demográficas em curso. Nos próximos três anos, de acordo com um levantamento da ONU, a quantidade de sexagenários no mundo já será maior do que a de crianças abaixo de 14 anos. Em 2025, o Brasil passará da 16ª posição à sexta na lista dos países com o maior número de idosos. Serão 33 milhões de pessoas com mais de 60 anos — o equivalente a duas vezes a população do Estado de Minas Gerais.


 


Um levantamento do grupo francês Sodexho avalia em 25 bilhões de dólares o potencial de mercado dos idosos em 11 países. Devido ao envelhecimento da população, a Sodexho estima que até 2025 seus negócios — que vão desde serviços de alimentação, limpeza e lavanderia até o acompanhamento de idosos e os cuidados com eles — cresçam 27% na Espanha, 13% no Reino Unido e 3% na França e na Itália. ''No Brasil, a expectativa é que esse mercado aumente 10% ao ano'', diz Plínio de Oliveira, diretor-geral da subsidiária brasileira da Sodexho. Não é possível imaginar uma economia dinâmica e em desenvolvimento sem levar em conta a necessidade de um sistema de aposentadoria minimamente decente. O próximo artigo analisará o papel da Previdência Social na economia brasileira.


 



Leia também:


 



Quem quer a reforma da Previdência Social?
(http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=9695)
Reforma da Previdência: quem são os vagabundos? (http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=9748)
Informalidade: pretexto para atacar a Previdência Social (http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=9790)
O caminho para a privatização da Previdência
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=9840
Reforma da Previdência: a crise dos fundos de pensão
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=9934
Reforma da Previdência: os velhos à beira do penhasco
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=10048
Previdência: porque o setor privado não funciona
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=10286
Previdência: o dilema do mundo grisalho
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=10351
Previdência: a macaquice de Malan e Palocci
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=10490