Elias Jabbour: A panela de pressão chinesa

A milenar tradição comercial da China está está por trás do seu acelerado desenvolvimento econômico e suas contradições sociais e ambientais. Por Elias Jabbour, publicado na revista Carta na Escola.

A pergunta que não quer calar, ou melhor, sua resposta quase sempre é pautada pela superficialidade e o desconhecimento: “Qual a receita que transformou a China na atual locomotiva mundial?”De forma generalizada podemos distinguir alguns elementos iniciais para uma explicação.



Vamos à primeira, que poderíamos tentar assim: Imaginemos que uma panela passa hora sob pressão fervente e dado momento a mesma é destampada. Irrompe-se uma despressurização sob forma gasosa e o objetivo do cozimento foi alcançado.



Voltemos ao caso chinês. Agora imaginemos uma nação milenar, onde o comércio é parte da vida cotidiana de sua população há pelo menos 3.700 anos, e que num período de quase 30 anos, esse mesmo comércio, que por determinações externas e de convicções governantes, passa a ser quase proibido e até mesmo criminalizado.



A água está fervendo…Por força desta pressão interna, de repente um grupo dirigente, ao perceber o equívoco, dá uma grande reviravolta e passa a permitir a existência deste comércio. Mais: este mesmo grupo dirigente o incentiva e apóia inclusive com slogans do tipo “ficar rico é glorioso”.



A liberdade de comércio interno, pode ser descrito assim, como o elemento básico para se compreender o “boom” chinês a partir de 1978, ano este marcado pela ascensão ao poder central do veterano revolucionário Deng Xiaoping que nomeou este processo iniciado em 1978 de “Reforma e Abertura”.



Este processo foi concebido para várias fases previamente descritas. Na primeira fase, a liberdade de comércio aos camponeses (mais de 65% da população chinesa) permitiu o cumprimento de três objetivos básicos.



O primeiro foi o de reconstituir a base social do Partido Comunista da China (PCCh), ou seja, atendendo aos anseios dos camponeses por maior liberdade de comércio. O segundo, conectar essa liberdade de comércio ao abastecimento alimentar das cidades a partir de contratos entre o Estado e a família camponesa, onde a família camponesa comprometera-se a entregar uma cota de grãos ao Estado em troca de liberdade de comercializar os excedentes.



Terceiro, transformar o acúmulo de capital dos camponeses em poupança inicial para um ambicioso processo de modernização do país. Esse processo acima foi o principal responsável pela maior inclusão no mercado consumidor da história moderna.



Mediando a “glorificação” individual



O processo interno de desenvolvimento andou concomitante com a abertura ao exterior, e apresentou características muito interessantes, como a utilização do comércio exterior focada na obtenção de capitais e tecnologias estrangeiros, logo tal comércio é estatizado e serve aos interesses nacionais imediatos e estratégicos. Só se importa o que se necessita.



Esta política comercial é mediada pelo controle estatal de elementos macroeconômicos como o câmbio, os juros, o crédito e o sistema financeiro (90% dos bancos chineses são estatais). Por fim, esta política permitiu que os chineses acumulassem reservas em moeda estrangeira suficiente para introduzir uma política interna de juros ao consumidor atraente ao crédito. Resumindo, é muito fácil “pegar” dinheiro emprestado nos bancos chineses. Crédito fácil é “meio caminho andado” no rumo da riqueza e da “glória”.



No que tange à abertura externa, que foi capaz de atingir os rincões mais inóspitos do país, é mister assinalar que tal processo teve — à moda chinesa — caráter lento, gradual e seguro. Durante 25 anos, o litoral chinês serviu como “esponja” de investimentos em capital e tecnologia que permitiram, ao longo dos anos, a transferência de enormes recursos deste litoral ao interior do país.



Desde 1999, com o lançamento do “Programa de Desenvolvimento do Oeste”, a China busca unificar seu mercado nacional, a partir da troca de capital e tecnologia do litoral rico por fontes de energia e matérias-primas no interior. Trata-se de um fascinante processo territorializante que  permite que agricultores das províncias interioranas tenham acesso aos mercados consumidores das grandes cidades. Existem casos em que a renda per capita de algumas cidades duplicam a cada três anos.



Agora, não nos surpreendamos com as contradições inerentes a tal espetacular processo. Nada muda sem traumas. Afinal, a própria ciência histórica nos ensina que o desenvolvimento é o processo de solução de contradições que por suas vez demandam outras contradições. Resumo da ópera: a contradição é o motor do processo.



Socialismo de mercado?



Importante notar que a tal “revolução capitalista” propalada por “formadores de opinião” e “especialistas” ocorre sob o acicate de um Estado Nacional forte e centralizado sob o comando de um Partido Comunista que nutre atualmente os mesmos objetivos daquele que chegou ao poder em 1949.



Por lá a propriedade estatal e coletiva dos meios de produção é dominante na economia e os solos urbano e rural são propriedade estatal. Mais: a ideologia oficial do Estado é o marxismo-leninismo, o pensamento de Mao Tse Tung e a teoria de Deng Xiao Ping.



Os chineses conseguiram muito bem combinar reformas em sua estrutura econômica, maximizando o comércio interno e planejando o comércio exterior. Permitindo inclusive a coexistência do setor privado e individual em setores inteiros da economia, de forma que uma certa complementaridade entre setor estatal e privado permita a consecução de objetivos imediatos (questão social e nacional) e estratégicos (tornar a China uma potência mundial). Isto tudo sem alterar a superestrutura de poder do país, afinal o próprio Partido Comunista da China é o “timoneiro” do processo e a pré-condição ao seu sucesso .



Por fim, interessante notar que mercado não é sinônimo de capitalismo. O mercado como o local onde a oferta e a procura se encontram existe a pelo menos 5.000 anos. O mercado deve ser visto como uma “categoria histórica” e como toda categoria histórica depende — para sua superação — de condições objetivas , logo seu epílogo não depende de decretos.



Elias Jabbour e Doutorando e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP e Assessor  Econômico da Presidência da Câmara dos Deputados em Brasília.