História – Batista Neto, ex-constituinte de 46, fala de sua militância comunista

Nesta entrevista*, o ex-constituinte de 1946 pelo PCB do Distrito Federal, Joaquim Batista Neto(falecido no final dos anos 90), reconstrói sua trajetória política iniciada com as conspirações no interior das Forças Armadas na década de 1920, passando pelo

Gostaríamos de iniciar essa entrevista perguntando sobre o período inicial de sua vida, antes de seu primeiro contato com o PCB. Onde o Sr. nasceu e o que o Sr. fazia antes de sua entrada no PCB?


 


Eu nasci em Fortaleza (CE), em 23 de abril do ano de 1906. Meus pais chamavam-se João Batista Chaves e Maria de Moura Batista. Meu pai foi muita coisa na vida: foi padeiro, foi proprietário – foi dono de padaria -, vendedor-viajante, fogueteiro, enfim, na maior parte de sua vida foi uma espécie de trabalhador autônomo. Ele também chegou a trabalhar como motorneiro na Light, quando esta firma implantou os bondes em Fortaleza (trabalhou também um pouco em Belém do Pará, na própria Light). Me recordo que meu pai, juntamente com outros companheiros, chegou a participar de uma greve na Light por melhoria de salário, greve que inclusive foi curiosamente apoiada pelo presidente do estado do Ceará na época, Justiniano Serpa. Eu devia ter um pouco mais de dez anos quando ocorreu essa greve. Minha mãe era dona de casa, não trabalhava fora; dedicava-se apenas à educação dos filhos. Em Fortaleza, onde eu passei a minha infância e a maior parte da minha adolescência, freqüentei a escola primária e, quando tinha uns treze ou quatorze anos, me matriculei na Escola de Aprendizes de Marinheiro nesta cidade. Após sentar praça como aprendiz em Fortaleza, mudei-me para o Rio de Janeiro, a fim de estudar na Escola de Aprendizes de Grumetes de Angra dos Reis. Transferi-me para o Rio de Janeiro em 1921, para prestar serviço na Marinha. De lá, fui transferido para a Escola de Grumetes em Angra dos Reis e passei cerca de oito meses nessa localidade fazendo o curso de marinheiro. Depois disso embarquei num navio e lá fiquei como aprendiz até que, em 07 de setembro de 1922, com dezesseis anos, sentei praça e assumi o posto de marinheiro de 2a classe na Marinha brasileira.


 



E como eram as condições de trabalho nesses navios?


 


Os navios onde trabalhei eram basicamente navios-escola, nos quais os marinheiros tinham de passar por um processo de aprendizado a fim de dominar certos princípios de navegação à vela, a vapor e o manuseio dos apetrechos necessários à condução destes navios. Nesse tempo reinava um forte autoritarismo de comando na Marinha. Os marinheiros se submetiam a uma rígida disciplina, e não tinham o menor direito de questionar as ordens de seus superiores. Não havia a menor possibilidade de protesto ou de questionamento por parte dos marinheiros sem que ocorressem punições.


 


E nessa época o Sr. já havia tido algum contato com o Partido Comunista?



Não. Eu só fui ter contato com elementos do Partido Comunista em 1931, apenas nove anos depois de eu ter virado marinheiro. Nessa época nós acompanhamos pelos jornais a repercussão da Revolta dos Dezoito do Forte e outros movimentos desse tipo, já que na década de 1920 havia um grande descontentamento nos quartéis contra a situação política vigente. E, como marinheiro, eu já lia vários jornais do período, como A Esquerda, dirigido por Pedro Mota Lima; A Classe Operária, jornal do PCB; cheguei inclusive a vender nos quartéis A Plebe, um jornal dos anarquistas (nessa época eu tinha alguma simpatia pelo movimento anarquista; cheguei a ser meio anarquista quando jovem). Eu me lembro inclusive muito bem de um lema do anarquismo que era constantemente reproduzido neste jornal: Anárquico é o pensamento e para a anarquia caminha a história. Embora nessa época não fosse ligado a nenhuma organização, eu lia esses jornais e simpatizava com vários movimentos que fossem a favor do avanço e do progresso social. Eu lia também um jornal anti-católico, que tinha bastante repercussão na época, chamado A Lanterna. Eu passei seis anos na Marinha, de 1922 a 1928. E, como disse, havia um grande descontentamento nos meios militares contra a chamada política do café-com-leite. Eram freqüentes nos quartéis os boatos de conspiração e, de vez em quando, tínhamos notícias de grupos de marinheiros e de oficiais que eram expulsos da Marinha em virtude dessas conspirações. Por exemplo, eu me recordo de punições ocorridas nos encouraçados Minas Gerais e São Paulo. Até que em 1928 fui expulso da Marinha.


 


E por que o Sr. foi expulso?


 



Eu fui expulso porque me recusei a cumprir uma ordem de um oficial; uma ordem que eu achava absurda. Nessa época, eu trabalhava como telegrafista em um navio. E certa vez um oficial me deu uma ordem de “dar o rancho” como se dizia, ou seja, de servir as refeições para os demais marinheiros. Eu já estava sobrecarregado em meu trabalho de telegrafista, e certa feita um oficial me ordenou servir as refeições para os demais marinheiros. Eu disse para ele que não havia a menor condição de realizar este trabalho, que solicitassem o serviço de outro porque eu já estava sobrecarregado como telegrafista, e era incompatível conciliar esses dois trabalhos. Em virtude dessa minha desobediência, eles simplesmente moveram um processo contra mim requisitando o meu afastamento. Eu então fui afastado do corpo de marinheiros e fiquei aguardando a sentença. Constituí um advogado e, embora eu tivesse sido absolvido na primeira instância, os promotores da Marinha apelaram para o Supremo Tribunal Militar e eu fui condenado. Fui condenado a um ano de prisão, e cumpri os primeiros seis meses da pena no corpo de marinheiros nacionais e os outros seis meses no corpo de fuzileiros navais da Ilha das Cobras.


 


E como eram as condições da prisão?



  
Como eu era marinheiro e tinha pego uma pena curta, eu e os demais presos não chegamos a ser propriamente maltratados. Estávamos presos como militares e, nessa condição, nós fomos colocados sob a guarda de um sargento e de um cabo. O sargento era um rapaz até educado, não maltratava os presos. Mas o cabo era terrível, tanto assim que nós terminamos apelidando ele de “sargentão” (risos). Mas nós não chegamos a ser maltratados na prisão. Nessa época, entre os presos, falava-se à boca pequena, com muito cuidado, de alguns líderes militares da época, como Miguel Costa, Cabanas etc.; eram elementos que já eram mais ou menos conhecidos entre a tropa… De forma que eu fiquei todo um ano preso, até ser solto em 1929, e então fui cuidar da minha vida…


 


E o que o Sr. fez após ser solto e expulso da Marinha?


 


Eu fiquei procurando emprego até achar um no Moinho Fluminense, no Rio de Janeiro. Na época, logo após sair da prisão, tive grande dificuldade de arranjar emprego, já que ninguém me aceitava para trabalhar. Naquela época, como ainda hoje, não tem patrão que queira um elemento excluído do quartel, e além do mais ex-preso. De maneira que eu peguei o primeiro emprego que me deram e me sujeitei a ser empilhador de sacos; arranjei um emprego de empilhador de sacos (eram sacos de farinha de trigo) no Moinho Fluminense. E foi no Moinho que eu tive o primeiro contato com o Partido, já em 1931.


 


E como foram esses contatos?



  
Nessa época, a direção do PCB deslocava alguns elementos de destaque do Partido para fazer trabalho de propaganda nas fábricas durante o horário do almoço. E, numa ocasião, dois destacados militantes do Partido na época (um homem e uma mulher dos quais não me recordo bem o nome) conversaram comigo durante o almoço e me convidaram a entrar na organização. E através dessas conversas durante o almoço e do contato com outros comunistas, eu fui me aproximando cada vez mais do Partido.


 


O Sr. chegou a atuar no BOC (Bloco Operário e Camponês)¹?


 


Não, militar propriamente no movimento eu não militei. Eu acompanhava o movimento, cheguei inclusive a ler aquele jornal editado pelo Pedro Mota Lima (A Manhã, se não me engano), mas não cheguei a militar no BOC. Nessa época houve inclusive um certo apoio dos trabalhadores à candidatura do Minervino de Oliveira, que era o candidato do BOC à Presidência da República, embora a maior parcela dos trabalhadores, principalmente aqueles sobre influência da Igreja Católica, tivesse apoiado os candidatos da burguesia. Além do Minervino de Oliveira, concorreram às eleições Getúlio Vargas (que era o candidato populista) e o Júlio Prestes, que era o candidato da burguesia, principalmente da burguesia paulista. Então, após aqueles primeiros contatos, nós (eu e outros companheiros) fomos encarregados de organizar uma célula do Partido no Moinho Fluminense. E fomos bem sucedidos, porque nós elegemos um secretário político, um secretário de organização, um de agitação e propaganda, e outro secretário sindical. E, após elegermos o secretariado, passamos a ter uma atuação de certo destaque na empresa. Então, a partir desse trabalho de organização de célula, eu passei a ter uma relação mais estreita com o Partido.


 


E além desse trabalho na célula do Moinho Fluminense, o Sr. tinha alguma outra atuação política no período?


 


Nessa época (isto é, no início da década de 30), eu era um elemento de base do PCB; não fazia parte de seus quadros dirigentes. Eu atuava principalmente na célula comunista do Moinho Fluminense, no movimento sindical e em alguns outros movimentos de massa do período. É importante sublinhar que nessa época a classe operária estava muito dividida e havia também uma grande repressão contra o movimento operário. E as classes trabalhadoras ainda não tinham um preparo político muito elevado; não sabiam ainda se orientar direito em relação às várias medidas que foram tomadas no pós-30 pelo Getúlio em relação ao movimento operário (tais como a lei de sindicalização etc.). Uns apoiavam, outros se opunham a essas medidas, mas não havia uma diretriz estratégica muito clara no movimento operário. Nesse tempo, eu também estava ainda no início da minha formação marxista. Não tinha ainda muita coisa na cabeça, nem muito senso de organização, embora eu lesse freqüentemente os jornais esquerdistas do período. Nessa época, além de atuar na célula do Moinho Fluminense, eu participei de alguns congressos sindicais (fui, por exemplo, delegado no Congresso Sindical realizado em Niterói, em 1933) e de outros movimentos e atividades (vendia muito jornal clandestinamente). Me recordo, por exemplo, de ter participado de vários comícios, já que havia muitos comícios na época. Naquele tempo, uma tática muito comum utilizada pelo movimento popular era a realização de comícios-relâmpago. Esses comícios eram freqüentemente dissolvidos pela polícia e nós, regularmente, tínhamos que correr dela. Inclusive numa dessas manifestações eu cheguei a ser baleado e até hoje tenho uma bala no corpo de um tiro que levei da polícia.


 


E como o Sr. foi baleado?


 


Foi numa passeata que realizamos e que estava prevista para se iniciar em frente ao teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. O prefeito do Distrito Federal (que era o Pedro Ernesto, se não me engano) havia cedido o teatro João Caetano para a realização do “Congresso contra a Guerra e o Fascismo”, em 1934. Então, após o encerramento do Congresso, os dirigentes decidiram sair em passeata do teatro; uma passeata com um grande número de pessoas, já que haviam vindo delegados de todo o país para esse Congresso (eu inclusive fui eleito delegado ao Congresso). E a polícia do Distrito Federal chegou e dissolveu o comício à bala. E eu, que estava na passeata, levei um tiro e fiquei uns três meses no Hospital, quase aleijado. Nessa época existia o Socorro Vermelho, que era uma organização comunista que ajudava os presos políticos, os trabalhadores perseguidos etc. E, após eu ser baleado, fui removido para o pronto socorro e fui bastante ajudado pelos companheiros do Socorro Vermelho. Diga-se de passagem que foi graças à essa ajuda do Socorro Vermelho que eu sobrevivi. Cheguei a participar também da Aliança Nacional Libertadora, que foi a grande organização de massa do Partido na época. Mas, como eu disse, nessa época eu era fundamentalmente um militante de base, não tinha muito contato com os dirigentes do movimento.


 


E o Sr. se recorda do levante comunista de 1935?


 


Me recordo, mas eu não tive participação nenhuma nesse levante, que aliás foi uma quartelada sem nenhum apoio popular; o povo não tomou conhecimento dessa rebelião. Inclusive, pouco antes da deflagração do levante, nós ouvíamos boatos no Rio de Janeiro de sua eclosão e achávamos que eram provocações divulgadas pela polícia para desorientar a base da militância comunista, já que nas reuniões de base nós não tínhamos nenhuma informação sobre a preparação desse levante. Na época havia uma grande influência dos militares no Partido, e eu acho que foi isso que levou os dirigentes a tomar essa decisão precipitada de deflagrar o levante. O Secretário Geral do Partido na época era um tal de Miranda, de quem inclusive se dizia que era ligado à polícia…


 


Hoje se contesta essa idéia de que ele era ligado à polícia…


 


Mas seja como for, tudo o que ele fazia beneficiava a polícia. Ele tinha uma mulher que se chamava Elza Fernandes; eu me recordo da presença dela em alguns comícios, dela e do Tobias². Inclusive, depois houve todo aquele problema dela com o Partido e a direção chegou a ordenar sua morte, numa decisão que eu não considero muito correta. Creio que o melhor teria sido denunciar publicamente os suspeitos de colaboração com a polícia e isolá-los dos trabalhadores. E o tempo haveria de dizer se eles haviam ou não colaborado com a polícia e, no final, caso fosse comprovada essa colaboração, eles seriam desmoralizados e repudiados pelo povo. Creio que não era necessária uma medida tão drástica. Mas de fato havia uma suspeita de que eles colaboravam com a polícia na época.


 


E após a repressão ao levante comunista, qual foi a sua atuação?


 


Como eu era apenas um militante de base, eu não cheguei a ser preso. Eu procurei manter uma posição prudente até que a repressão se atenuasse. De forma que eu atravessei todo esse período de implantação e do início do Estado Novo sem ser preso, já que a repressão atingiu principalmente a direção do Partido e aqueles militantes que haviam tomado parte no levante da ANL. Até que eu resolvi sair do Moinho Fluminense e, em 1938, comecei a trabalhar como operário no Arsenal de Marinha. Nessa época já haviam se iniciado os preparativos para a II Guerra Mundial e então as Forças Armadas começaram a recrutar uma série de combatentes para os preparativos da Guerra. E eu resolvi me apresentar e fui aceito, não obstante ser comunista e ter sido expulso da Marinha, já que eles estavam precisando com urgência de gente e eu já tinha uma certa experiência, um certo treinamento militar…


 


E o Partido teve alguma influência em sua entrada na Marinha?


 


Não, não teve nenhuma influência, inclusive porque o Partido nessa época estava bastante desarticulado. Foi uma decisão que tomei autonomamente; eu pessoalmente cheguei à conclusão de que era necessário ir para o Arsenal de Marinha a fim de ajudar o Brasil em seus preparativos de guerra, principalmente na guerra contra o fascismo italiano e o nazismo alemão. E, após algum tempo de trabalho no Arsenal, alguns membros do Partido entraram em contato comigo e eu fui encarregado de reorganizar o Partido no Arsenal de Marinha, já que o Partido estava esfacelado no início da década de 1940… E eu, juntamente com meus companheiros, chegamos a fundar uma célula composta por mil e duzentos camaradas no Arsenal de Marinha; a célula se chamava “Luís Carlos Prestes”, que inclusive chegou a ser a maior célula do Partido em todo o Brasil.


 


O Sr. poderia dar mais detalhes de como foi sua atuação no Arsenal de Marinha?


 


Nessa época havia um grande ódio contra os nazistas no seio das Forças Armadas e também no seio do povo brasileiro em geral. E nós fazíamos uma intensa propaganda na Marinha contra o nazismo; nós procurávamos explicar para os trabalhadores que os nazistas fundamentavam sua política internacional numa política imperialista, que defendia a superioridade dos alemães sobre os demais países. Ora, nós, brasileiros, não podíamos aceitar essa tese da superioridade de uma nação sobre as demais, essa teoria da subjugação nacional. Então nós, na Marinha, procurávamos explicar aos marinheiros e demais trabalhadores do Arsenal que os nazistas consideravam os brasileiros um povo de segunda classe, um povo de mestiços, já que eles fundamentavam sua doutrina e sua política em idéias falsas e racistas de superioridade racial. Era essa a propaganda que fazíamos na época e que teve grande aceitação entre os marinheiros e os trabalhadores, principalmente após o afundamento de navios brasileiros pelos alemães. E nossa célula no Arsenal de Marinha cresceu rapidamente após esse fato, pois já antes do afundamento dos navios nós denunciávamos o caráter retrógrado e imperialista do nazismo. Ao lado dessa organização clandestina do Partido, nós conseguimos também fundar uma organização legal, embora fosse proibida qualquer organização dos trabalhadores no Arsenal de Marinha, que era uma empresa paraestatal. Nós (eu e os demais trabalhadores) conseguimos com o Diretor Militar da Ilha das Cobras (que era onde se localizava o Arsenal de Marinha) autorização para formarmos a “Sociedade de Defesa dos Trabalhadores do Arsenal de Marinha da Ilha das Cobras”, que tinha por fim defender os interesses dos trabalhadores do Arsenal e do povo brasileiro em geral durante a guerra. E conseguimos também eleger uma diretoria de nove elementos para dirigir essa sociedade, sendo que eu fui eleito o presidente. É importante frisar que nessa época eu, apesar de jovem, já tinha desenvolvido uma certa capacidade de organização, que vinha da experiência que eu havia acumulado na organização da célula comunista do Moinho Fluminense. Outro aspecto que favoreceu a nossa organização foi a luta quotidiana que empreendíamos pela melhoria das condições de vida dos trabalhadores e marinheiros do Arsenal de Marinha. Eu, por exemplo, comecei a observar o comparecimento dos trabalhadores no restaurante do Arsenal. E percebi que menos da metade dos trabalhadores iam almoçar diariamente no restaurante. Fui então investigar por que e descobri que os trabalhadores não iam ao restaurante porque achavam que a alimentação era péssima. Então nós começamos a fazer um trabalho no sentido de melhorar a alimentação dos marinheiros. Primeiro, começamos a esclarecer os trabalhadores sobre a importância de eles se mobilizarem para resolverem o problema da alimentação. Depois, fomos ao encarregado do restaurante mostrar a ele que todos os produtos que eram utilizados na feitura da comida do Arsenal eram de segunda e terceira classe: banha estragada, feijão estragado, farinha estragada, até carne podre se servia para os operários e para os marinheiros naquela época. Nós organizamos uma Comissão, mostramos tudo isso ao Diretor Militar e ele disse: pois bem, o que vocês sugerem? Nós propomos então que deveríamos dirigir a confecção da alimentação através de elementos escolhidos pelos próprios trabalhadores. E ele aceitou a proposta, que acabou dando certo. Fizemos logo um primeiro exame da bóia e vimos que não tinha quase nada que prestasse; a maior parte da comida estava estragada e tivemos que jogar quase tudo fora. Depois, entramos em contato com os fornecedores, negociamos com eles, e então a comida começou a melhorar sensivelmente. Organizamos também um esquema de turnos entre os trabalhadores para vigiarmos a comida, evitar roubos etc. E aí, após algum tempo, a maior parte dos trabalhadores do Arsenal passou a fazer as refeições no restaurante… Enfim, essas e outras iniciativas foram trazendo um grande prestígio para a célula dos comunistas no Arsenal de Marinha que, como eu falei, chegou a ser a maior célula do Partido em todo o Brasil… E eu e outros companheiros granjeamos um grande prestígio entre os trabalhadores, principalmente do Arsenal de Marinha e, devido a isso, o Partido me chamou para ser candidato a deputado.


 


O Sr. chegou a participar da Conferência da Mantiqueira, em 1943?


 


Não. Eu não cheguei a tomar parte da Conferência, já que eu não era dirigente do Partido na época. Apenas ouvi falar das resoluções tomadas pela Conferência. Inclusive depois, quando deputado constituinte, eu conheci pessoalmente vários dos elementos que dela participaram, mas não cheguei a ir à Conferência.


 


O Sr. chegou a atuar no MUT (Movimento Unificador dos Trabalhadores)?


 


Sim. Eu fui um dos dirigentes do MUT no Rio de Janeiro, cheguei a ser eleito presidente do Comitê Metropolitano do MUT na cidade do Rio de Janeiro. O MUT foi um movimento de grande sucesso, e teve um grande apoio popular na época, já que ele unificou os trabalhadores que antes estavam dispersos e fracionados. Como eu era secretário sindical do Comitê Metropolitano do PCB no Rio de Janeiro, fui incumbido pela direção do Partido de organizar os trabalhadores de diversas categorias para a formação do MUT. Participei de várias reuniões nesse período com diversas categorias de trabalhadores, para organizar o MUT, que teve um grande papel no crescimento do PCB no período. Inclusive muitos dirigentes do Partido no período vieram do MUT, como, por exemplo, o Barroso (do sindicato dos Marceneiros), Roberto Morena (também do sindicato dos Marceneiros), Osvaldo Pacheco, João Amazonas etc. Enfim, muitos dirigentes importantes do Partido no período tiveram uma grande atuação no MUT.


 


E o MUT foi responsável pelas greves que ocorreram em 1944/1945, no final do Estado Novo?


 


O responsável pelas greves não era o MUT nem qualquer organização, mas sim a miséria e a fome dos trabalhadores, já que durante o Estado Novo houve uma deterioração da qualidade de vida de várias categorias de trabalhadores. Observe-se que embora o Partido tomasse parte em algumas das greves desse período, boa parte delas eram espontâneas, ou seja, não dependiam das diretrizes de nenhuma organização sindical ou partidária. Me recordo que era comum em assembléias que os elementos mais ativos dos trabalhadores levantassem a proposta de greve, que era muitas vezes imediatamente apoiada pelos demais operários. Ou seja: nessa fase inicial eram greves espontâneas, sem dirigentes; apenas com o tempo é que os sindicatos foram tendo uma participação mais ativa na organização das greves.


 


E como o Sr. viu na época o apoio de Prestes e do PCB a Getúlio Vargas e à política de “União Nacional” decidida pela direção do Partido?


 


Na época eu, como a maior parte dos membros do Partido, apoiamos o acordo, que hoje eu acho bastante infeliz, pelo menos da forma como foi feito. Mas, enfim, em política é assim mesmo: existem estes acordos e se faz de tudo em política. Eu me recordo que na época houve um certo descontentamento nas bases do Partido em relação a esse acordo, inclusive porque, durante o Estado Novo, a Olga Benário, uma grande mulher, que era muito querida entre os trabalhadores – pois havia deixado a Alemanha para se juntar à luta dos trabalhadores brasileiros -, havia sido presa e entregue aos nazistas por Vargas e por uma das principais figuras do regime estadonovista que era o chefe de polícia, Filinto Müller. E esse ato covarde e ilegal ainda estava na memória de grande parte dos trabalhadores, que não viam com bons olhos essa aproximação com Vargas. Diga-se de passagem que esse Filinto Müller era um safado, um verdadeiro gangster, um sujeito completamente desmoralizado e odiado pelos trabalhadores, que inclusive havia sido expulso da Coluna Prestes por ter roubado dinheiro. E, em razão disso, havia uma certa desconfiança dos trabalhadores em relação a essa aproximação. Mas, dadas as circunstâncias da época, poucos contestaram frontalmente essa decisão do Partido, já que eram poucos os que ousavam contestar a palavra de Prestes. Eu me lembro que o que se fazia muito na época, entre os trabalhadores, era rogar praga contra aqueles que participaram mais diretamente da repressão durante o Estado Novo; e, ao que parece, algumas dessas pragas deram certo, já que o Filinto Müller acabou morrendo em um desastre de avião, embora um pouco tarde…


 


E como se deu sua candidatura à Constituinte?


 


Como eu já disse, nessa época eu tinha uma ampla atuação, tanto no Arsenal de Marinha, quanto no MUT. E, em virtude dessa atuação, a direção do Partido me escolheu para ser candidato; achava que eu era um bom nome, conhecido nos meios operários etc. De forma que eu terminei sendo lançado candidato a deputado constituinte pelo Distrito Federal. E fui eleito primeiro suplente de deputado do Prestes, pelo PCB no DF (que era a capital federal, o Rio de Janeiro). Prestes foi eleito ao mesmo tempo senador e deputado pelo Distrito Federal. E ele, ao optar pela cadeira de senador, teve de renunciar ao mandato de deputado constituinte, de forma que eu, na condição de primeiro suplente, assumi o mandato de deputado desde o início dos trabalhos de elaboração constitucional.


 


E como foi a atuação da bancada comunista na Assembléia Constituinte? Como era o seu relacionamento com os demais membros da bancada?


 


A bancada comunista na Constituinte era bastante ativa e disciplinada. Havia uma grande homogeneidade de idéias. Via de regra procurávamos ocupar a tribuna para apoiar reivindicações dos trabalhadores, ou para protestar contra violências policiais que eram cometidas contra o movimento popular. Eu me dava muito bem com todos os membros da bancada; não me recordo de ter tido atritos com nenhum deles. Eu tive alguns atritos com o secretário de organização do Partido, que era o Diógenes de Arruda Câmara (que não foi constituinte; ele foi eleito depois pela legenda do PSP, que era o partido do Ademar de Barros). O Arruda, embora fosse muito combativo e atuante, era muito centralizador e autoritário; às vezes tendia a agir como se o Partido fosse de sua propriedade. E isso gerava constantes atritos, não só comigo mas também com alguns outros comunistas. No tocante à bancada do PCB, nós tínhamos uma atuação bastante intensa no período, que nos tomava praticamente todo o tempo, não nos deixando inclusive tempo de nos reunir com as bases. Geralmente nós saíamos da sessão às cinco horas da tarde (já que as sessões da Constituinte se realizavam de manhã e à tarde) e íamos nos reunir no Comitê Central, em reuniões que muitas vezes iam até tarde da noite. De forma que era bastante difícil termos alguma comunicação com as bases do Partido. Sobre a bancada do PCB me recordo de Gregório Bezerra (PCB/PE), que combateu a favor do direito de voto aos analfabetos e soldados; João Amazonas (PCB/DF), um dos principais dirigentes do MUT a nível nacional, que teve uma grande atuação como deputado constituinte na defesa dos interesses dos trabalhadores; Carlos Marighela (PCB/BA), que era quarto secretário da Mesa da Assembléia, e que também teve uma grande atuação, subindo freqüentemente à tribuna para proferir discursos; Maurício Grabois (PCB/DF), que era o líder do Partido na Constituinte e que fazia os pronunciamentos em nome da organização; Osvaldo Pacheco (PCB/SP), que era presidente da Federação dos Estivadores de Santos, ocupou a tribuna várias vezes para defender os interesses dos estivadores santistas e apoiar as reivindicações dos demais trabalhadores; Jorge Amado (PCB/ SP), que ocupava a tribuna geralmente para se manifestar sobre assuntos relacionados à cultura; José Maria Crispim (PCB/SP), que também defendia as posições do Partido em relação às greves; Alcides Sabença (PCB/RJ), que representava os trabalhadores de Volta Redonda e da usina Siderúrgica Nacional; Agostinho de Oliveira (PCB/PE), um ferroviário, que defendia os interesses destas categorias de trabalhadores; Alcedo Coutinho (PCB/PE), um médico pernambucano que fez vários pronunciamentos sobre a questão da Saúde Pública e defendendo a reforma agrária; Caires de Brito (PCB/DF), outro médico que foi o único representante do Partido na “grande Comissão” da Constituição, ocupando um cargo de grande responsabilidade, que teve uma atuação de grande destaque durante os trabalhos constituintes; Abílio Fernandes (PCB/RS), que também ocupava a tribuna para defender os interesses dos trabalhadores do Rio Grande do Sul; Claudino Silva (PCB/RJ), que inclusive foi o único deputado negro da Constituinte e que era um grande orador, apesar de ser semi-analfabeto. Em suma: havia uma certa “divisão do trabalho” no interior da bancada do Partido, cuja principal liderança era o Luís Carlos Prestes, que inclusive foi o único senador eleito pelo PCB no Distrito Federal. Perto desses companheiros, eu tive uma atuação discreta, procurando, na medida do possível, defender os interesses das categorias de trabalhadores que eu representava.


 


E como era o relacionamento do governo Dutra com a Constituinte?


 


Dutra era uma presidente bastante reacionário que, via de regra, apoiava todas as medidas que vinham da reação, da burguesia. Inclusive ele reprimiu duramente as greves e os sindicatos durante a Constituinte. Eu me recordo, por exemplo, de que ele proibiu um comício em comemoração ao primeiro aniversário da legalidade do Partido, que seria realizado no Largo da Carioca no Rio de Janeiro³. Eu e outros comunistas estávamos no comício que foi varrido à bala; a polícia chegou e simplesmente dissolveu à bala o comício que estávamos realizando. O governo Dutra era bastante reacionário. Inclusive havia uma polícia (a chamada “polícia especial”) especializada em dissolver comícios e reprimir as manifestações populares na época. Outra característica do governo Dutra foi a de ter sido um governo servilmente alinhado aos Estados Unidos no plano externo. Ele chegou a ficar conhecido como “presidente ioiô” pela população da época, já que utilizou grande parte das reservas acumuladas pelo Brasil durante a guerra para comprar toda espécie de quinquilharias e de bens de consumo produzidos pela Inglaterra e pelos Estados Unidos, em vez de reinvestir essas reservas no reequipamento do parque industrial brasileiro. E, em virtude disso, difundiu-se grandemente o hábito de brincar de “ioiô”, que era uma espécie de símbolo do servilismo brasileiro em matéria de política externa. Enfim, foi um governo de repressão sistemática contra o movimento dos trabalhadores e de alinhamento servil com os Estados Unidos.


 


Durante os trabalhos constituintes, o Sr. foi membro da “Comissão Encarregada de investigar a Situação dos Trabalhadores da Light”. O Sr. se recorda dos trabalhos dessa comissão?


 


Sim, me recordo. Ela surgiu através de um requerimento defendido pelo deputado João Amazonas (PCB/DF), solicitando a formação de uma comissão para investigar as denúncias feitas por vários trabalhadores da Light (que era uma empresa anglo-canadense fornecedora de energia elétrica), denunciando as más condições de trabalho e os baixos salários pagos pela empresa. E esse requerimento foi aprovado (diga-se de passagem que foi uma das poucas propostas da bancada comunista aprovadas durante a Constituinte), e então foi formada essa Comissão, cujos membros eram: Hamilton Nogueira (UDN/DF), que era o presidente da comissão; Domingos Velasco, um deputado eleito pela esquerda democrática de Goiás; Benício Fontenele, do PTB do Distrito Federal e outros. Durante os trabalhos constituintes, além das 10 Subcomissões que compunham a “grande Comissão” da Constituição, se formaram várias dessas Comissões Ordinárias que tratavam de vários assuntos. E o Partido me indicou para fazer parte dessa Comissão, formada para estudar a situação dos trabalhadores da Light. Então, eu e outros parlamentares fomos lá investigar a situação dos trabalhadores, conversamos com vários operários da empresa etc. Diga-se de passagem que a direção da Light não nos recebeu e nem fez nenhuma contraproposta às reivindicações dos trabalhadores. O que, aliás, era um absurdo mesmo para a época, já que geralmente as firmas apresentavam uma contraproposta às reivindicações iniciais dos trabalhadores. E aí nós fomos ao sindicato prestar contas aos trabalhadores de nossas atividades na Comissão. Eu então tomei a palavra em nome da Comissão e disse aos trabalhadores: “a 'Light' não aceitou nossa proposta e não formulou nenhuma contraproposta; então ela não quer nada com os trabalhadores. O futuro dos trabalhadores da 'Light' depende então exclusivamente dos trabalhadores da 'Light'; vocês próprios é que vão decidir o futuro de sua situação. O que vocês decidem?”. Eu disse algo mais ou menos assim na Assembléia. E então os trabalhadores entraram em greve, uma greve que teve grande repercussão na época, porque a Light era uma empresa estrangeira que empregava um grande número de trabalhadores. Então ocorreu uma coisa curiosa: eu fui acusado na Assembléia Constituinte de insuflar os trabalhadores à greve! Inclusive o chefe de polícia do Distrito Federal (um reacionário qualquer cujo nome não me recordo) chegou a enviar uma mensagem ao presidente da Assembléia Constituinte pedindo a minha prisão porque eu tinha concitado os trabalhadores à greve! Ora, imagine… Era algo tão escandaloso (mesmo para a época, que era um período de repressão intensa ao movimento popular) que a Assembléia repudiou por unanimidade essa petição do chefe de polícia. Inclusive o próprio presidente da Constituinte, Fernando Melo Viana (um velho político liberal de Minas Gerais, um mineiro de quatrocentos anos eleito pelo PSD de Minas Gerais), repudiou pessoalmente a petição. Inclusive, essa greve foi duramente reprimida na época. Quase mataram o presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Light de pancada (que se chamava Pedro Braga, se não me engano, que também era do Partido). Levaram ele para a polícia e espancaram-no tanto que ele chegou a ficar com o rosto totalmente desfigurado. Nós, então, levamos ele e outros trabalhadores espancados à Assembléia para mostrar aos deputados o que era a democracia brasileira. E dizíamos aos constituintes: “eis aí o significado da democracia brasileira para os trabalhadores”…


 


E qual foi a reação dos deputados ao verem aquela cena?


 


Isso serviu para eles negarem a petição do chefe de polícia, mas poucos se interessaram em investigar com profundidade as causas do espancamento e punir os responsáveis. No início houve um certo impacto, causado pela cena dos sindicalistas espancados, mas depois o tempo passou e a coisa ficou por isso mesmo. Os responsáveis não foram punidos, nem as causas apuradas.  Esse é apenas um exemplo das vária outras violências que eram praticadas contra os trabalhadores e contra os comunistas na época; houve muitos espancamentos, prisões, assassinatos etc. durante os trabalhos constituintes.


 


E como foi a sua atuação após a constituinte?


 


Eu não cheguei a ser cassado, como os demais membros da bancada comunista, porque eu renunciei ao mandato logo após o término dos trabalhos constituintes. Nessa época, o Diógenes Arruda (que, como eu disse, era o secretário de organização do Partido), achava que um dos membros da Comissão Executiva do Partido (o Francisco Gomes, que havia sido eleito suplente) tinha ficado à descoberto pelo fato dele não ter imunidades parlamentares. E o Arruda sugeriu que eu renunciasse ao mandato em benefício do Chico Gomes, e que me candidatasse a vereador no Rio de Janeiro. E eu não aceitei essa proposta do Arruda; achava que tinha sido eleito com os votos dos trabalhadores do Rio de Janeiro, e que devia por isso exercer o meu mandato até o final. Nesse meio tempo, minha mulher ouviu a cantiga da reação e passou a achar que eu ganhava pouco como deputado; que o Partido ficava com uma parte muito grande do meu salário como deputado e que minha remuneração era insuficiente. E ela me disse que eu devia fazer um movimento para aumentar o meu salário. Eu então procurei mostrar a ela que não havia necessidade disso; que eu já tinha aceito doar parte dos meus vencimentos ao Partido – inclusive eu havia assinado em cartório um documento concordando com isso -, e que nós, os deputados (principalmente os deputados comunistas), não havíamos sido eleitos para ficar ricos. Então ela resolveu constituir um advogado e mover uma ação contra o Partido, exigindo uma maior remuneração para mim. Resolvi então levar essa questão à direção do Partido e a direção colocou para mim muito secamente: “Batista Neto é o seguinte: ela não quer ceder. Então você só tem uma saída: ou fica com ela ou com o Partido. Que tal?”. Eles disseram algo mais ou menos assim para mim…


 


E então?


 


Então eu resolvi renunciar ao mandato e voltar ao Ceará para cuidar de minha vida. Não aceitei me candidatar ao mandato de vereador, como propunha o Diógenes Arruda. Apenas exigi que a direção do Partido desse uma ajuda financeira para minha mulher e para meus dois filhos enquanto eu me colocasse novamente em Fortaleza. E então eu voltei para o Ceará.


 


E após o seu retorno ao Ceará, o Sr. continuou a ter contato com o Partido?


 


Continuei. Eu procurei entrar em contato com os membros do Partido, mas ninguém quis me aceitar, já que a direção central do Partido colocou-se contra mim. De forma que eu fiquei me sentindo como uma espécie de “judeu errante”, ou seja, um comunista sem partido, já que eu continuei me considerando comunista, embora fosse hostilizado pelo Partido. E continuei, na medida do possível, a atuar em movimentos políticos no Ceará e a participar das atividades do Partido, embora sem a intensidade de antes. Fui, por exemplo, um dos fundadores do movimento dos partidários pela paz e contra a bomba atômica no Ceará, na década de 1950. Me recordo que nós exibíamos cinema nos bairros contra a guerra, vendíamos jornais fazendo propaganda da paz etc. Também retomei minhas atividades profissionais para me manter. Cheguei, por exemplo, a trabalhar como “galego de prestação”, vendendo redes à prestação nas areias das praias de Fortaleza. Nos anos 60, já após o golpe, eu abri uma livraria na UFCE [Universidade Federal do Ceará] e fiquei cerca de vinte anos vendendo livro na Universidade para os estudantes. E após o golpe de 64 eu não tive nenhuma atuação no Partido. Fiquei numa espécie de ostracismo no seio do Partido. Depois, em 1979, após a anistia, eu me aproximei novamente do Partido, embora devido à minha idade e aos problemas de saúde eu já não pudesse ter uma grande militância.


 


O Sr. não acha que se precipitou em renunciar?


 


É difícil responder essa pergunta retrospectivamente. Acontece que eles me colocaram em uma posição em que eu não tinha saída: ou você fica com ela ou com o Partido. E esses dois problemas (do Chico Gomes e da minha esposa) fizeram com que eu renunciasse ao mandato e divergisse do Partido. Eu achei também que minha renúncia seria melhor para o Partido, inclusive para evitar que a reação aproveitasse os desdobramentos desse litígio jurídico, já que na época a reação aproveitava qualquer coisa para utilizar como propaganda contra o Partido Comunista. É importante esclarecer mais uma vez que, embora eu tivesse renunciado ao mandato, eu nunca abandonei o Partido.


 


Então o Sr. não chegou a ser cassado; mas mesmo assim o Sr. deve ter acompanhado o processo de cassação… E por que o Sr. considera que não houve uma reação popular contra a cassação do Partido?


 


É muito simples. Não houve reação porque o Partido desligou-se de suas bases operárias e perdeu apoio popular; não havia apoio das bases; não havia apoio dos sindicatos; não havia apoio de ninguém. Então ficou todo mundo de braços cruzados e não houve reação nenhuma. E se a direção do Partido resolvesse ordenar aos comunistas que reagissem isoladamente naquela altura, provavelmente haveria um massacre e seriam todos fuzilados, e vigoraria simplesmente a lei do bacamarte. Quer dizer: não houve um trabalho de massa, não houve um trabalho de base. O Partido terminou se isolando das bases, das grandes massas populares devido a seus erros políticos e devido ao estilo excessivamente centralizador e autoritário da direção. Então as massas não se mobilizaram em larga escala para defender a legalidade do Partido… Outro aspecto que deve ser destacado é que vieram muitos elementos arrivistas, muitos elementos carreiristas, muitos elementos que queriam chegar na frente dos outros e que na época visavam somente as recompensas imediatas que poderiam extrair do crescimento do Partido. A prova disso é que, quando o Partido entrou na ilegalidade, o que antes era um enxurrada para dentro do Partido (já que houve um grande aumento do número de filiados do Partido então), transformou-se bruscamente numa enxurrada para fora. Todo mundo corria para fora do Partido, especialmente os membros da classe média.


 


Então, para o Sr., foram principalmente os membros da classe média que abandonaram o Partido?


 


Exatamente. E só a classe operária fez o chamado “pé de boi”, agüentando todo achincalhe, toda a reação, toda a crítica, enfim toda a repressão da época. Nessa época, assim como hoje, os humildes, os mais pobres é que sofreram as conseqüências da repressão e que permaneceram na luta pela melhoria de suas condições de vida. Naquela época, como hoje os trabalhadores e, principalmente, os trabalhadores pobres, são os que mais sofrem as conseqüências da repressão e da miséria. E os políticos continuam fazendo dessa miséria do povo cavalo de batalha para suas campanhas, em vez de resolverem efetivamente os problemas do nosso povo. Eu saí do Ceará em 1921 e vejo que, apesar de alguns avanços, ainda hoje continua boa parte da miséria e dos problemas sociais daquele tempo: continua a concentração de renda, a concentração da terra, os efeitos da seca, a falta de instrução para os pobres etc., enfim, os mesmos problemas que vêm se acumulando desde aquele tempo. E, hoje, eu digo para os trabalhadores a mesma coisa que eu dizia na assembléia dos trabalhadores da Light em 1946: que apenas o povo organizado e mobilizado poderá resolver sua situação, já que a burguesia e os governos que representam essas classes dominantes, não têm interesse real em resolver definitivamente a situação do povo. Porque, como dizia Voltaire, os governos e os déspotas passam, mas o povo continua, só o povo continua a sua luta porque o povo é eterno. E essa luta ainda continua… É por isso que eu, apesar de ter sido abandonado durante longo tempo pelo Partido, ainda me considero comunista já que, se ainda subsistem a miséria e as injustiças, como pensar que a luta dos comunistas e dos trabalhadores acabou? E vejo com simpatia movimentos como esse dos sem-terra, por exemplo, que procuram mobilizar e organizar o povo pela base para lutar por seus direitos e ampliar suas conquistas. Não podemos desprezar os trabalhadores, porque são eles os produtores de uma sociedade nova, de uma sociedade justa, uma sociedade onde não haja sacrificados nem criminosos impunes. Uma sociedade onde o homem seja considerado homem, igual em direitos e deveres a seu semelhante; uma sociedade onde não haja explorados nem exploradores, em suma, uma sociedade diferente da atual, onde o homem permanece infeliz e incapaz de viver a vida em toda a sua plenitude.


 


* Entrevista concedida ao Professor Henri Randel da Universidade Estadual do Ceará (UECE) na residência do ex-deputado em Fortaleza (CE), em março de 1996, baseada em roteiro elaborado pelo Professor Sérgio Soares Braga (UFPR) publicada na Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 6/7, p. 101-111, 1996.


¹ BOC (Bloco Operário e Camponês): organização vinculada ao PCB existente entre os anos de 1928 e 1930, com o objetivo de apresentar os candidatos apoiados pelo Partido a cargos eletivos.


² Tobias Warchawiski, militante do PCB morto por ordem da direção do Partido em 1936, juntamente com Elza Fernandes.


³ A chacina do Largo da Carioca (23-5-1946) ocorre quando das festividades alusivas ao primeiro aniversário da conquista da legalidade. O Comitê Metropolitano do PCB dirigiu-se ao Departamento Federal de Segurança Pública, onze dias antes da data prevista para o comício, isto é, no dia 12 de maio de 1946, para comunicar da realização de tal ato. Dentro da “Quinzena da Legalidade” foi realizada ostensiva propaganda do comício. Aos poucos, toda a cidade ficou sabendo de que no dia 23 de maio, comemorando um ano do comício do estádio de S. Januário, o PCB realizaria um comício no Largo da Carioca. É neste clima que a polícia ardilosamente encaminha, na véspera do comício, uma nota ao PCB alegando, por razões de “segurança pública”, que o comício deveria ser realizado na Praça Nossa Senhora da Paz. Referida praça se localizava no bairro aristocrático de Ipanema, de difícil acesso, fato este que redundava em restrição à liberdade de opinião. No dia do comício, que acabou por aglomerar o povo no Largo da Carioca, em que pese a intervenção inicial do Deputado Batista Neto para que recomendar que todos retornassem aos seus lares, ante a proibição da polícia, houve intensa fuzilaria de festim, que provocou pânico e confusão nos manifestantes. In CARONE, Edgard. A quarta república (1945-1964). São Paulo: Difel, 1980, p. 11-18.