Ditadura militar: Ustra e sua história no banco dos réus

Torturador é símbolo de uma processo histórico brasileiro. Ele e outros criminosos cumpriram um papel que consta dos procedimentos sobre como a elite aplica seu programa de governo.

Por Osvaldo Bertolino


 



A maioria dos jovens que viveu intensamente os ''anos rebeldes'' e amou os Beatles e os Rolling Stones — e também Chico Buarque de Holanda e Geraldo Vandré — lembra muito bem como foram os anos de chumbo no Brasil. Uns saíram ilesos, outros não. Os pais se assustavam com a possibilidade de qualquer aproximação dos filhos com os hippies que iam para as ruas pregar paz e amor. Mas fumar um baseado era uma coisa tolerável pelo Estado terrorista. Contestar o regime, sim, era caminhar à sombra do vale da morte.


 


Os fatos daqueles tempos nunca podem ser esquecidos. Nestes dias em que o debate sobre a anistia concedida aos torturadores daqueles tempos volta a ocupar espaços na mídia, motivado pela ação declaratória de reparação de direitos humanos contra o coronel reformado do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra — responsável, entre outros episódios, pelo assassinato do dirigente comunista Carlos Nicolau Danielli —, é importante relembrá-los.



 


Causas do regime de 1964



 


Principalmente porque ainda há no Brasil gente que defende esses criminosos  — como ficou demonstrado num ato de desagravo a Ustra em Brasília que reuniu cerca de 200 oficiais da reserva — entre eles, 70 generais. Mesmo fora do meio onde a mentalidade fascista do coronel foi criada, há condescendência. Não faz tempo, o ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), indicou um conhecido torturador do DOI-Codi do II Exército, aliado de Ustra, o delegado Aparecido Laerte Calandra — que atuava sob o codinome de ''capitão Ubirajara'' —, para a chefia do Departamento de Inteligência da Polícia Civil (Depol). Alckmin disse, na ocasião, que a anistia de 1979 justificava a indicação.


 


Esse é um tipo de assunto que a mídia cobre mais por obrigação do que por qualquer outro motivo. Não há compromisso com o rigor sobre a informação e com a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos. Não há, sobretudo, rigor sobre as causas daquele regime criminoso. Ele não ocorreu simplesmente porque os militares quiseram. A “questão militar” no Brasil precisa ser compreendida como algo inserido na sociedade. Não se pode, portanto, dizer que haja uma separação entre Forças Armadas e povo — em suas fileiras destacam-se personalidades que são nomes legendários que estão no coração da nossa história. Entre eles não estão, certamente, os militares que cometeram esse tipo de crime durante a ditadura. E nem se pode dizer também que eles expressam o pensamento histórico das nossas Forças Armadas.



 


Ato Institucional (AI)


 



No centro daquela conjura estava um grupo orientado pela ideologia então dominante na Escola Superior de Guerra, criada no berço da Guerra Fria, em 1949 — quando os interesses militares norte-americanos entraram com força no país. Na virada da década de 40 para a de 50, a ameaça de guerra era uma constante no cenário mundial. Para contrapor-se à agressiva política externa dos Estados Unidos, formou-se um amplo movimento democrático, tendo à frente a União Soviética. Esse quadro evoluiu, no Brasil, para a trama golpista abertamente apoiada pelo imperialismo norte-americano quando o governo brasileiro adotou uma política externa independente no início dos anos 60. A máquina golpista foi montada por setores reacionários do Exército — que, com a ditadura, excluíram os principais expoentes da corrente nacionalista e democrática das Forças Aramadas.


 


Consumado o golpe, o Ato Institucional (AI) passou a ser o instrumento para a ditadura ''legalizar'' suas ações políticas não previstas na legislação e contrárias à Constituição. O AI-1, de 9 de abril de 1964, transferiu o poder aos militares golpistas e suspendeu por dez anos os direitos políticos de centenas de pessoas. Em outubro de 1965, o AI-2 concedeu à Justiça Militar a competência de julgar ''crimes contra a segurança nacional''. A estrutura do poder ditatorial foi sendo montada gradativamente, com o Executivo concentrando funções e sob controle do Estado-Maior das Forças Armadas, do Alto Comando das Forças Armadas e do Departamento de Administração da Polícia Civil (este último um organismo de consulta).



 


Adido militar de Washington



 


Foram também criados mais dois órgãos: o Conselho de Segurança Nacional (CSN) e o Serviço Nacional de Informações (SNI). O poder legislativo foi restringido — e, posteriormente, com o AI-5, fechado — e o poder judiciário limitado à função de supervisionar os atos determinados pelo CSN. Todos os suspeitos de atividades contra a ''segurança nacional'' passaram a ser julgados por tribunais militares. O Brasil já havia passado por quarteladas — como a derrubada do governo de Getúlio Vargas em 1945 e a tentativa de impedir as posses de Juscelino Kubitschek e João Goulart. Mas em 1964 foi levado a cabo um projeto das forças mais reacionárias internas e externas, que vinha sendo gestado desde a criação da Escola Superior de Guerra.


 


Por trás de tudo, movendo o aparato, estavam os aliados da direita brasileira, a embaixada dos Estados Unidos e o conhecido general Vernon A. Walters — designado para o posto de adido militar de Washington com o objetivo deliberado de derrubar o governo do presidente João Goulart. A longa duração do reinado dos golpistas — um dos mais longos das ditaduras implantadas no contexto da Guerra Fria — se explica também pelo apoio oligárquico interno. Claro que muitos outros países, incluindo os Estados Unidos, lançaram mão da escravatura como modo de produção após a superação desse sistema em suas formas originais na antiguidade. Só que nenhum deles manteve a escravidão até as barbas do século 20. Nenhum deles também foi dirigido pelos interesses de suas oligarquias rurais até depois da Segunda Guerra Mundial.


 


É certo que o combate histórico ao poder ditatorial — em especial à ditadura militar — temperou as forças democráticas e progressistas. No entanto, pouca coisa mudou na essência do modo como a elite e o povo se vêem e se relacionam. É fácil compreender essa imutabilidade se percebermos que há apenas pouco mais de 20 anos rompemos com a mais aguda inflexão desse pendor autoritário da oligarquia brasileira no período republicano. Esta também se amoldou às mudanças. Ao ideal oligárquico histórico se juntou a nova direita, instrumentalizada pelo capital financeiro.



 


Ponto de vista de FHC



 


O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) expôs, em 1995, o seu ponto de vista a respeito da ditadura militar durante a cerimônia de assinatura da lei que reconhece a morte de desaparecidos políticos durante os anos de chumbo — que exprime uma opinião ambigua ao atribuir aos que lutaram contra a ditadura parte da responsabilidade pelo que aconteceu. ''Culpado foi o Estado, por permitir a morte na tortura em suas dependências'', disse ele. E completou: ''Culpados foram as tendências fundamentalistas que, ao invés de reconhecer diferenças e procurar convergências, insistiram no maniqueísmo.'' FHC só não explicou como poderia se fazer tudo isso à frente de tropas, fuzis e canhões.


 


Como se sabe, as bandeiras que mobilizaram a resistência democrática à ditadura militar ainda estão aguardando solução. Portanto, essa não é uma página que pode ser virada ao sabor dos interesses da elite. Quanto a não repetir esses ''episódios'', isso não depende de governos como foram os de FHC. Depende da luta militante para que as liberdades democráticas conquistadas avancem no sentido de mudanças profundas na estrutura social brasileira. O julgamento de Ustra é um dos elementos necessários à viragem desta página trágica — este é um dos sentidos da busca pelo reconhecimento judicial de que ele foi um dos torturadores da ditadura militar.