Cinema e questão racial: O que é ser negro no Brasil

O curta-metragem Narciso Rap, de Jeferson De, estimula a discussão sobre a identidade negra no Brasil. A respeito dessa discussão, confira o artigo de Noel Carvalho para a Folha de S.Paulo desta sexta-feira (24/11).

 


O que é ser negro no Brasil


 


 


Por Noel Carvalho


 


 


Em tempos de discussões polarizadas sobre as cotas e o Estatuto da Igualdade Racial, assuntos que ainda suscitam acirrados debates, o Canal Brasil, comemorando o Mês da Consciência Negra, coloca mais lenha na fogueira ao programar o provocador curta-metragem Narciso Rap, de Jeferson De (hoje, às 20h45, e amanhã, às 3h30).


 


De um dos mais inquietos e premiados cineastas da nova geração, foi um dos idealizadores do manifesto sobre o cinema negro brasileiro, o irreverente Dogma Feijoada. O Dogma Feijoada, para os que ainda não sabem, foi lançado em 2001 e, na melhor tradição antropofágica, canibalizou o Dogma dinamarquês de Lars von Trier e companhia. A história do grupo foi registrada no livro Dogma Feijoada – O Cinema Negro Brasileiro, da coleção Aplauso (Imprensa Oficial).


 


Sempre cercado pelo bom humor e pela polêmica, Jeferson De deve estrear no longa-metragem em 2007, desta vez colocando um ator branco para interpretar um personagem negro. É este, aliás, o mote de Narciso Rap, em que o adolescente Abayomi de Oliveira interpreta um garoto negro e pobre da periferia que, ao ganhar uma lâmpada mágica, faz um pedido pouco usual para o gênio (interpretado por João Acaiabe, o Tio Barnabé do Sítio do Pica-Pau Amarelo).


 


Narciso quer ser visto pelos brancos como um garoto branco e reconhecido como um garoto negro pelos negros. Subvertendo os termos da democracia racial, que pressupõem a eliminação das cores e raças pela mestiçagem, o pedido de Narciso é de um pragmatismo assustador. Ao reivindicar o melhor dos mundos, não deixa de lembrar posições extremadas, idealizadas pelos que argumentam simplesmente contra ou a favor das cotas. Com o pedido, a confusão se instala.


 


A provocação não pára por aí. Narciso Rap é dedicado à Wilson Simonal, que, segundo De, ''foi um artista branco para os brancos e negro para os negros''. Há ainda referências gerais que vão do rapper Sabotage às obras do artista Ivald Granato. A direção de fotografia foi feita por Carlos Ebert, o mesmo de O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla.


 


Mais do que resolver o problema proposto traçando um final feliz, o filme parece estar preocupado em colocar mais ''fotograma no ventilador'', expondo o momento de crise em que se encontra a discussão sobre quem e o que é ser negro no Brasil. Ao apontar para a canção Nem Vem que não Tem, de Simonal, fica a dúvida: será que o diretor indica um dos caminhos possíveis na discussão?


 


É curioso perceber como essa e outras obras do cineasta e do seu grupo podem servir de contraponto à discussão racial que tomará conta do Congresso e da sociedade no ano que vem e que já deu os seus primeiros sinais. Se seguirmos a pista de Narciso Rap, aprenderemos que há muito mais a ganhar no meio que nos extremos. Vale conferir e tirar as próprias conclusões.


 


* Noel Carvalho é mestre em cinema pela Unicamp, doutor em sociologia pela USP e diretor do curta O Catedrático do Samba