Globo prepara-se para o segundo governo Lula

Por Gilberto Maringoni, na Carta Maior
Depois de apostar suas fichas no caso da compra do dossiê, a Rede Globo sofre desgaste diante da opinião pública. O governador do Paraná, Roberto Requião, mostra erro em cobertura e a emissora tenta se explicar. P

Há vários indícios de que as Organizações Globo sofrem um processo de mudanças internas com vistas ao segundo governo Lula. Elas vão no sentido de uma maior unidade na cobertura geral de todos os veículos da rede – TVs, rádios, jornais e portal na internet. No centro da operação está o diretor de jornalismo, Ali Kamel, 44, um sociólogo carioca que ingressou nas empresas do grupo em 1989 e é protagonista de uma fulgurante carreira rumo ao topo. Para falar de Kamel, vamos comentar alguns acontecimentos das últimas semanas.



Na noite da quarta-feira, 8 de novembro, tendo como fundo apenas as bandeiras do Brasil e do Paraná e envergando um casaco de couro preto sobre uma camiseta vermelha, o governador Roberto Requião olhou fixamente para a câmera e ligou sua metralhadora verbal. Em quatro minutos e um segundo cravados fez um duríssimo ataque a Rede Globo de Televisão na TV Educativa do Paraná (http://www.aenoticias.pr.gov.br/visualizar2.php?video=243).



Apresentando dados e informações, Requião buscou desmontar a série de reportagens sobre supostos problemas no porto de Paranaguá, apresentadas pelo Jornal Nacional antes e depois das eleições. O porto, um dos principais terminais públicos de exportação de grãos do país, era exibido como ineficiente e defasado. O motivo: não teria passado por um esforço modernizante, somente possível através da privatização. (Veja a matéria de Carta Maior a respeito em http://cartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=12798).



“Durante a campanha eleitoral”, disse Requião, “Pedro Bial esteve aqui (em 5 de agosto), cobrindo os gargalos do Brasil e filmou um terminal privado, afirmando haver congestionamento de caminhões no porto público, dizendo que deveríamos privatizá-lo”. Em seguida, o governador cita outro caso: “Ernesto Paglia, no Jornal Nacional do dia 7 (de novembro), disse que nós temos filas de 90 quilômetros (nas estradas para o porto), e apresenta um filme de 2002, quando nós não estávamos no governo”. Sem fazer pausa, Requião dispara: “As notícias são mentirosas. (…) Eles fazem o elogio da privatização”. E finaliza perguntando “Quando é que a Globo vai se emendar?” Para completar, o governo paranaense enviou à direção da emissora um calhamaço de documentos atestando a inexistência de filas no terminal, pedindo a correção da matéria.



Carta Maior procurou seguidas vezes ouvir o repórter Ernesto Paglia na tarde e na noite da sexta-feira, 17, mas não o localizou.



O mea culpa de Bonner



Dois dias depois do pronunciamento de Requião, na sexta feira, 10, William Bonner, apresentador do Jornal Nacional leu, no meio da edição, a seguinte nota: “Nesta semana, o Jornal Nacional errou ao mencionar filas quilométricas de caminhões em Paranaguá. Estas filas praticamente sumiram desde a implantação do novo sistema de controle de embarque de cargas, em 2004″.



O Secretário de Imprensa do governo local, Benedito Pires avalia que a autocrítica externada por Bonner tem duas motivações principais: “As pressões e denúncias que veiculamos e ao desconforto existente nas redações, com a forma dos patrões dirigirem as empresas de comunicação”. E vai além: “Se Requião tivesse perdido as eleições, como eles queriam, não haveria autocrítica alguma”.



O governador paranaense, ao que tudo indica, tornou-se o novo alvo da grande mídia. A primeira entrevista coletiva de seu governo, na segunda-feira 30 de outubro, foi marcada pelas ríspidas acusações aos meios de comunicação presentes na sede do governo. O motivo era o suposto favorecimento da imprensa ao seu oponente, senador Osmar Dias (PDT), derrotado por uma diferença mínima de 0,2% dos votos válidos.



O comportamento do chefe do executivo mereceu o seguinte parágrafo do editorial principal da Folha de S. Paulo de 1° de novembro, que mencionava os atritos entre o PT e a mídia: “Envereda pelo mesmo caminho o governador Roberto Requião, conhecido pela boçalidade, que inventou um complô de veículos de comunicação para explicar sua reeleição apertadíssima no Paraná”.



Abaixo assinado



Há suspeitas de que a série de matérias sobre o porto de Paranaguá foi articulada previamente com comerciantes e industriais paranaenses, a quem interessaria a derrota de Requião.



Assim, a possível trama nacional à qual a emissora teria se engajado, para forçar o segundo turno presidencial, teria contado com pelo menos uma subtrama regional. Com a dupla derrota sofrida – as eleições de Lula e Requião – e um visível desgaste público, é natural que a emissora tente agora reparar o que for possível na própria imagem. O mea culpa é um dos componentes deste movimento, mas não o único. Além da satisfação à opinião pública, há um movimento interno à empresa e aos seus círculos próximos, no qual se insere o episódio do abaixo-assinado de 172 jornalistas da emissora, articulado pelas chefias do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Cuiabá, de Belo Horizonte, de Brasília e de Recife.



Entre alguns jornalistas da emissora, no Rio, é voz corrente que Ali Kamel seria o principal incentivador texto em apoio à cobertura eleitoral da emissora. O documento faz, sem citar nomes, um ataque direto às matérias de Raimundo Rodrigues Pereira, publicadas na revista Carta Capital, denunciando as articulações midiáticas realizadas a partir do episódio do dossiê dos Vedoin.



O abaixo assinado esteve longe de ser uma unanimidade interna. Uma minoria entre os profissionais de jornalismo da empresa o apoiou, como pode ser verificado com uma simples comparação. Somente na Globo de São Paulo, contando as produções, as áreas ligadas a CGP (Central Globo de Produção) e CGCom (Central Globo de Comunicação), há aproximadamente 300 jornalistas. O número total, no Brasil, contando as emissoras filiadas, é de cerca de dois mil profissionais.



Divulgado apenas pelo site Comunique-se, lido especialmente por gente da área, o objetivo do documento é legitimar as orientações da chefia de reportagem, exercida com mão de ferro por Ali Kamel. Discreto e extremamente dedicado ao trabalho, é provável que Kamel tenha ficado insatisfeito com o desgaste gerado pela cobertura e pela exposição pública a que seu nome foi submetido. O abaixo-assinado serviria como um respaldo à sua conduta. As chefias da emissora não se pronunciam publicamente.



Entre os repórteres cariocas há um crescente incômodo com a obsessão detalhista com que Kamel supervisiona tudo o que vai ao ar. No período eleitoral, essa busca pelas minúcias se acentuou.



Saída de Franklin Martins



Ali Kamel exerce a função atual há três anos e meio. A guinada mais sensível sob a batuta do novo chefe foi percebida em abril último. Foi quando Franklin Martins, o comentarista político mais independente da emissora, não teve seu contrato renovado. A explicação do diretor de jornalismo foi a de que sua imagem não era boa em pesquisas realizadas entre os telespectadores. Em seu lugar entrou Merval Pereira, diretor de redação do jornal O Globo.



Batendo seguidamente no PT e no governo Lula durante a campanha eleitoral, Pereira faz parte do time de comentaristas que parecem seguir uma orientação orquestrada. No time estão Miriam Leitão, Carlos Alberto Sardenberg, Alexandre Garcia, Cristiana Lobo e Jorge Bastos Moreno. Este último, colunista de O Globo e blogueiro, fez circular, entre os jornalistas da emissora, uma mensagem no tom de “temos de vestir a camisa das Organizações”.



Inteligente, competente e centralizador, Kamel busca unificar as coberturas de todos os veículos das Organizações Globo, as TV aberta e a cabo, a rádio CBN e o jornal, do qual é também colunista. Ao que tudo indica, ele é também o responsável pela contratação de outro profissional com idéias aproximadas às suas.



Trata-se de Demétrio Magnoli, 48, geógrafo e cientista político, formado pela USP. Com os cabelos permanentemente despenteados, Magnoli ainda mantém o jeitão de dirigente da histórica Libelu, abreviação da corrente trotskysta Liberdade e Luta, atuante no movimento estudantil dos anos 1970/1980, de onde saíram, entre outros, Antonio Palocci e Luiz Gushiken.



Em 24 de agosto último, Magnoli escreveu, em sua coluna semanal na Folha de S. Paulo, um derramado elogio ao livro de Ali Kamel, Não somos racistas (Editora Nova Fronteira). Segundo o colunista, “Escrever tal livro é um ato de coragem, ainda mais se o autor ocupa um cargo executivo no jornalismo das Organizações Globo. Uma coragem cívica, necessária”. Semanas depois, Magnoli anunciava seu desligamento da Folha e transferia-se para os jornais O Globo e O Estado de S. Paulo.



Unificando pontos de vista e afinando um discurso mais incisivo e menos pluralista, a Globo prepara-se para o segundo governo Lula. Resta ver qual será a reação do outro lado.