Os netos de Zumbi… e os do capitão Mendonça

Por Bernardo Joffily
O conteúdo da mídia dominante brasileira sobre os 311 anos da morte de Zumbi é contraditório. Tem o mérito de abrir um espaço, inimaginável apenas uma geração atrás, para o herói do quilombo de Palmares, que conquistou seu lug

Zumbi foi, antes de mais nada, um dirigente e um mártir da luta pela liberdade e contra o sistema escravista. Comandou neste combate homens e mulheres de todas as ''cores'' e ''raças''.



O lugar do escravismo na história do Brasil



Dos três antagonismos de classe fundamentais que moldaram a sociedade brasileira — escravos x senhores, camponeses x latifundiários e proletários x burgueses — o primeiro foi o mais duradouro. Marcou a fundo a história do país e deixou marcas que persistem.



Se reduzíssemos todos os 506 anos da formação brasileira a uma semana (com cada dia valendo 72 anos e três meses), a escravidão surgiria às 3 horas da madrugada do primeiro dia, domingo, com o embarque dos primeiros 40 escravizados, indígenas, na nau Bretoa a caminho de Portugal, em 1511. E perduraria até as 13 horas do penúltimo dia, a sexta-feira, com a vitória da Campanha Abolicionista em 1888. Um dia e 18 horas sem escravidão, para cinco dias e seis horas com escravidão…



A formação social escravista, as classes fundamentais eram os senhores escravocratas e os trabalhadores escravizados. Estes podiam ser ''negros da terra'' (indígenas) ou ''negros da costa'' (africanos), ''boçais'' (recém-chegados ao Brasil), ''ladinos'' (já dominando a língua e os usos da terra) ou ''crioulos'' (nascidos na escravidão). Sua luta, contra a escravidão e pela liberdade, foi a principal manifestação da luta de classes no Brasil da colônia e do Império.



A luta de classe contra a escravidão



Esta luta não se circunscreveu a uma única ''cor'' ou ''raça'', embora os negros, principal contingente escravizado, tenham sido os seus principais protagonistas. Foi um longo embate de mais de três séculos e meio.



A luta contra o sistema escravista teve o seu primeiro auge na Guerra ou Confederação dos Tamoios (1555-1567), que mobilizou os povos indígenas escravizados do litoral fluminense e paulista. Passou por Palmares, onde habitaram e combateram negros, brancos e índios. Passou por muitas centenas, possivelmente milhares de quilombos, alguns deles de índios, ou de negros e índios, em especial na Amazônia (ver a respeito o precioso livro A Hidra e os pântanos, de Flávio dos Santos Gomes). Passou pela Conjuração dos Alfaiates de 1798 na Bahia, que resultou na prisão de brancos, negros e pardos — embora só os últimos tenham pagado na forca por sua ousadia revolucionária. Passou pela revolta dos colonos suíços da fazenda Ibicaba, São Paulo, contra o que chamaram ''nova escravidão'', tema de outro livro obrigatório, Memórias de um colono no Brasil, do suíço Thomas Davatz.


 


Esta luta multissecular triunfou com a Campanha Abolicionista de 1880-1888. Foi a primeira campanha de massas da história do país, precursora de inúmeras outras, todas de sentido progressista. Mobilizou brasileiros de todas as cores, escravizados ou não, tendo nas fugas em massa da escravaria de São Paulo, Rio e outras províncias a sua manifestação mais incisiva. Obteve em 13 de maio uma vitória notável, ao acabar com a escravidão sem idenizar os proprietários escravistas (ainda que os livros didáticos convencionais tentem reduzi-la a um gesto de bondade da princesa de olhos azuis, que a bem da verdade só se converteu ao abolicionismo em fevereiro, três meses antes de assinar a Lei que a história conhece como Áurea).



Herança social e histórica



Recuperar estes fatos históricos tem importância porque há brasileiros de todas as cores entre os descendentes e os herdeiros do negro Zumbi dos Palmares. Assim como há os descendentes e os herdeiros do capitão Furtado de Mendonça, chefe da expedição que apunhalou Zumbi nas serras do sul de Pernambuco, assassinou-o, decapitou-o,  acondicionou a cabeça em uma barrica com sal, tendo o pênis enfiado na boca, e levou-a ao governador Melo e Castro, onde foi exposta num poste do Recife, para que nunca mais ninguém ousasse se erguer contra a ordem estabelecida.



As classes trabalhadoras da modernidade brasileira, com destaque para o campesinato e o proletariado, são os descententes e os herdeiros diretos da luta de Zumbi e de todos que enfrentaram a escravidão. Descendentes e herdeiros não no sentido estrito (a história não registra se o dirigente dos Palmares deixou filhos), mas do ponto de vista histórico e social. E as classes exploradoras da modernidade brasileira são descendentes e herdeiras do capitão Mendonça: basta ver como continuam a comportar-se, a despeito de vivermos há inéditas duas décadas em um regime de relativa normalidade democrática e sob uma Constituição que assegura formalmente certos direitos sociais.



Obra coletiva de incontáveis heróis



Para se enxergar esta saga de combates em toda a sua dimensão é preciso, ainda, encará-la como obra coletiva. Palmares tinha 20 mil moradores, 30 mil segundo alguns (quando Salvador tinha 15 mil e o Recife 10 mil). Quantos outros, afora Zumbi, realizaram quais proezas?



Aos poucos a historiografia avançada vai desencavando as histórias escondidas de outros heróis e heroínas da luta contra a escravidão. Como o maranhense Cosme das Chagas, combatente da Balaiada enforcado em 1842, que teve a argúcia de criar uma escola no quilombo que comandava nas cabeceiras do Rio Preto. Como Luiza Mahin, participante da Insurreição dos Malês na Bahia de 1835, mãe do mulato Luiz Gama, poeta e advogado abolicionista. Como incontáveis outros ainda não desenterrados.



Um herói, uma heroína, é uma vida heróica, uma causa heróica, e é sobretudo a memória do seu heroísmo na consciência coletiva de um povo. Cosme, Luiza e sabe-se lá quantos outros esperam a hora desta consciência os descobrir.



Zumbi foi trucidado como bandido, esquecido, envolto em lenda, perdido numa nota de rodapé da história oficial. Nem sua imagem se conhece ao certo, sendo a reconstituição mais difundida a de uma tela de Manuel Victor.



Zumbi ressuscitou na onda de mobilizações populares dos anos 80. Impôs-se então talvez como o herói mais vivo da atualidade brasileira. Herói dos negros mas também dos brancos e dos índios e dos nisseis e árabes e de todo um povo mestiço. Herói dos brasileiros que dão valor à liberdade. Herói dos que combateram e combatem as escravidões de ontem e hoje, dos que lutam para emancipar o trabalho e os trabalhadores.