Denise Dummont fala sobre seu pai, Humberto Teixeira

Do dia-a-dia de Humberto Teixeira nasceram as lembranças mais carinhosas da vida dele. Algumas delas estão aqui colocadas pela filha única dele, a atriz Denise Dummont, que hoje vive em Nova York.

Lá de Nova York partem as lembranças da intimidade de Humberto Teixeira. A memória do homem sério e bem-humorado, inteligente e atencioso é retomada pela atriz Denise Dummont, filha única do casamento dele com a pianista Margarida, que acabou desfeito em 1962, sete anos após o nascimento da menina. Dos Estados Unidos, onde mora há quase 20 anos, a atriz reconstrói agora a história do pai pelo caminho inverso.


Parte do estrangeiro, das reminiscências de sua mãe – que também mora por lá -, para logo em seguida chegar ao Rio de Janeiro, terra que sediou a carreira de Teixeira e onde se encontra boa parte do legado de amigos deixado por ele após a morte em 1979. Depois disso, é chegada a hora de rumar a Fortaleza, onde o menino se criou até os 16 anos e aproximou-se da música, para só então voltar definitivamente para Iguatu, berço do interior do Ceará de onde saiu ainda menino para a capital do Estado.


Essa é a ordem na qual as lembranças de Denise vêm se organizando, a mesma das gravações de O Homem que Engarrafava Nuvens, documentário que ela está produzindo em homenagem ao pai. Há cinco anos ela tomou para si a missão de reavivar a imagem e o trabalho do compositor. Daí não só o filme, mas também o livro Cancioneiro Humberto Teixeira, a ser lançado na quarta-feira (22).


A idéia de trazer Humberto Teixeira à tona foi inspirada pela dedicação de Ana Lontra Jobim em manter vivo o legado do marido Tom Jobim, morto em 1994. Ao perceber isso, Denise resolveu fazer o mesmo com o pai, passando, logo em seguida, ao início dos trabalhos. “Honestamente, eu só me dei conta do tamanho do legado há uns 10 anos. (…) Acho que tem aquela coisa também do filho, em geral, reagir aos pais; de ter uma certa revolta natural. Agora estou compensando. Agora que vi do que se trata a obra dele, ninguém me segura. Não quero que meus filhos levem tanto tempo para entender como eu levei”, relatou ela, por telefone, de Nova York, ao Vida & Arte Cultura deste domingo.


É para os filhos Diogo, de 30 anos, e Anna Bela, de 18, que ela dedica as carinhosas lembranças expostas no Cancioneiro. Entre elas, a de Humberto Teixeira carregando Denise ainda muito menina no colo e fazendo-a “apagar” as lâmpadas da casa com um sopro. Memória dos tempos em que ela ainda era a Pimpinha do compositor, antes dos atritos com o pai conservador que não queria deixá-la ser atriz e do primeiro reconhecimento dele da profissão da filha, ocorrido um dia antes dele morrer. Memória também do político durão que defendia os músicos a todo o custo, batalhando por leis de direitos autorais, e do gênero estilizado por ele que a menina só viria a descobrir adulta, assim como a Balada para Denise curtir Iguatu, que só chegou aos ouvidos dela há poucos anos, numa passagem por Fortaleza.


Nesse baú de recordações, sobram fatos para ainda serem explorados, como as partituras antigas encontradas pela atriz no meio dos arquivos deixados pelo compositor, e, também, o temor de Humberto Teixeira em ser esquecido pelo Ceará que tanto amou e cantou. Hoje, 27 anos após a partida dele, Denise trabalha para desfazer esse mal-entendido e provar que a obra do pai se enraizou mais profundamente no Ceará do que ele próprio poderia imaginar.



Na apresentação do livro que vai ser lançado agora, você relata a última lembrança de Humberto Teixeira, num almoço que os dois tiveram um dia antes dele falecer. Qual a primeira lembrança que você tem do seu pai?


 
A primeira lembrança… Ah, eu me lembro – é uma coisa que escrevo até ali – de ir no colo dele passeando pela casa apagando a luz com um sopro, ou achando que estava apagando com um sopro levada no colo por ele. (risos) Era uma brincadeira que a gente tinha e eu era muito pequena. É uma das coisas que me lembro.
 


Quando você nasceu, seu pai já era um “monstro sagrado”, como diz o jornalista Sérgio Cabral. Em que momento você se deu conta disso?


 


Honestamente, eu só me dei conta do tamanho do legado há uns 10 anos. Porque quando ele virou esse “monstro”, quando o baião foi feito, eu ainda não era nascida. Então, na verdade, a minha infância foi na decadência do baião, numa das épocas em que o baião ficou meio dormente. Foi a época em que entrou bossa nova, mas daí o baião começou a ter renascimentos, como na época da Tropicália. Ele é como um gato de sete vidas, que fica voltando. A cada década ele volta. Realmente só fui apreciar a importância monstruosa disso como adulta. Aí eu fui entender exatamente o que era a poesia dele, a música… A história do Brasil, do Nordeste, da migração, da seca. É uma coisa de uma importância tremenda. Eu sabia, obviamente, que ele era compositor e que tinha sua importância, mas não tinha consciência disso de jeito nenhum. Mamãe era pianista clássica, minha música de ninar era música clássica e, depois, fui criada em Ipanema e a música de lá era rock, era Beatles e, no máximo, bossa nova. Realmente só fui apreciar a importância monstruosa da obra dele como adulta. Aí eu fui entender exatamente o que era a poesia dele, a música… A história do Brasil, do Nordeste, da migração, da seca. É uma coisa de uma importância tremenda. Adorava Qui Nem Jiló, mas achava outras músicas muito tristes, como Assum Preto. Me levou uma vida pra entender isso. Acho que sou meio devagar (risos). Acho que tem aquela coisa também do filho, em geral, reagir aos pais, de ter uma certa revolta natural. Agora estou compensando. Agora que vi do que se trata a obra dele, ninguém me segura. Não quero que meus filhos levem tanto tempo para entender como eu levei.



Humberto Teixeira é lembrado por muitos como um boêmio. Ele continuou assim quando se separou de Margarida?



Não, ele saiu muito da vida pública. Ele virou cada vez mais e mais sério e dedicado ao direito autoral. Era bastante rígido, formal, um machão nordestino. Mulher era pra ficar em casa – na cozinha de preferência. O máximo da liberalidade dele era que eu fosse uma advogada, mas atriz, não. Ele era totalmente contra. Isso causou muito atrito entre a gente. Um dos atritos foi exatamente a mudança do seu próprio nome artístico, que passou para Dummont porque ele não a havia permitido utilizar o Teixeira como atriz. Exatamente, ele me proibiu de usar o nome dele. Era uma loucura. Levou tempo para ele conciliar-se com meu trabalho. Ele era contra, não gostava, porque comecei a trabalhar muito cedo e parei de trabalhar pra vir fazer faculdade em Nova York. Aí ele ficou um pouco mais contente porque eu não estava trabalhando, estava fazendo faculdade. Aí voltei, continuei fazendo novelas e teatro. Ele engolia, mas não gostava. Acho que ele começou a assumir e ficar mais tranqüilo com tudo isso realmente no finalzinho da vida dele. Acho que no último dia foi a primeira vez que ele foi comigo ver a locação onde eu fazia a novela. Foi a primeira vez que ele pareceu ter aceito minha opção.



Em que outras situações você batia de frente com ele?



Batia de frente com ele em tudo. Ele era realmente muito conservador. Não admitia que eu usasse maquiagem, que saísse, fosse à festa, tivesse namorado. Era extremamente rígido. Talvez por isso, quando ele morreu, eu tenha me casado com a carreira. Fui fazer cinema, fiz filmes ousados, um monte de coisas que foram um grito de libertação. Acho que foi também por isso que levou tanto para dar a volta e entender e apreciá-lo mais.
 


Carmélia Alves, menciona lembrar de você no meio das festas organizadas por eles em Mandalai (a casa construída por ele em São Conrado, no Rio de Janeiro). Como você lidava com essa rotina dentro de casa?



Eu não via nada de extraordinário (risos), porque foi assim que fui criada. Aquelas pessoas faziam parte da minha vida, da vida do meu pai. Era o povo que aparecia no final de semana. Era a Carmélia, a Dalva de Oliveira… Quando você está dentro da coisa, você não vê se é especial ou diferente. Faz parte do seu cotidiano. Realmente a perspectiva você só tem com a distância.


 


Humbero Teixeira também tinha uma vinculação política. Em 1954 tornou-se deputado federal pelo Estado do Ceará. Como ele enxergou a ascensão da ditadura militar e o cerceamento de artistas naquela época pós-64?



Ele era uma pessoa política, então tentava se locomover dentro dessa ditadura. Ele tentava continuar lutando pelos artistas, pelos compositores, dentro desse estado terrível do qual ele era obviamente contra. Mas ao invés de ele bater de frente como muitos, ser exilado e sair do País, ele tentava, como bom político, se locomover por dentro ao tentar manipular o sistema e conseguir alguma coisa além de ser preso e mandado embora. Essa era a atitude dele. As caravanas continuaram após a ditadura porque ele brigava por isso. A maior batalha dele continuava sendo pela música. Ele fez isso independente de sistema político.


 


Você chegou a acompanhá-lo em algumas dessas caravanas da música popular brasileira?



Não, eu era muito pequena. Lembro de umas coisas ótimas. Na época não havia essa facilidade de falar por telefone. Então minha tia ou avó me levavam em algum Ministério – nem lembro que Ministério era -, no centro do Rio de Janeiro, numa hora marcada em dias determinados para ele me ligar lá da Europa pra gente conversar. Tinha toda essa viagem ao centro do Rio para a gente pudesse se comunicar. A música era a grande luta dele, nada o impedia de levar a cabo essa história das caravanas. Ele vendia carro para financiar os custos. Ele segurava a onda. Era uma pessoa generosa. De viagem com ele… Viajávamos muito para Mangaratiba (município localizado a 110 quilomêtros da capital do Rio de Janeiro). A gente tinha vários planos. Se ele não tivesse morrido tão cedo a gente teria curtido muito mais, porque quando fiquei mais adulta foi quando passou a ser mais fácil a gente se comunicar.


 


Agora você está com esse filme, O Homem que Engarrafava Nuvens. Em que pé está a produção dele?



Comecei esse filme há quase cinco anos com a Ana Jobim, mas com grande dificuldade. Estourei cartão de crédito, levantei dinheiro com amigo, com gravadora, fez o que deu para começar a filmar, mas não dava pra arrastar mais. Cinema é uma coisa muito cara e eu tive dificuldade de registrar o filme logo porque nunca produzi antes, então levou tempo para esse projeto ter credibilidade. Mas daí, finalmente, consegui registrar como um projeto de cultura na Ancine e ter o benefício da Lei Rouanet e Lei do Audiovisual. Graças a isso e à muita batalha de pessoas a quem sou grata e devo até o fim da vida. Uma das pessoas que mais me ajudou, me levou na Petrobras, chama-se Inácio Arruda, que acabou de virar senador. Se não fosse ele eu não estaria filmando agora. Foi de uma postura de ajuda e de resgate cultural impecável. A outra pessoa é o Roberto Smith, presidente do Banco do Nordeste, que foi um dos primeiros a botar dinheiro no filme e a ter fé nesse projeto. Tem o Pedro Álvares, que é um cearense que virou meu irmão, é um dos meus melhores amigos que me ajuda nesse projeto exclusivamente por amor a essa obra. Graças a isso, me associei à Total Filmes e finalmente o filme está acontecendo. Lírio Ferreira e Walter Carvalho estão comigo desde o primeiro dia de filmagem há cinco anos. Daqui a pouco estaremos no Ceará filmando. Quero mostrar pro mundo como o Ceará é lindo e de onde veio a inspiração do pai. Agora tá indo. Agora sai.


 


O livro foi uma conseqüência do filme? Como foi o trabalho de recolher material?



Tudo parte do mesmo projeto. A Ana Jobim foi a pessoa que me inspirou. Há quase seis anos ela estava morando em Nova York e a gente se conheceu porque nossas filhas são da mesma idade, daí nos apresentaram. No final, a Ana e eu ficamos muito amigas. A postura da Ana me inspirou demais, como ela cuida da obra do Tom, como ela mantém aquilo viva de uma maneira linda e com muito amor. Eu fiquei pensando: “Que loucura, eu fiquei tão paralisada pela perda que há 20 anos não consigo encostar nisso e eu tenho dois filhos que não têm idéia de quem meu pai foi, de quem o avô deles foi, que legado eles herdara”. A Ana foi a pessoa que detonou isso. Então começamos a conversar. Qual o primeiro passo? Chegamos à conclusão que o filme seria o mais indicado porque é o que eu fiz a vida inteira como atriz. Então começamos por aí. Paralelo a isso, ela já estava fazendo o Cancioneiro, que era projeto com o Tom. Falei “Poxa, vamos fazer um do papai?” “Vamos!”. Então a coisa foi acontecendo. É tudo ligado para trazer a memória de Humberto Teixeira à tona, porque ele ficou muito à sombra de Luiz Gonzaga, isso sem culpa do Luiz. Talvez essa tenha sido uma opção dele, mas não é a minha (risos). A minha é trazer ele à tona e que a juventude e todo mundo saiba o que ele fez e aprecie.



Seu pai faleceu cedo. Você lembra de algum projeto que ele deixou inconcluso?



Ele deixou várias músicas. Eu achei várias partituras depois. Esse é um outro projeto para depois do filme. Eu ainda não descobri tudo, não. Ele deixou o material e eu guardei o acervo inteiro dele. Volta e meia, vou atrás disso. Outro dia abri uma pasta e descobri várias partituras, letras ainda dos anos 30, 40. Ou seja, tem muita coisa pra ser feita depois.



Em algum momento ele mencionou a você a vontade de voltar para o Ceará?



Ele era louco pelo Ceará, tinha um profundo amor pelo Estado, mas não sabia se o Ceará tinha esse amor por ele. Ele tinha dúvidas disso, às vezes achava que não. Ele achava que amava mais o Ceará do que o Ceará o amava. Nas últimas músicas dele, em Balada para Denise curtir Iguatu, ele se pergunta isso. “Será que o Ceará me esqueceu?”. Mas acho que hoje em dia ele estaria mais feliz, vendo que não está esquecido, não.



Entrevista concedida a Amanda Queirós, de O POVO