Belluzzo: Friedman e o ressurgimento do conservadorismo

Professor analisa o papel de Friedman na teoria econômica na segunda metade do século 20

Por Luiz Gonzaga Belluzzo*


 


Ainda nos anos 50, tempo de esplendor e glória das políticas keynesianas, o libertarianismo de Frederich Hayek e o monetarismo de Milton Friedman formaram a comissão de frente da ofensiva contra ''os inimigos da liberdade econômica''. Não eram ouvidos nem cheirados. Foram ressuscitados pela ''estagflação'' do final dos anos 60 e início dos 70.


 


Depois de trinta anos de desempenho brilhante, as economias capitalistas emitiam sinais de fadiga estrutural. Os assim chamados Anos Gloriosos estavam nos estertores. A Golden Age agonizava. Na Era Dourada – entre o fim da Segunda Guerra e o início dos anos 70 do século passado – conviveram em harmonia o crescimento rápido, a baixa inflação, reduzidas taxas de desemprego, aumento dos salários reais e integração das massas aos padrões modernos de consumo e de convivência.


 


Na década dos 70, o jogo virou. Entrou em campo a funesta combinação entre inflação e baixo crescimento. O bloco ideológico que se opunha às políticas ''intervencionistas'' e ao Estado do Bem Estar tratou de atribuir o desarranjo à decrepitude das políticas e das práticas que buscavam controlar a instabilidade do capitalismo e impedir que o destino dos cidadãos ficasse à mercê das incertezas do mercado.


 


Na visão liberal-conservadora, os propósitos de proteger o cidadão contra os azares e as incertezas do mercado terminaram provocando efeitos contrários aos pretendidos. A despeito das diferenças analíticas e de método, Hayek e Friedmam sustentavam que os ''anos gloriosos'' estavam fadados inexoravelmente ao fracasso em sua insana tentativa de interferir nos movimentos naturais dos mercados. As políticas monetárias frouxas combinadas com pactos ''corporativistas'' entre as classes sociais e grupos de interesses, levaria inevitavelmente ao baixo dinamismo e à inflação crônica e elevada.


 


Logo depois, os novo-clássicos, escorados na hipótese das expectativas racionais, reforçaram as tropas do reformismo anti-intervencionista. Expediram uma sentença condenatória ainda mais dura ao proclamar a ineficácia absoluta das políticas fiscal e monetária em sua vã pretensão, assim diziam, de limitar a instabilidade cíclica e promover o crescimento da economia. Os governos logo haveriam de aprender: os agentes racionais que povoam os mercados sabem exatamente qual é a estrutura da economia e, usando a informação disponível, são capazes de antecipar sua evolução provável. Não se deixam enganar, nem por um momento, pelo velho truque de estimular a atividade econômica com os anabolizantes nominais da política monetária leniente. Caso insistam nessa prática, políticos e burocratas voluntaristas, em vez de mais empregos, conseguirão apenas mais inflação, salvo na hipótese improvável de que possam surpreender e tapear permanentemente os sagazes agentes privados, implacavelmente racionais.


 


Para os seguidores da teoria da escolha pública de James Buchanan – outro guerreiro do conservadorismo liberal – a escalada de concessão de direitos e benefícios sociais, levou não só à ampliação, mas também à persistência dos déficits orçamentários. A acumulação de déficits, por sua vez, determinou o crescimento desmesurado dos estoques de dívida pública, com inevitáveis tensões sobre as taxas de juros, constrangendo o investimento privado, além de provocar um salto nos níveis de inflação.


 


Para acrescentar ofensa à injúria, os mercados de trabalho, castigados pela rigidez nominal dos salários e por regras políticas hostis ao seu bom funcionamento – como a do salário mínimo – não podem mais exprimir o preço de equilíbrio deste fator de produção, por meio da interação desembaraçada das forças da oferta e da demanda.


 



No início dos anos 80, turma da economia da oferta dizia ainda mais: a sobrecarga de impostos sufocava os mais ricos e desestimulava a poupança, o que comprometia o investimento e, portanto, reduzia a oferta de empregos e a renda dos mais pobres. As práticas neo-corporativistas, diziam eles, criavam sérias deformações ''microeconômicas'', ao promover, deliberadamente, intervenções no sistema da preços – nas taxas de câmbio, nos juros e nas tarifas. Com o objetivo de induzir a expansão de setores escolhidos ou de proteger segmentos empresariais ameaçados pela concorrência, os governos distorciam o sistema de preços e, assim, bloqueavam os mercados em sua nobre e insubstituível função de produzir informações para os agentes econômicos. Tais violações das regras de ouro dos mercados competitivos culminavam na disseminação da ineficiência e na multiplicação dos grupos ''predadores de renda'', que se encastelavam nos espaços criados pela prodigalidade financeira do Estado.


 



Esta operação ideológica permitiu a oposição binária e primária entre Estado e Mercado. Estado e Mercado deixaram de ser instâncias de regulação do processo de constituição e desenvolvimento do capitalismo, enquanto sistema histórico de relações sociais e econômicas. Passaram a representar alternativas abstratas de organização da sociedade. ''Como o senhor prefere, mais Estado ou mais Mercado?'' Desconfio que algumas teorias serviriam melhor como um guia de instruções para garçons de restaurantes baratos.


 



O estudo do Banco Mundial, The East Asia Miracle, de 1993 reconhece que a experiência asiática desmente de forma cabal a simplificação ideológica da visão conservadora. Diz o relatório: ''A maioria das economias não estão submetidas apenas à competição imposta pelos mercados. Nós sustentamos (neste estudo) que as Economias de Alto Crescimento da Ásia foram além, criando condições e desafios que combinam a concorrência com os benefícios da cooperação entre as empresas e entre o governo e o setor privado. Tais condições vão desde simples normas de alocação de recursos não baseadas no mercado, como é o caso do acesso facilitado ao crédito para os exportadores, até a complexa coordenação do investimento privado, no Japão e na Coréia, executada pelos conselhos formados por empresários e representantes do governo. A característica central de tais ''concursos'' é que o governo distribui prêmios – acesso ao crédito ou a divisas – sob critérios de avaliação de desempenho. Para serem bem sucedidas, as intervenções devem ser disciplinadas pela concorrência, quer através dos mercados quer dos ''desafios'' institucionalizados. Estas formas de concorrência exigem árbitros imparciais e competentes – ou seja, instituições sólidas''.


 



A articulação entre os atores centrais do processo de desenvolvimento – burocracia de Estado, classes empresariais e trabalhadores – é a marca do sucesso do capitalismo asiático, condição sine qua non para a manutenção das elevadas taxas de crescimento do produto, da produtividade e da renda por habitante, sem grandes tensões sociais. Os estudiosos do modelo asiático pretendem tirar daí a conclusão de que essa forma de organização do capitalismo teria conseguido, em boa medida, reduzir as incertezas que inevitavelmente nascem do processo de acumulação acelerada. Seria possível, portanto, mitigar os inconvenientes da rápida introdução do progresso técnico e da incessante reestruturação produtiva, requeridos pelas cambiantes condições de uma concorrência internacional cada vez mais agressiva. Ou seja, o estilo asiático de desenvolvimento teria conseguido colocar sob relativo controle os inconvenientes causados pelos freqüentes deslocamentos na estrutura do emprego, da produção e pelas alterações nas posições relativas de renda e de riqueza. A isto o economista japonês Michio Morishima chamou da ''combinação ótima'' entre o máximo de competitividade e o máximo de cooperação e planejamento.


 



*Professor titular aposentado da Unicamp, consultor editorial da revista Carta Capital e vencedor do prêmio Juca Pato em 2005.


 


Fonte: Terra Magazine