Matilde Ribeiro: Pobreza negra tem origem no racismo

Matilde Ribeiro, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) da Presidência da República, alerta que o crescimento do Brasil não será viabilizado enquanto o racismo for o entrave de acesso e permanência de crianças e joven

“A situação de pobreza que assola a população negra tem origem no racismo e na discriminação racial, elementos que impossibilitaram uma efetiva inclusão social e políticas públicas no pós-abolição”, admite Matilde Ribeiro, ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) da Presidência da República, cujo trabalho ganhou reconhecimento internacional ao ser homenageada no dia 12 deste mês pela prefeitura da Ilha de Gorée (Senegal).


 


A assistente social comunga com a tese de que a abolição da escravatura no Brasil, em 1888, não trouxe nenhuma garantia aos negros, apenas “deu por encerrado” o trabalho escravo. O descaso se traduz até hoje em falta de condições de acesso à educação, saúde, saneamento básico, trabalho e emprego. A criação do sistema de cotas nas universidades públicas e a recente adoção da Política Nacional de Saúde da População Negra, apesar das críticas, são mecanismos adotados pelo governo com o objetivo de pagar uma dívida histórica. Criada em 2003, a Seppir tem a missão de estabelecer iniciativas contra as desigualdades raciais no país.


 



Até que ponto o legado da escravidão é refletido na situação de pobreza que até hoje provoca um verdadeiro ´apartheid´ social no País?
Isto, sem dúvida, é reflexo da falta de uma política pública inclusiva. Tomemos como referência um passado político e econômico escravocrata e uma abolição que apenas “deu por encerrado” o trabalho escravo. Todo este processo não permitiu, de fato, um crescimento profissional e econômico, acarretando uma exclusão social da população negra. Ou seja, a situação de pobreza que assola a população negra tem origem no racismo e na discriminação racial, elementos que impossibilitaram uma efetiva inclusão social e políticas públicas no pós-abolição.


 


Como são traduzidos os reflexos dessa situação que se perpetua até os dias atuais?
Isso se traduz em condições de acesso à educação, saúde, saneamento básico, trabalho e emprego, enfim, bens e serviços que garantam uma qualidade de vida. A incidência do racismo impediu e ainda impede que a população negra tenha acesso a direitos básicos para viver dignamente. Ela este ve sempre à margem dos espaços de formulação e proposição das políticas incorporadas à estrutura de poder.


 


A senhora concorda que a sociedade brasileira tem uma dívida para com as populações descendentes de escravos?
O percentual de homens e mulheres negras que têm condições socio-econômicas dignas para garantia de uma boa qualidade de vida é muito pequeno. Temos somente 2% de negros formados ao ano nas universidades brasileiras. O sistema de saúde pública inicia uma transformação crucial, ao estabelecer políticas de atendimento para a população negra, através da recente adoção da Política Nacional de Saúde da População Negra, uma vez que a saúde dos negros é vulnerabilidade pelo racismo.


 


Por quê?
São as mulheres negras as principais vítimas do desemprego, à frente da sustentabilidade de suas famílias com menos de um salário mínimo, além da juventude negra masculina ser alvo de uma vida encurtada por conta da violência. Esses exemplos demonstram o quanto é preciso ser feito para que a metade da população brasileira realmente tenha condições dignas de vida.


 


A política da distribuição das cotas nas universidades públicas é bastante criticada, mas seria uma forma de rever essa dívida?
As cotas não são uma ação fim, mas uma medida compensatória temporária que deve ser acompanhada a cada passo. Infelizmente, foi assimilado, por parte da população, a redução de ações afirmativas à política de cotas. Não podemos promover a igualdade apenas em uma frente, na educação básica, e esquecer que o restante da população negra precisa ter oportunidades para se equiparar ao restante da população brasileira. O crescimento do Brasil não será viabilizado enquanto o racismo for o entrave de acesso e permanência de crianças e jovens a um ensino de qualidade, como reação a um condicionante de criminalidade e violência.


 


Que outras ações estão sendo adotadas no sentido de reverter a situação de desigualdade racial como, por exemplo, mostrar que o negro teve e tem um papel importante na formação cultural do povo brasileiro?
Temos investido na formação de professores para ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nos ensinos Fundamental e Médio, como preconiza a lei 10.639/03. Além de incentivar projetos científicos de núcleos de pesquisas afro-brasileiros em universidades públicas e na melhoria física da infra-estrutura, corpo técnico e aquisição de equipamentos para instituições de ensino de municípios com comunidades quilombolas.


 


Mas a população negra continua sendo um dos principais alvos de exclusão no País. Como isso vem sendo trabalhado?
A partir da criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, o Governo Federal estabeleceu a tranversalidade como norteadora das políticas de combate ao racismo e superação das desigualdades raciais. Intensificando ações pautadas nas especificidades para alcance efetivo aos grupos étnico-raciais excluídos em projetos nacionais, desfocados pelas práticas universalistas.


 


Dentre essas políticas, a Seppir elegeu algumas prioridades. Quais são?
Para reforçar a eficácia da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, a Seppir estabeleceu como prioridades as políticas de quilombos, educação, trabalho e emprego, cultura, saúde, relações internacionais, capacitação de gestores para operar políticas de igualdade racial e segurança pública. Essas políticas foram aprimoradas no processo preparatório da 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial cujas contribuições integram o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial.


 


Como essas políticas serão intensificadas?
Pretendemos intensificar a agenda de trabalho e renda através do incentivo de empresas à contratação de profissionais negros, tendo como elemento o Comitê Diversidade Racial no Mercado de Trabalho que é integrado por multinacionais e empresas brasileiras de grande e médio portes.


 


Quais os principais objetivos do trabalho da Seppir nesse segundo momento?
O combate à pobreza e à fome são pontos centrais do segundo mandato. E em conjunto com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome trabalharemos para aumentar a quantidade de comunidades quilombolas e de localidades atingidas pelos programas Bolsa Família e Fome Zero, com distribuição de cestas básicas para comunidades tradicionais.


 


Quantas e qual é a real situação das comunidades remanescentes de quilombos no Brasil?
O governo federal desenvolve o Programa Brasil Quilombola (decreto nº 4.887/03). Coordenado pela SEPPIR tem por finalidade monitorar e estimular, por meio de articulações transversais setoriais e interinstitucionais, as ações governamentais para essas comunidades. Para garantir a transversalidade das ações, participam deste programa 24 órgãos governamentais de caráter executor, que visam principalmente ao desenvolvimento sustentável das comunidades quilombolas com respeito às especificidades e particularidades culturais dessa população. Até 2003 o Governo Federal havia identificado 743 comunidades quilombolas. Hoje, estão registradas cerca de três mil em decorrência da visibilidade pública da política, da iniciativa dos próprios quilombolas para o seu auto-reconhecimento e da ampliação dos serviços públicos disponíveis em suas localidades.


 


Quais são as principais carências dessas comunidades?
As necessidades dessas comunidades ressaltam a imprescindível política de identificação, titulação e proteção das terras quilombolas; o fomento ao desenvolvimento econômico; a melhoria do acesso aos programas de saúde; a urgência por ações nas áreas de educação e capacitação profissional; e a implementação de políticas de preservação do patrimônio cultural.


 


Como a senhora analisa o preconceito racial velado que existe no Brasil, expresso, muitas vezes, em piadas ou frases do tipo ´fulano é preto de alma branca”?
Vivenciamos a ação do mito da democracia racial como fator impeditivo da compreensão da situação de privilégio que beneficiou o grupo hegemônico não-negro cujos resquícios percebemos até hoje. Por isso, nosso trabalho é justamente para superar essas desigualdades motivadas por questões raciais e promover a igualdade entre os diferentes grupos étnico-raciais. Na passagem dos 35 anos do Dia Nacional da Consciência Negra fazemos um balanço positivo das conquistas do movimento negro com reflexo na ação governamental que nos instiga a intensificar a construção das bases para a igualdade racial no Brasil.


 


O Brasil é conhecido como um país sem memória e que o seu povo não tem orgulho da sua brasilidade ou da sua cor, realidade refletida no Censo, onde o negro não se reconhece como tal. A que a senhora atribui esse sentimento? Estaria ligado a essa questão racial mal-resolvida?
A discriminação e o preconceito racial são construções sociais criadas a partir do racismo, conceito que estabelece a superioridade de um grupo étnico-racial em detrimento de outro. As campanhas alertam para a forma como se deram e se dão as relações raciais no Brasil e o compromisso com as novas gerações para termos uma sociedade sem racismo.


 


Entrevista concedida a Iracema Sales, do Diário do Nordeste