Monetarismo ou desenvolvimentismo: dilema de Lula?

Debate sobre os rumos da economia brasileira tem profundo conteúdo ideológico

Por Osvaldo Bertolino


 


 


Você é monetarista ou desenvolvimentista? Prefere conviver com inflação baixa ou com a economia em expansão? Ou com os dois ao mesmo tempo? Pode soar estranho ter de responder a esse tipo de pergunta, mas parece que o debate econômico ficou reduzido a isso nos últimos tempos. Todas as crises recentes do governo foram tratadas como um embate entre as duas correntes de pensamento. O tema voltou com força total depois de encerrada a votação no segundo turno das eleições presidenciais. As análises foram unânimes: os desenvolvimentistas Guido Mantega, Dilma Rousseff e Tarso Genro bateram de frente com o monetarista Paulo Bernardo, aliado de Henrique Meirelles e do ex-ministro da Fazenda, Antônio Palocci.


 


 


Entre uns e outros, o presidente Luis Inácio Lula da Silva ficou com o desenvolvimentismo. Resta a dúvida: será que as coisas são assim tão simples? O mundo de fato se divide entre essas duas visões? A resposta é não. Como sempre, há uma incrível simplificação no debate que aparece na mídia por meio dos “comentaristas” que mais parecem pregadores da verdade absoluta. É como se de um lado do campo de batalha estivessem membros do governo que defendem o pecado de crescer distribuindo renda. São os hereges, que gostam de inflação e da gastança pública. Do outro lado, estariam os defensores da “responsabilidade fiscal”.


 


Estudo do Ipea


 


 


Para começar a pôr o debate em seu lugar correto, é preciso partir de algumas afirmações. Primeiro: quase ninguém é contra o crescimento. (É importante a palavra quase, pois recentemente alguns economistas do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, Ipea, ligado ao Ministério do Planejamento, divulgaram um estudo que, se seguido ao pé da letra, é uma receita para a estagnação econômica.) Segundo: ninguém é a favor da inflação. Como se vê, a questão está muito desfocada. A começar, aliás, pela escolha das palavras. Ser monetarista, por exemplo, significa acreditar que a inflação pode ser administrada pelo controle de agregados monetários, como quantidade de dinheiro em circulação. Não tem nada que ver com a conotação que ganhou recentemente no Brasil. Talvez a definição mais apropriada fosse progressistas — que se coaduna com o termo desenvolvimentista — e conservadores.


 



Há, sim, a disputa entre essas duas concepções pela condução da política econômica no governo Lula. Mas afinal: o que dizem os representantes das duas correntes? Os progressistas dizem não é certo olhar apenas para o lado quantitativo do “ajuste fiscal” — obter um elevado superávit primário e cumprir as metas de inflação — como se ali estivesse a luz do firmamento. É preciso considerar também o qualitativo. Ou seja: o que cortar? Onde investir? De quais reformas o país precisa? Para os conservadores, o “ajuste fiscal” só terá êxito com a reforma da Previdência e a “modernização” da legislação trabalhista para que o ambiente microeconômico seja “eficiente''.


 


Característica básica


 


 


Há uma característica básica que define os conservadores: o autoritarismo. Na segunda-feira 30 de outubro, primeiro dia após a reeleição de Lula, o mercado financeiro voltou a chacoalhar o pau do circo das mesas de operações de bancos e corretoras por conta de algumas sensatas declarações de membros do governo. ''A preocupação neurótica com a inflação, a política monetarista e conservadora de Palocci, isso terminou'', disse Tarso Genro, ministro das Relações Institucionais. Foi o bastante para que o dólar comercial subisse, a Bovespa caísse, os contratos de juros na Bolsa de Mercadorias & Futuros apontassem alta nas cotações e o “risco-país” piorasse quase 2%. À sua moda, os rajás do mercado financeira mandavam o recado.


 



Escaldado por crises anteriores, o presidente não titubeou. ''Não teve era Palocci, como não tem era Guido Mantega. A política econômica é determinada pelo governo e sobretudo por mim'', disse Lula. O evento foi uma demonstração cabal do poder quase supremo desses todo-poderosos do mercado financeiro. E um valioso guia para quem busca entender como deverão ser os próximos quatro anos na economia brasileira. Por mais que desejem, Lula e seus colaboradores não têm o poder de dobrar todas as regras impostas por essa gente. Um dos principais efeitos da “era neoliberal”, talvez dos mais nefandos, foi justamente a redução da margem de poder dos governos. Um conservador chegou a dizer que Lula fará apenas o que o “mercado” lhe permitir — não dará um único passo além, por mais frustrante que isso seja para alguém que acaba de colher 58 milhões de votos.


 



Tendência progressista


 


 


O presidente, no entanto, tem demonstrado ousadia diante dessa ditadura. Recentemente ele se reuniu com os ministros Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento) e Guido Mantega (Fazenda) para discutir formas de garantir um crescimento econômico acima de 5% em 2007. ''O presidente determinou que fossem elaboradas internamente medidas que dêem condições para que haja um crescimento da economia acima de 5% para o ano que vem'', afirmou Furlan. Eles se reuniram com outros integrantes do governo, fizeram o plano mas Lula o classificou de “tímido” e mandou refazê-lo. O presidente quer que o plano esteja concluído já no fim deste mês para que possa apresentá-lo ao Congresso, a empresários e aos trabalhadores. 


 



A tendência progressista de Lula no campo da economia ficou bem demonstrada na carta que ele entregou, quando candidato em 2002, ao então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (FHC) durante o encontro com os candidatos no Palácio do Planalto, em Brasília. “Apesar de preocupados com as dificuldades que a nosso ver decorrem do esgotamento do atual modelo econômico, estamos seguros de que o Brasil possui todas as condições para superar este quadro e rumar, em paz, para um futuro de crescimento e inclusão social”, dizia o documento.


 


 


Conservadorismo radical


 


 


O país havia enveredado pelo caminho conservador e aplicava a amarga receita do Fundo Monetário Internacional (FMI). O Mesmo FMI que ainda hoje insiste em ditar fórmulas para as economias pobres. O diretor da instituição para as Américas, Anoop Singh, disse na quarta-feira (15/11) que ''a agenda prescrita para a estabilidade macroeconômica na América Latina é a mesma para o crescimento e o combate à pobreza.'' ''Contudo, freqüentemente elas são retratadas como programas opostos'', acrescentou, referindo-se ao debate entre progressistas e conservadores.


 



Esse discurso, evidentemente, é falso. Mas, desde que a Inglaterra de Margaret Thatcher adotou o conservadorismo radical para acabar com a inflação, essa pregação não mudou apenas aquele país. Mudou o mundo. Ela e o ex-presidente norte-americano Ronaldo Reagan inauguraram a “era neoliberal”. (Por falar nisso: na quinta-feira, 16/11, faleceu um dos papas do neoliberismo, o norte-americano Milton Friedman.) No Brasil, esse modelo nada produziu além de uma clara percepção de que um aumento sustentável da riqueza material é a condição sine qua non para a redução das tensões sociais e para uma integração mais duradoura da sociedade. Como disse certa vez o sociólogo Luís Costa Pinto, ''o desenvolvimento cria problemas que só mais desenvolvimento pode resolver''.



 


A Casa das Garças



 


Mas o discurso conservador resiste e mostra força. Poucas pessoas que passam pela rua Visconde de Albuquerque, uma das mais movimentadas do Leblon, no Rio de Janeiro, e vêem um extenso muro à altura do número 1 200 sabem que na mansão de 2 mil metros quadrados reúnem-se periodicamente economistas conservadores e banqueiros para discutir formas de vender as suas idéias. É a Casa das Garças, como é conhecido o Instituto de Estudos de Política Econômica (Iepe). A Casa das Garças já atraiu ícones do liberalismo no exterior, como Ben Bernanke, atual presidente do banco central americano. Ele esteve no Brasil em 2004 como professor da Universidade Princeton e foi à Casa proferir uma palestra. O Nobel de economia Michael Spence esteve lá em abril.



 


Do lado progressista, é hora de debater, olhar números, discutir soluções. Mas é também hora de cautela. A economia do país é um terreno fértil para muita emoção, gritaria e demagogia. Levar adiante o debate nesses termos pode ser útil para conseguir audiência, vender jornais ou garantir holofotes. Mas é absolutamente estéril na hora de encontrar soluções efetivas. E isso tem sido a prática da “grande imprensa”, interessada em criar tumulto antes de qualquer outra coisa. Aparelhados por seitas ideológicas conservadoras, como a Casa das Garças, os representantes da direita nessa questão repetem a mesma ladainha usada para atacar a política externa, os programas sociais e a democratização do Estado.