Belluzzo: Vícios e virtudes da economia globalizada

O aumento da rentabilidade das empresas americanas contribuiu para atrair investimento direto que se manteve acima de US$ 100 bilhões por ano.

Por Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo*



A evolução do déficit em conta corrente dos Estados Unidos e o correspondente aumento dos superávits asiáticos – sobretudo chineses – continuam a suscitar temores. Não são poucos os analistas que antecipam a derrocada da moeda americana, por conta do agravamento das assimetrias globais. Em artigo publicado em setembro no Financial Times, os economistas Jan Kregel e William Milberg argumentam que o atual ''regime de desequilíbrios'' pode ter vida mais longa do que imagina a nossa vã economia. A combinação entre ''produção globalizada'' e mercados financeiros liberalizados parece mais sustentável do que suspeitam os pessimistas.



As importações americanas de bens e serviços intermediários cresceram de forma sustentada nos últimos 15 anos e atingiram mais de 25% do valor dos insumos utilizados na maioria dos setores da economia dos Estados Unidos. Isto reduziu sensivelmente os custos de produção, aumentou as margens de lucro da empresas e, de quebra, ajudou a manter a inflação sob controle, ao remover pontos de estrangulamento na estrutura da oferta. O aumento da rentabilidade das empresas americanas contribuiu para atrair investimento direto que se manteve acima de US$ 100 bilhões por ano. Além disso, os países superavitários acumulam reservas e as aplicam preferencialmente em ativos denominados na moeda americana.



O livro A Supremacia dos Mercados, organizado por Ricardo Carneiro e recentemente publicado pela Editora Unesp, reúne os trabalhos dos pesquisadores do Centro de Estudos de Conjuntura da Unicamp. Os textos sobre economia internacional incluídos na coletânea mostram como, de fato, americanos passaram a manejar com grande agilidade a sua política monetária, convertendo-a numa máquina de sucção de liquidez, de capitais e da ''produtividade'' dos trabalhadores asiáticos (e também centro-americanos) para sustentar o crescimento acelerado de sua economia, sem tensões inflacionárias. Os dois últimos ciclos de expansão americanos comprovaram a eficácia desta forma de integração financeira e produtiva. Ela propiciou a espetacular expansão do crédito ao consumo e – melhor ainda – a ''alavancagem'' financeira que fomenta a inflação de ativos financeiros e imobiliários.



De outra parte, as estratégias mercantilistas dos países asiáticos – concebidas para a geração de superávits comerciais e acumulação de reservas – implicam necessariamente não só na demanda de ativos denominados em dólar como no abastecimento de bens de consumo, intermediários e de capital a baixo custo.
Isto significa que a hegemonia americana e seu enorme mercado nacional ensejaram a construção de um espaço monetário EUA-Ásia. A relação entre a taxa flutuante da moeda soberana e as taxas fixas ou controladas das moedas subordinadas (asiáticas) não só permitiram a ampliação dos déficits e superávits entre os parceiros, como reforçaram o poder de segniorage do dólar. 


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EUA manejaram sua política monetária, convertendo-a numa máquina de sucção de liquidez e da ''produtividade'' dos trabalhadores asiáticos



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Kregel e Milberg mostram, no entanto, que, se as assimetrias criadas e desenvolvidas no interior do modelo sino-americano são ''economicamente virtuosas'', há pouca dúvida de que sejam socialmente viciosas. Infelizmente, dizem Kregel e Milberg, os mesmos fatores que geram os desequilíbrios virtuosos, promovem o aumento da desigualdade na China e nos Estados Unidos. ''As tendências na distribuição de renda – muito mais do que as relações dívida/PIB – vão determinar o destino do atual arranjo produtivo e financeiro global''. O peso cada vez maior das importações de bens e serviços na estrutura da oferta doméstica, não reduziu apenas os custos de produção, mas também a demanda por trabalhadores nos Estados Unidos. A farra de importações conteve as pressões salariais e engordou as margens de lucro das empresas.



A globalização promoveu um aumento dramático da participação dos lucros na renda agregada dos Estados Unidos: no primeiro trimestre de 2006 os lucros corporativos passaram a abocanhar 12% da renda nacional. Enquanto isso, os salários estagnavam, mesmo diante da sustentação de taxas elevadas de crescimento da produtividade.


 


Ao mesmo tempo, na China de oferta ilimitada de mão-de-obra, os já baixos salários em dólares evoluem muito abaixo da produtividade, o que estimula a ''competitividade'' das exportações e, consequentemente, a continuada geração de superávits comerciais e a espantosa acumulação de reservas. Kregel e Milberg ironizam: ''Os trabalhadores chineses conferem um subsídio ao seu governo, equivalente aos juros pagos pelos ativos financeiros americanos adquiridos com os dólares acumulados nas reservas”.


 


Até quando vai durar o festival internacional de desigualdade? Nos Estados Unidos o crescimento do emprego em setores não sujeitos à concorrência externa (serviços de baixa produtividade e governo – sim, governo!) combinado com sindicatos fracos, limita a resistência à estagnação dos salários. A pressão baixista sobre os salários tem sido, é verdade, mitigada pelos preços cadentes dos importados e pelo efeito riqueza decorrente das módicas taxas de juros que alimentam o endividamento das famílias e a valorização dos imóveis (já em reversão). Mas os custos com saúde e educação não param de crescer, enquanto os sistemas privados de aposentadoria estão próximos da insolvência. (É lícito suspeitar que, caso a concorrência asiática prossiga em sua marcha  implacável, a única reforma possível da seguridade social no mundo vai contemplar métodos muito antigos de aposentadoria: atirar os velhos ao penhasco).



 
Mesmo diante desse quadro, parece funesta a idéia dos radicais americanos – à direita e à esquerda – que propõem um ajustamento unilateral do balanço de pagamentos mediante a desvalorização do dólar ou a imposição de tarifas protecionistas. A situação pode ficar pior: salto das taxas de inflação e elevação das taxas de juros nos Estados Unidos. Logo em seguida, com certeza de recessão global.


 


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*Ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.


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Fonte: jornal Valor Econômico