Nicarágua: a derrota do medo

Os EUA tentaram de tudo, com exceção da ameaça militar, para impedir a vitória eleitoral da Frente Sandinista e de seu candidato, Daniel Ortega. Desde o ano de 2005, seu embaixador em Manágua, Paul Trivelli, assumiu o papel de diretor supremo do antisandi

O objetivo fundamental dos Estados Unidos era o ex-presidente Arnoldo Alemán, que, apesar de ter sido processado e condenado por malversação de fundos públicos, continuava controlando com mão de ferro o PLC (Partido Liberal Constitucionalista). Trivelli pressionou o quanto pode para que Alemán deixasse o partido e o entregasse a seu candidato, Eduardo Montealegre, então ministro de Finanças e protegido do presidente Enrique Bolaños. Não tendo conseguido a retirada de Alemán, foram interpostos processos contra ele no Panamá e nos Estados Unidos por corrupção. Seguiu-se um sistema de prêmios e castigos, punindo-se com a retirada do visto estadunidense de todos os dirigentes do PLC que se negavam a secundar sua linha de ação. Trivelli fracassou. Alemán impôs seu candidato (José Rizo) e a lista de candidato a deputado à Assembléia Geral. Montealegre foi expulso do PLC e teve de criar sua própria agremiação partidária, a Aliança Liberal Nicaragüense (ALN).



O sandinismo afundava-se também em divisão, com a entrada na contenda eleitoral do Movimento Renovador Sandinista (MRS), ao qual se filiaram figuras sem par da revolução, como o padre Ernesto Cardenal, o ex-presidente e escritor Sergio Ramirez e três ex-membros do diretório revolucionário, além de uma extensa lista de proeminentes figuras. Os Estados Unidos viram com satisfação essa cisão que debilitava seu arquiinimigo e reduzia suas possibilidades eleitorais.



A reação da FSLN foi sagaz. Retomando a fórmula integradora aplicada em 1978 e 1979 a fim de unir distintos partidos e agrupamentos em uma causa comum, a direção sandinista foi fechando os flancos. Reconciliou-se com a Igreja Católica e seu inimigo visceral, o cardeal Obando. Abriu o partido a grupos de centro, anteriormente anti-sandinistas, como os sociaiscristãos e os conservadores. Por fim, designou candidato a vice-presidente um ex-dirigente dos “contra”, que abriu esse movimento ao sandinismo. Os lemas da campanha resumiam o espírito dessa singular aliança: unidade, paz, reconciliação. “Unida, Nicarágua triunfa”. A cor-de-rosa era a cor de sua bandeira de luta.



Depois de fracassar nas tentativas de unificar os liberais, o embaixador Trivelli promoveu a guerra suja contra a FSLN. Para tanto contou com o apoio do governo Bolamos e do Conselho Superior da Empresa Privada (Cosep), órgão que reúne a todos os grandes grupos econômicos da Nicarágua. Servindo-se como ponta de lança os meios de comunicação em mãos do Cosep, começou a propagar notícias falsas sobre o risco de guerra, tomadas de terra, manifestações violentas de rua e o restabelecimento de cartões de racionamento e do serviço militar. Buscava-se gerar medo na população, uma tática que havia demonstrado sua força intimidatória nas três eleições anteriores.



Diante do fato de que as pesquisas continuavam refletindo uma notável vantagem da FSLN e de Ortega, promoveu-se nas semanas anteriores às eleições, a visita a Nicarágua de congressistas republicanos, altos funcionários do Departamento de Estado e ex-membros do governo Reagan, vinculados à guerra dos “contra” nos anos 80, inclusive o famigerado Oliver North. Todos advertiam que um triunfo da FSLN provocaria represálias por parte do governo Bush. A pressão alcançou seu auge quando três congressistas republicanos ameaçaram bloquear as remessas dos emigrantes nicaragüenses nos Estados Unidos., pedindo a Bush a aplicação da legislação antiterrorista a Nicarágua em caso de vitória de Ortega. Era o golpe mais baixo que podia ser dado, tendo-se em conta que as remessas dos emigrantes constituem a primeira fonte de divisas do país e que provêm principalmente dos Estados Unidos. A terrível ameaça, no entanto, não bastou para atemorizar um número suficiente de votantes.



Na noite de 5 de novembro, dia das eleições, quando começaram a se conhecer os primeiros resultados, que davam a Daniel Ortega mais de 40% dos votos, os Estados Unidos tentaram uma última e disparatada manobra. A delegação enviada pelo presidente Bush emitiu um comunicado em que afirmava a existência de graves irregularidades nas eleições, que poderia pôr em dúvida a imparcialidade e transparência do processo eleitoral. Desde a sede da embaixada e de Washington pressionou-se a OEA, o Centro Carter, a União Européia e outros organismos, para que assumissem a posição dos Estados Unidos. Novo fracasso. Insulza, do Uruguai, confirmou a decisão do organismo regional de avalizar a transparência das eleições e a validade de seus resultados. A fim de dissipar as névoas emitidas pela embaixada norte-americana, às 7 da manhã do dia 6, a organização Ética e Transparência, em coletiva de imprensa, validou o processo eleitoral, afirmando que, segundo suas contagens internas, a FSLN iria ganhar as eleições com 40% dos votos.



Não eram, realmente, eleições livres. Desde 1990, os nicaragüenses acodem aos processos eleitorais com um revólver apontado para a cabeça.. Em 1990, era a continuação da guerra, o bloqueio econômico e as penúrias. Desde 1996, a ameaça de sanções, bloqueios e represálias, em meio a uma atroz campanha interna, agitando-se o fantasma da guerra. A coação chegou ao extremo do presidente Arnoldo Alemán ter ordenado, nos dias anteriores às eleições de 2001, a uma movimentação geral das tropas do Exército nas ruas, fato que atemorizou muitos cidadãos, que viram na medida um prenuncia de guerra.



Nas eleições de 2006 fracassou a estratégia do medo e da coação. Os Estados Unidos foram incapazes não somente de manter a coalizão anti-sandinista, como também de atemorizar um número suficiente de eleitores. Daí se depreende que a vitória sandinista foi um  revés muito duro para o governo Bush. Porque o Ascenso ao poder, novamente, desta vez por meio das urnas, permitirá ao sandinismo governar sem guerras, bloqueios, destruição e morte. Terá, agora, a oportunidade de fazer o que a guerra de agressão frustrou na década de 1980. Se os próximos cinco anos forem bem aproveitados, o povo terminará de perder o medo e poderá comprovar com fatos as bondades de um governo nacionalista e de esquerda. Se a FSLN agir bem, poderá haver governo sandinista por muito tempo.



Tradução: Max Altman



Augusto Zamora é professor de Relações Internacionais e Direito Internacional da Universidade Autônoma de Madri. Sua mais recente obra é “A paz burlada” sobre os processos de paz da América Central.