Especialista aponta esvaziamento da legitimidade dos EUA

“Política, econômica e estrategicamente, as iniciativas Bush levaram a um esvaziamento da legitimidade dos EUA”, e não só no “atoleiro” iraquiano. A avaliação é da professora Cristina Soreanu Pecequilo, do Curso de Relações Internacionais da Unesp/Marília

Cristina Pecequilo é autora de A política externa dos Estados Unidos. Continuidade ou mudança? (Editora UFRGS, 2005) e  tornou-se, simultaneamente, assídua convidada de programas televisivos especializados no assunto. Seu vasto trabalho contém uma sofisticada dissecação do império do Norte, sua formação, consolidação e desenvolvimentos das ações externas.



P: No artigo A nova América? Os neoconservadores a hegemonia (Princípios, 2004, nº 75), você defendeu que, ao desconstruir a ordem internacional, os EUA estariam a gerar a era da desordem hegemônica. Bem depois, o professor Fiori (Poder e mudança, 1/2/2006) diria não ter dúvida sobre as dificuldades crescentes que os EUA enfrentariam, “atolados no Iraque”. Diga-nos como isso vem evoluindo.



R: Pelo menos neste ciclo 2004/2006, esta tese parece se fortalecer pois, crescentemente, os EUA tem dificuldades para administrar seu ambiente externo, com reflexos negativos em sua sociedade. Política, econômica e estrategicamente, as iniciativas Bush levaram a um esvaziamento da legitimidade dos EUA e da ordem. Mencionaria não só o “atoleiro” iraquiano como prova desta perda de eficiência, mas as dificuldades no Afeganistão e as confrontações diplomáticas com Coréia do Norte e Irã acerca da proliferação nuclear. As demais potências, Rússia, China, Índia, Japão, os países da União Européia, têm buscado mais autonomia, ainda que não quebrem (e estabeleçam novas) alianças com os norte-americanos. Também chamaria a atenção para o encolhimento do multilateralismo, cujas negociações tem sido regularmente “travadas”, como se observa na ONU e na OMC.



P: O historiador britânico Edward Gibbon (1737-1794), num livro clássico, aponta a questão da extensão estratégica militar excessiva como sendo a principal razão da crise terminal do império romano. Maquiavel, Clausewitz enfatizaram estar fadado à derrota todo chefe militar que for a guerra provocando a ruptura da unidade nacional. Não lhe parece que há fortes indícios de que os dois fenômenos estão a ocorrer com os EUA?



R: Me parece que sim. A visão neoconservadora imprimiu um ritmo acelerado às intervenções, buscando a consolidação da estratégia preventiva. Com isso, observa-se a retomada do risco desta excessiva extensão, o que acarreta custos humanos e materiais consideráveis. Tais custos refletem diretamente na sociedade, com quebras de consenso, em meio a uma transição populacional e valorativa já existente. Hoje, a América é um país bastante dividido em suas opiniões e seus partidos.



P: Um das mais importantes conclusões de seu livro é que há alto grau de continuidade nas estratégias norte-americanas de política externa; esta caracteriza-se por um acumulo de tradições no comportamento internacional, readaptada e readequada no enfrentamento dos desafios ao país. Qual a sua expectativa para a política externa dos EUA após essa derrota eleitoral humilhante de George W. Bush, que acaba de acontecer?



R: A expectativa inicial é de cautela, uma vez que a vitória democrata foi conquistada menos pela apresentação de projetos do que pelas críticas a Bush. Deve-se aguardar a postura que terão os democratas, de negociação ou de confrontação. O ideal seria que ambos os partidos buscassem o consenso, corrigindo os desvios atuais, visando a volta das tradições internacionalistas multilaterais em oposição ao unilateralismo.



P: Qual a fatia de poder real que passa aos democratas com a maioria nas duas casas do Congresso? E em que sentido o mains stream democrata se dispõe a empregá-la, a começar pela conduta no Iraque?



R: Com a vitória, os democratas agregam uma considerável quantidade de poder, mas não terão autonomia plena para mudar o curso das políticas presidenciais. Aqui, com relação ao Iraque, aplica-se a mesma lógica anterior, a necessidade de ajustes e do consenso, limitando os falcões. Como se viu durante a campanha, os democratas não possuem uma política para o Iraque (ou recuperaram sua capacidade programática).


 


A posição oficial é de que desejam encontrar a solução ao lado dos republicanos. Sinais positivos foram a saída de Rumsfeld do Departamento de Defesa e a “convocação” do staff externo de Bush. Porém, é muito cedo para afirmar se este discurso será mantido e se o capital político conquistado será usado positivamente.
P: Os resultados de 7 de novembro parecem ter precipitado a sucessão presidencial de 2008; quais as alternativas que se apresentam do ponto de vista da estratégia norte-americana?



R: Apesar desta aceleração, não é possível afirmar que as forças que surgem se consolidarão ou que estejam sendo trazidas novas alternativas estratégicas, seja pelos democratas ou pelos republicanos. O debate tende a evoluir em torno das agendas existentes, visando ajustes táticos entre o uni e o multilateralismo. Desde o 11/09, o espaço de manobra dos partidos diminuiu e a principal preocupação do público tem sido a questão da segurança, colocando em compasso de espera outros temas.



P: Qual o conteúdo específico do neoconservadorismo norte-americano e como ele sai da eleição de novembro?



R: O neoconservadorismo representa a ala republicana mais à direita que defende a renovação moral e religiosa, o individualismo econômico e uma política externa de cunho mais agressivo. Porém, esta mesma corrente, e isto em parte explica a derrota em 07/11, tem mostrado divisões devido a políticas equivocadas da presidência e escândalos. Vem sendo expostas divisões internas a partir do que se considera como um distanciamento de Bush da agenda original. Tais divisões são representadas pelos grupos de forte viés religioso e pelos neocons que passaram a se identificar como “conservadores” de centro. O movimento apresenta fissuras que podem acentuar-se.