O que fica da derrota eleitoral de Bush?

Por Bernardo Joffily
A queda de Donald Rumsfeld, o comandante à paisana da Guerra do Iraque, foi apenas a primeira conseqüência da surra que o eleitor americano deu nos republicanos nesta terça-feira (7). Foi uma derrota de George W. Bush, e do bushism

O impulso por mudança não foi pequeno. Os democratas avançaram 29 cadeiras na Câmara dos Representantes, quando precisavam de 15 para ter maioria. No Senado, a cadeira da Virginia permanece sub judice, mas as apurações independentes apontam que chegaram a uma apertada maioria de 51 a 49, uma proeza que os observadores tinham como no mínimo improvável. Na categoria governadores de estado, inverteram a correlação de forças anterior, passando de 22 a 28 para 28 a 22. Foi barba, cabelo e bigode.



Bush admite o peso do fator Iraque



''Foi uma surra'', resumiu o próprio presidente Bush. ''Obviamente, estou decepcionado com os resultados da eleição e, como dirigente do Partido Republicano, compartilho grande parte da responsabilidade'', admitiu também. O chefe da Casa Branca empenhou-se pessoalmente na disputa, arrecadou um total de US$ 190 milhões para seus correligionários e correu o país em campanha, ainda que muitos republicanos tratassem de manter distância daquele cabo eleitoral cujas taxas de rejeição são as mais elevadas em seis anos de governo.



A Guerra do Iraque foi o fator decisivo da derrota. ''Reconheço que muitos estadunidenses votaram para registrar seu descontentamento com a falta de progresso (no Iraque)'', disse também o presidente. E não por acaso a primeira vítima da surra foi Donald Rumsfeld, a figura mais exposta entre os falcões de Washington, por seu comportamento à frente do Pentágono.



Um sacrifício, como no xadrez?



Aqui se encerram as unanimidades sobre o 7 de novembro e principalmente sobre o pós-7 de novembro. E as interrogações começam justamente pelo Iraque.
Fala-se, entre os republicanos, em ''mudar o rumo da Guerra do Iraque''. Mas não se fala em trazer as tropas de volta para casa. A indicação do novo secretário da Defesa, Robert Gates, um ex-diretor da CIA que já serviu a vários governos republicanos, inclusive o de Bush Pai, não emite um sinal claro a respeito. Há quem diga que a queda do belicoso Rumsfeld foi apenas um sacrifício, como no xadrez, para aliviar uma pressão que depois do veredito das urnas se tornara insustentável.



Os otimistas depositam esperanças na maioria democrata nas duas casas do Congresso para que as tropas do Iraque voltem para casa. ''É hora de pedir o regresso das tropas'', afirma Fernando Suárez del Solar, que perdeu um filho na guerra. ''A administração de Bush entendeu muito bem que agora está enfrentando um clima novo no Congresso, e que terão muito mais comitês para investigar a guerra do Iraque'', acrescenta.



Limites dos democratas made in US



O otimismo se choca, porém, com os tradicionais limites da disposição mudancista do Partido Democrata.



Os primeiros sinais que os líderes vitoriosos na terça-feira emitiram foram todos no sentido da conciliação, do ''sim'' à ''parceria'' com os republicanos e a Casa Branca, do ''não'' ao ''partidarismo'' e às radicalizações. Será uma dessas amabilidades protocolares, de praxe após a contagem dos votos? Ou Bush contará com a maioria democrata, como contou com a republicana, para manter em grandes traços a sua linha política em geral e a sua linha de guerra em particular?



Nos seis anos de gestão do atual presidente, e especialmente nos cinco do pós-11 de Setembro, o Partido Democrata somou-se à Casa Branca em todas as decisões cruciais, com destaque para as que dizem respeito à ''Guerra Contra o Terrorismo'': invasão e ocupação do Afeganistão, complacência para com os furos dos serviços de inteligência que permitiram o atentado, invasão e ocupação do Iraque, Patriot Act e avanço do Estado policial sobre as liberdades individuais, orçamentos de guerra crescentes, tudo contou com o apoio e o voto democrata.



À medida que a guerra foi se eternizando, e quase 3 mil rapazes americanos retornaram à pátria dentro de caixões (uma imagem que a imprensa já não pode mostrar como fazia no tempo do Vietnã), a acidez das críticas democratas foi subindo de tom. Muito especialmente durante a campanha eleitoral. Do ponto de vista das regras do jogo institucional americano, a maioria nas duas casas do Congresso permitiria que eles passem das críticas à ação, e contestem a estratégia da ''Guerra Contra o Terrorismo'' bushiana. Mas do ponto de vista da natureza do Partido Democrata estadunidense, há boas razões para não apostar muitas fichas nessa possibilidade.



O sistema mais petrificado do mundo



Aqui vale a pena abrir o espectro da análise. Duas palavras, portanto, sobre o sistema político-partidário dos EUA, o mais petrificado e avesso a mudanças do mundo, embora acredite ser o paradigma universal da democracia e se disponha a exportá-lo, seja pela ação de seus discípulos, seja pela pressão da mídia, seja pela via das (contra)-''revoluções de veludo'', seja pela pura e simples força bruta.



Não existe no planeta Terra outro país dominado há dois séculos por apenas dois partidos, que não permitem o crescimento de coisa alguma à sua sombra. Nem outro país onde a alternância partidária no comando político se faça com tão insignificantes alterações na condução política real, desde a base econômica e social até a vida institucional, a diplomacia e a guerra.



A blindagem contra mudanças é tamanha que democratas e republicanos se deram ao luxo de trocar de posições, sem que a resultante se alterasse. No primeiro dos dois séculos, eram os republicanos que se situavam ''à esquerda'' (dentro dos limites que essa designação possui quando se fala das instituições dos EUA). No segundo, sobretudo após Franklin D. Roosevelt e seu New Deal, na década de 30 do século passado, são os democratas… E daí?



O dilema das esquerdas americanas



Esta secular petrificação tem colocado um difícil dilema para as esquerdas estadunidenses. Fragmentadas, plurais, mas ativas e por vezes vigorosas, elas se debatem há gerações entre duas alternativas: trabalhar com os democratas, ou mesmo no interior do Partido Democrata, pressionando para que este avance; ou tentar fazer vingar uma terceira força, com candidaturas próprias e em especial apostando na área extra-institucional, com movimentos, ONGs e campanhas de opinião pública, que possuem uma tradição positiva no país.



Ambos os caminhos e várias combinações dos dois já foram tentados. Ambos mostraram prós e contras, sem que um se impusesse como o caminho das pedras, e sem que se afirmasse uma terceira alternativa. Até agora, o Sistema — e aqui se justifica a maiúscula — se manteve. E não dá sinais de que vá se esgotar, em virtude deste 7 de novembro ou nas eleições presidenciais de 2008, que já eletrizam a mídia e os meios políticos. É um dilema que resta por resolver.



O fracasso do neoconservadorismo



Isto significa então que as urnas de terça-feira não trouxeram nenhuma esperança de deslocamento estratégico? Não. Em política, 99% das vezes, a ''linha farinha-do-mesmo-saco'' simplifica e empobrece; é sempre relevante, e politicamente necessário, examinar farinha por farinha.



Nas eleições desta semana, pelo menos um deslocamento estratégico ocorreu: o fracasso do neoconservadorismo. Essa corrente ideológica de direita (alguns preferem classificá-la como de extrema direita) pode ser descrita como uma mutação do conservadorismo republicano tradicional. Cresceu escorada em redutos como o fundamentalismo cristão e a máfia anticastrista de Miami, e vínculos com o mundo patronal.



O neoconservadorismo americano deu um salto de qualidade em 2000, ao instalar na Casa Branca um de seus mais genuinos representantes (embora por certo não o mais brilhante). Ao se aboletar ali, Bush trouxe consigo um rol de expoentes conservadores, dos quais seu vice, Dick Cheney, Condoleezza Rice e o próprio Rumsfeld têm sido os de maior visibilidade.



O 11 de Setembro foi uma bênção dos céus para os neoconservadores. Transformou uma administração medíocre numa santa cruzada em nome do antiterrorismo. Na sua esteira, essa corrente direitista hipertrofiou-se, dentro do Partido Republicano mas também na sociedade estadunidense em geral. Submetida à prova nas eleições presidenciais de 2005, reelegeu Bush, desta vez sem o constrangimento de ter tido menos votos que o seu oponente.



Só isso justifica um sorriso



Ocorre que essa hipertrofia teve uma marca de artificialidade. Mesmo em uma sociedade como a norte-americana, não é consensual uma corrente de pensamento que faz o elogio da pena de morte, vê o aborto como um crime, conversa com Deus para invadir países e enxerga o século 21 como o cenário de uma guerra sem fronteiras nem fim. Seu ímpeto, até anteontem aparentemente irrefreável, dependia de não tropeçar.



O fator Iraque fez o neoconservadorismo tropeçar nas urnas de terça-feira. Não é o fim do imperialismo norte-americano. Não é sequer um movimento similar ao que avança há anos em vários países latino-americanos. Mas só o tropeço da direita neoconservadora já justifica o sorrisinho satisfeito que tantas faces estamparam, dentro e fora dos EUA, ao ouvir o recado das urnas.