Senador tucano recém-eleito está sob investigação

Investigações apontam que a prefeitura de João Pessoa, na gestão de Cícero Lucena, contratou mais de R$ 100 milhões em obras sem licitação

Eleito para substituir o senador Ney Suassuna (PMDB-PB), acusado de envolvimento com a máfia das ambulâncias, o ex-prefeito de João Pessoa Cícero Lucena (PSDB-PB) chega a Brasília sob a mira da Justiça e do próprio Senado.


 


Com base em auditorias do Tribunal de Contas da União (TCU), órgão auxiliar do Congresso, e de investigações da Polícia Federal, a Comissão de Fiscalização e Controle encontrou uma série de irregularidades em pelo menos dez convênios com o governo federal que teriam sido assinados pelo tucano no período em que ele esteve à frente da prefeitura da capital paraibana (1997-2004).


 


A relatora do caso, a senadora Ana Júlia (PT-PA), pretende apresentar suas conclusões nas próximas semanas e sugerir o encaminhamento dos dados levantados ao Ministério Público Federal na Paraíba, autor de uma série de denúncias semelhantes contra o ex-prefeito.


 


Rolo judicial


 


As informações a serem repassadas ao Ministério Público podem complicar ainda mais a situação do senador eleito na Justiça. Ele já responde a dois processos por emprego irregular de verbas públicas, improbidade administrativa e crimes contra a administração pública e contra a Lei das Licitações. As ações, que estão na Justiça Federal, devem passar para o Supremo Tribunal Federal (STF) assim que o senador for diplomado, em meados de dezembro. A Constituição brasileira garante aos parlamentares federais o direito de serem julgados apenas pela suprema corte, onde os julgamentos costumam ser mais lentos.


 


Apesar de não terem impedido a eleição do ex-prefeito, as denúncias já causaram constrangimento a Cícero. No ano passado, a PF chegou a prender o tucano – na época, secretário estadual de Planejamento – e outras seis pessoas durante a chamada Operação Confraria. A operação foi batizada, segundo os policiais, porque o caso se assemelhava a uma ação entre amigos para desviar dinheiro público. Indiciado, Cícero foi solto, mas teve de recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para poder se candidatar ao Senado.


 


Sem licitações


 


O centro de todas as denúncias contra o ex-prefeito de João Pessoa está num conjunto de irregularidades que teriam ocorrido em processos licitatórios durante sua gestão na capital paraibana. O Ministério Público, a Controladoria Geral da União, o TCU e a PF acusam Cícero de ter aproveitado uma licitação vencida pela construtora Coesa – empresa do grupo OAS – em 1991, quando ele ainda não era prefeito, para firmar, a partir de 1998, 12 convênios sem a abertura de licitação.


 


Com a anuência da prefeitura, segundo as investigações, a empresa teria feito cinco cessões contratuais para outras empreiteiras tocarem as obras, entre 1999 e 2004, sem que houvesse novas licitações. Nesse período, de forma ilegal, a prefeitura teria repassado mais de R$ 100 milhões (dos quais, 90% de origem federal) para que um seleto grupo de empresas executasse obras com base em licitações genéricas feitas entre 1990 e 1992, o que contraria a Lei 8666/93 (Lei das Licitações).


 


Além das cessões contratuais consideradas irregulares, a Controladoria Geral da União também encontrou indícios de superfaturamento em contratos, ausência da contrapartida por parte da prefeitura nos convênios firmados com órgãos da União, não-apresentação de prestação de contas em alguns contratos e pagamentos por serviços que não foram realizados.


 


Contrato guarda-chuva


 


Segundo o Ministério Público, as irregularidades começaram antes da gestão do tucano, iniciada em 1995. Em 1991, a prefeitura abriu uma licitação genérica, sem especificação do objeto a ser contratado, para “obras de infra-estrutura em diversos bairros” da capital. A concorrência foi vencida pela Coesa Engenharia Ltda, uma construtora com sede na Bahia e filiais em todos os estados do país.


 


O contrato “guarda-chuva”, assinado em 1992, foi usado para a execução de obras feitas por meio de convênios com a União até 2003, quando os procuradores Antonio Edílio Teixeira e Fábio George Nóbrega descobriram a prática. A construtora era a titular do contrato, mas subcontratava outras empresas para a realização das obras. Pelo menos outras cinco licitações foram feitas sob o mesmo esquema e renderam 13 contratos da prefeitura com essas empresas. Ou seja, antes mesmo da assinatura do convênio e do anúncio da descrição e dos valores da obra, a prefeitura já havia definido quais empresas poderiam executá-la.


 


No último dia 30 de maio, o TCU entregou ao Ministério Público Federal na Paraíba os resultados de uma auditoria feita em 15 convênios com a União assinados durante a gestão de Cícero que somam R$ 36,2 milhões. O relatório diz que foram encontradas evidências de conluio entre empresas, superfaturamento de obras e desvio de recursos.


 


Advogado contesta denúncias


 


Procurado pelo Congresso em Foco para comentar o assunto, o senador eleito não retornou os contatos feitos pela reportagem. O advogado do tucano, Valter Agra, afirmou que o ex-prefeito está impedido de falar sobre o caso porque os processos correm sob segredo de Justiça. Segundo Agra, as acusações não se sustentam porque o seu cliente não foi o ordenador das despesas geradas pelas licitações e não teria havido prejuízo ao erário durante sua gestão.


 


“Toda vez que temos a oportunidade de apresentar recurso, o Judiciário acata e suspende os processos”, afirmou. Segundo o advogado, os processos contra o seu cliente estão suspensos desde o dia 26 de setembro. O futuro das investigações, no entanto, só deve ser decidido pelo STF.


 


Embratur


 


Convidados pela Comissão de Fiscalização e Controle do Senado, os procuradores da República Antônio Edílio Magalhães Teixeira e Fábio George Nóbrega contaram aos senadores como, por acaso, descobriram a série de indícios de irregularidades que resultaram na Operação Confraria e nas denúncias contra Cícero Lucena. Os dois foram ouvidos pelo colegiado no último dia 31 de maio. 


 


Com atuação na área ambiental, Edílio detectou problemas na construção de uma ciclovia na orla das praias de Cabo Branco e Tambaú. Para a execução da obra, a prefeitura de João Pessoa fechou um convênio com a Embratur no valor de R$ 34 milhões – 90% da União -, financiados pela Caixa Econômica Federal.


 


“Constatei que era uma ciclovia que estava sendo executada na parte do calçadão para a areia. Então é uma ciclovia que não se utiliza porque vive coberta de areia e não dá para andar de bicicleta”, contou o procurador durante a audiência.


 


Antônio Edílio solicitou a documentação da obra à Embratur e percebeu que o convênio, celebrado em 2003, era baseado em uma licitação de 1991. A prática é vedada pela legislação, que prevê a formalização do convênio e a previsão da obra antes da licitação. “Como que eu vou participar de um processo de licitação se eu não sei o que vou fazer?”, ressaltou o procurador.


 


Com o aprofundamento da investigação, Antônio Edílio constatou que a concorrência havia sido feita de maneira genérica, o que abria brechas para fraudes. A licitação gerou o contrato com a Coesa que, segundo o procurador, é uma empresa “de papel”. “É uma construtora, mas não tem estrutura para fazer sequer uma reforma”, afirmou.


 


Caixa e Funasa


 


O convênio com a Embratur foi assinado pela Licitação 06/91. Mas, com o aprofundamento das investigações, Edílio e Nóbrega constaram outras cinco licitações genéricas feitas pela prefeitura e que basearam convênios anos depois. Duas delas – a 01/90 e a 03/91 – geraram convênios financiados pela Caixa que totalizam R$ 39 milhões.


 


Outras três – 04/91, 01/91 e 03/92 – levaram a acordos com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Juntas, as licitações renderam à prefeitura mais de R$ 100 milhões para obras, sendo 90% dos cofres da União, aplicados em contratos com empresas que não enfrentaram concorrência.


 


Com base na investigação, Edílio e Nóbrega solicitaram à Controladoria Geral da União (CGU), em setembro de 2003, a realização de uma auditoria em João Pessoa. Contudo, somente no fim de 2004, o órgão enviou uma comitiva para apurar irregularidades na prefeitura.


 


Nos 16 contratos averiguados, os auditores constataram um rombo de R$ 12 milhões e irregularidades como reajustes indevidos, pagamentos por obras não realizadas, superfaturamentos e desvios de recursos. Os dados foram encaminhados à Justiça e à Polícia Federal e resultaram na Operação Confraria. “A auditoria foi unilateral, sem direito de defesa”, contesta o advogado de Cícero Lucena, Valter Agra.


 


Cheques com o Comendador


 


Além de identificar irregularidades nas concorrências públicas, a Polícia Federal se surpreendeu ao encontrar quatro cheques da prefeitura de João Pessoa em uma das factorings (empresas que antecipam dinheiro de cheques pré-datados) do bicheiro João Arcanjo Ribeiro. O “Comendador”, como é mais conhecido, foi condenado, em 2003, a 37 anos de prisão, acusado de comandar o crime organizado em Mato Grosso.


 


Os cheques somam mais de R$ 5 milhões e saíram de uma conta aberta pela administração da capital paraibana, na gestão de Cícero Lucena, para receber recursos de um convênio de R$ 10 milhões com o Ministério das Cidades para a construção de dois canais na cidade.


 


O caso chegou ao conhecimento da CPI dos Bingos, mas a comissão não avançou nas investigações em torno do bicheiro. O advogado de Cícero Lucena disse desconhecer a existência dos cheques e descartou qualquer envolvimento da prefeitura com o chefe do crime organizado em Mato Grosso. “Isso nem está citado no processo. Não tenho conhecimento dessa acusação”, afirmou Agra.


 


Assunto ignorado


 


Em depoimento à CPI dos Bingos, em 27 de julho do ano passado, o então procurador da República em Mato Grosso Pedro Taques, que ajudou a desvendar as transações do Comendador, já havia alertado os senadores sobre o assunto. 


 


“O Banco Central, auxiliando o Ministério  Público Federal, desvendou que a prefeitura de João Pessoa na Paraíba também  havia depositado R$ 1,9 milhão nas contas desse cidadão chamado João Arcanjo  Ribeiro”, disse Taques. A citação do procurador não despertou a atenção dos integrantes da comissão, que se limitaram apenas a manter a informação nas notas taquigráficas.


 


A eventual ligação entre o bicheiro e integrantes do PSDB mato-grossense chegou a ser alvo de inquérito da Polícia Federal em Mato Grosso. A denúncia, não levada adiante pela CPI dos Bingos, era de que diversas empresas ilegais de factoring montadas pelo Comendador teriam irrigado dinheiro em campanhas eleitorais de tucanos entre 1994 e 2002 no estado.


 


Ex-ministro do Planejamento


 


Eleito com 803.600 votos (48,25% dos válidos), Cícero Lucena ocupará, a partir de fevereiro, a vaga de Ney Suassuna, cuja cassação será votada pelo Conselho de Ética nesta quarta-feira (8). Aos 50 anos de idade, o novo senador chega a Brasília com um currículo destacado. Primo do ex-presidente do Senado Humberto Lucena (PMDB-PB), morto em 1998, ele governou a Paraíba por oito meses, em 1994, quando assumiu, na condição de vice, o lugar do titular, Ronaldo Cunha Lima.


 


No ano seguinte, Cícero foi nomeado ministro do Planejamento no governo Fernando Henrique Cardoso. De lá saiu para conquistar a prefeitura de João Pessoa, à frente da qual se manteve por dois mandatos. Até o ano passado, foi secretário de Planejamento do atual governador Cássio Cunha Lima (PSDB).


 


Fonte: Congresso em Foco / Diego Moraes