México: A batalha de Oaxaca

Em Oaxaca a batalha não terminou. Recorrendo a uma tradição de violência policial para solucionar conflitos, o governo conservador de Vicente Fox se atolou em sua própria lama manchada de sangue. A mobilização popular vai continuar.
Por Luiz Hernán

De joelhos, erguendo a bandeira nacional, com seu sangue em oferenda, um cidadão se põe diante dos veículos da Polícia Federal Preventiva (PFP), para bloquear-lhes a passagem. Não é o único. Não muito longe, dezenas de oaxaquenhos se jogam no chão para formar uma cortina humana para evitar o avanço dos carros de combate que lançam jatos de água sobre os manifestantes.Nas ruas de Oaxaca estão mulheres, crianças, jovens, anciãos que resistem sem violência aos gendarmos federais. Escrevem em pequenos cartazes de cartolina: “Vão embora, não são bem-vindos”. São milhares de pessoas que usam seu corpo com a única arma para resistir à agressão policial. Transformaram o medo em raiva, a humilhação em dignidade.



Em três das barricadas a tensão recrudesce. Aqui e ali voam paus e pedras. Alguns poucos falam em molotovs. Outros jogam bombas de festa. Falando pela Rádio da Universidade, voz do movimento contra o governador da província, Ulises Ruiz, os locutores repetem à exaustão que os manifestantes devem resistir pacificamente. Dizem: “Paciência, calma, inteligência”. “Não cair nas provocações”.



Campanha de mídia
A oferta governamental de uma operação limpa, sem corpo a corpo, se esfuma logo de início. São apenas palavras. A polícia atira bombas de gás lacrimogêneo, brande os cassetetes, dispara armas de fogo, invade domicílios particulares, prende cidadãos, agride jornalistas, confisca seus escritos, os blocos de papel, as canetas. Sua palavra de ordem é avançar com toda a força, tomar os edifícios públicos, apagar as marcas de suas arbitrariedades, fazer sentir a sua força. O governo monta uma grande campanha midiática para esconder as atrocidades de seus gendarmes. O secretário Abascal declara que não houve mortos, que o saldo é zero. Mas a voz dos defuntos os desmentem. Os mais de 50 presos os refutam. Os feridos os negam.



Mais uma vez a administração agonizante de Vicente Fox mancha suas mãos com sangue. É a batalha de Oaxaca. A revolta popular mais importante em muitos anos, e a tentativa de sufocá-la pela repressão. Nela se vê o anúncio do rumo que podem tomar os protestos populares no México.



Na batalha de Oaxaca, o governo federal faz seu jogo habitual, enquanto o movimento popular joga com imaginação e audácia. Enquanto as forças federais se comportam como um exército estrangeiro, entocados nas posições que ocupam, os oaxaquenhos desfraldam centenas de bandeiras nacionais e cantam o hino nacional. Na disputa pelos símbolos nacionais, o lado do governo perdeu desde o primeiro assalto. Mal a PFP tomara o centro da cidade, os cidadãos oaxaquenhos levantaram novas barricadas em suas costas. A gente serrana, que apóia o movimento, desce para a capital do estado. Os cercados na verdade é que cercam seus agressores.



Em Oaxaca, o preço que Vicente Fox paga com sangue a aliança política para avalizar a posse de Felipe Calderón como o próximo presidente da República em 1º. de dezembro é estratosférico. “Eu não inventei este problema”, diz o defenestrado mandatário estatal. O governo federal acabou pagando as tropelias de uma administração local repudiada pelos cidadãos. Vicente Fox foi quem pagou a fatura de Ulises Ruiz. O Partido de Ação Nacional (PAN) perpetrou a apropriação das barbaridades cometidas pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI).



A dimensão deste compromisso lembra a cena final da obra de Brecht, “Os dias da Comuna”, em que o aristocrata saúda o afogamento em sangue da Comuna de Paris em 1871, de que a sublevação oaxaquenha é filha legítima. Parafraseando a cena:



Um Priista, a meia voz: Mister Fox, para o senhor isto significa a imortalidade. Devolveu Oaxaca a seu verdadeiro dono, o México.



Fox: O México… são vocês, os priistas, ladies and gentlmen…


 


Preço caro
O governo federal já começou a pagar o preço dessa aliança. Em várias cidades européias os consulados mexicanos foram ocupados ou houve manifestações diante deles. Os protestos se estenderam a outros estados, e agremiações de professores preparam uma greve nacional. E, como disse o dirigente indígena Adelfo Regino: “vamos ver se Felipe Calderón consegue ir a Oaxaca…”



Não há violência que possa dar base ao retorno à normalidade. Não se consegue refazer o tecido social com ocupação policial. A governabilidade requer que os governados reconheçam a legitimidade dos governantes. Essa aceitação não existe, e não serão cassetetes e botas que a trarão. Ao contrário, o fermento do inconformismo se espraiou. Se até agora alguns setores da sociedade tinham ficado neutros, o ataque federal os obrigou a tomar partido.



Fracassou o acordo de retorno às aulas com a direção do sindicato dos professores. O sangue dos mortos ainda está fresco, a indignação é enorme. Os professores, que tinham aceitado o recuo, voltam a mobilizar-se. A presença policial foi um agravo inadmissível que calou fundo na população.



A batalha de Oaxaca ainda não terminou. A solução do conflito hoje é mais complicada do que antes, e parece mais distante. A frase está gasta, mas é inevitável: quiseram apagar o fogo com gasolina.



*Luiz Hernández Navarro é editor de opinião do jornal La Jornada, do México