Le Monde: O barril de pólvora das prisões de São Paulo

Jornal francês descreve as condições insustentáveis dos detentos, mostra como a ameaça do PCC ronda o sistema carcerário paulista e aponta as deficiências da administração tucana.
Por Annie Gasnier

De agora em diante, os familiares lembram-se disso todo domingo, quando da visita: em 14 de maio, no Dia das Mães, a rebelião espalhou-se rapidamente pelos 82 estabelecimentos penitenciários do Estado de São Paulo. Por “ordem” de detentos que se reclamavam do PCC, o Primeiro Comando da Capital. Centenas de familiares ficaram então reféns dos amotinados, enquanto a ordem foi transmitida para além dos muros das prisões: os cúmplices do PCC do lado de fora semearam o terror pela cidade de São Paulo, o coração econômico da América do Sul.



Vinganças ou acertos de contas pessoais, ataques contra delegacias e veículos da polícia, coquetéis Molotov explodidos dentre de ônibus, dos quais 299 queimaram: o balanço oficial dá conta da ocorrência de 493 mortos em uma semana, dentre os quais 163 somente na megalópole: 30 presos, 33 policiais ou guardas penitenciários mortos, enquanto os outros crimes, em sua maioria, permanecem sem qualquer explicação.



“Lembro-me perfeitamente daquela segunda-feira, 15 de maio”, conta Joaquim, um motorista de táxi que mora em Interlagos, um bairro da periferia. “Não havia praticamente nenhum ônibus, nunca trabalhei tanto, mas o trânsito estava muito complicado”.



A partir dos subúrbios, que foram o palco principal das ações violentas, os boatos se alastraram até os bairros nobres. Os mais alarmantes referiam-se a “bombas dentro do metrô, aeroportos fechados, bancos atacados”. De fato, os escritórios e as lojas fecharam, e a Avenida Paulista, sede do poder econômico, ficou deserta enquanto engarrafamentos paralisavam a cidade.



“Eu nunca imaginei que coisas como essas poderiam acontecer em São Paulo, onde não me sinto em perigo, diferentemente do que ocorre com os meus colegas no Rio de Janeiro”, comenta um homem de negócios. “Os boatos, que foram amplificados pela Internet, espalharam o pânico. As pessoas se deram conta de que o PCC existia realmente”.



Contudo, aquela não era a primeira demonstração de força da gangue. Em fevereiro de 2001, uma “mega-rebelião” em 29 prisões, coordenada por meio de telefones celulares, já havia revelado o seu poder da organização, que as autoridades garantiam mesmo assim ter dominado, ao menos até o mês de maio.



O PCC teria surgido em 1993 para vingar o massacre da penitenciária do Carandiru, então a maior prisão da América do Sul, conhecida pelas suas condições de encarceramento desumanas e as suas violentas rebeliões. Em outubro de 1992, a intervenção do batalhão de choque da Polícia Militar, que invadira o recinto para dominar um motim de 10.000 condenados, provocou, segundo os dados oficiais, a morte de 111 presos.



Esta repressão sangrenta, em conseqüência da qual nenhum policial foi punido e que não motivou o pagamento de qualquer indenização a não ser para oito famílias, para o desespero dos defensores dos direitos humanos, foi narrada pelo médico da prisão, Drauzio Varella, cujo livro, que vendeu mais de 500.000 exemplares e foi traduzido em várias línguas, inspirou o filme de Hector Babenco, “Carandiru”, exibido em Cannes em 2003.



O símbolo principal do terrível cotidiano das prisões do Brasil, o Carandiru, construído em 1956, foi demolido em dezembro de 2002. A destruição dos pavilhões foi realizada na presença de centenas de convidados do então governador, Geraldo Alckmin, o candidato do Partido Social-Democrata Brasileiro (PSDB, de oposição), que disputará, no domingo, 29 de outubro, o segundo turno da eleição presidencial contra o chefe do Estado em final de mandato, Luiz Inácio Lula da Silva.



No dia da destruição, Geraldo Alckmin, um homem cujas reações, contudo, costumam ser mais comedidas, havia pulado de alegria e abraçado seus colaboradores: no Brasil, os governadores são os responsáveis da administração penitenciária. “Inicia-se uma nova era no sistema penitenciário de São Paulo”, garantiu. A euforia foi de curta duração. Mesmo se Geraldo Alckmin declarou, durante a campanha eleitoral, “ter feito a sua parte”, a eficiência da sua política carcerária foi seriamente abalada pelos motins de maio.



O PSDB vem governando o Estado de São Paulo desde 1994. A sua luta contra a insegurança tem sido marcada por uma política de encarceramento sistemático, que aumentou em doze anos o número das prisões de 60 para 144, enquanto a população carcerária triplicou, passando de 55.000 para 143.500 pessoas, ou seja, 40% dos detentos do Brasil.



“As autoridades de São Paulo criaram um monstro”, afirma a socióloga Julita Lemgruber, da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro. “Quanto maior o número de presos, maiores são os problemas ligados ao encarceramento, à segurança, à assistência jurídica, à saúde e à higiene, que se multiplicam”. Apesar dessa febre por construir novos estabelecimentos, a superpopulação carcerária persiste no Estado de São Paulo: faltam 25.000 vagas, enquanto 700 novas pessoas são presas todo mês.



O PCC diz querer combater “a opressão nas prisões”. A gangue se dotou até mesmo de uma “carta”, que não admite, entre outros, “a mentira, a traição, o egoísmo”, mas que valoriza “a verdade e a solidariedade, um por todos e todos por um”. A organização reivindica melhores condições de detenção, mas ela é suspeitada de estar lutando, sobretudo, para proteger, dentro e fora dos muros, os seus mais diversos tráficos, e principalmente o de drogas.



Raros são os fundadores do PCC que sobreviveram. O mais conhecido dentre eles é certamente “Marcola”, hoje apresentado como o chefe da gangue, um homem educado e carismático. Ele foi condenado por assaltos de agências bancárias e permanece detido no bairro de segurança máxima de Presidente Bernardes (SP), a 800 km de São Paulo. Ele destituiu seu predecessor, “Geleião”, enquanto os outros chefes foram assassinados na prisão.



“Os eventos de maio são da responsabilidade do Estado de São Paulo, que havia perdido a sua autoridade nas prisões”, afirma o novo dirigente da administração penitenciária, Antonio Ferreira Pinto. “O que houve foi uma inversão de valores, concessões injustificadas aos detentos. O Estado havia se tornado refém da chantagem das facções criminosas”.



Este antigo procurador foi nomeado no auge da escalada da violência, e deverá permanecer no cargo até 1º de janeiro de 2007, data na qual o governador eleito, José Serra (PSDB), assumirá as suas funções. O seu predecessor, Nagashi Furukawa, era bastante respeitado por ter “humanizado” a vida dos presos.



Antonio Ferreira Pinto explica a calma atual como sendo o resultado “do retorno da segurança e da disciplina”, e da manutenção do isolamento dos líderes do PCC. Os chefes da organização vêm sendo submetidos ao “RDD”, o regime disciplinar diferenciado, instaurado pelo antigo governador, Geraldo Alckmin, o qual o PCC execra. Embora ele afirme não ter condições de prometer que novos ataques são impossíveis, Ferreira Pinto garante que “o sistema está sob controle”, ao passo que a reputação do PCC, segundo ele, tem sido “exagerada e glamourizada” pela mídia.



Será que houve mesmo um acordo com o PCC para acabar com a onda de ataques, conforme afirma a imprensa? Tudo leva a crer que sim. Nesse sentido, nenhum dos membros do PCC chegou a ser transferido para a prisão federal ultra-moderna de Catanduvas (Estado do Paraná), inaugurada em junho e destinada a isolar os chefes de gangues. Aliás, o próprio PCC está interessado nesse retorno à calma, que beneficia os seus “negócios”: estes proporcionariam uma receita de 270.000 euros (cerca de R$ 730.000) por mês, sendo que este dinheiro é dedicado principalmente a promover a evasão dos “irmãos”.



“O isolamento total é um verdadeiro açougue humano, e qualquer um submetido a ele pode ficar louco”, acusa Ivan Barbosa, um antigo delegado de polícia preso por contrabando que foi mantido em RDD durante 153 dias na prisão de Avaré (a 360 km de São Paulo). “Trancafiado numa cela de 6 m2, sem comunicar nem ver o sol, eu perdi 30 kg”, conta este homem de cabeça raspada que, daqui para frente gostaria de ajudar detentos a se inserirem novamente na sociedade. A sua ONG, Nova Ordem, é suspeitada de ser uma vitrine do PCC. Segundo Ivan Barbosa, essas acusações “mentirosas” ameaçam a associação, cujo escritório, no bairro da Bela Vista, atualmente permanece deserto.



Hoje, a maior parte das prisões de São Paulo segue sendo controlada pelo PCC. As outras estão sob a esfera de influência do Terceiro Comando da Capital (TCC), do Comando Revolucionário Brasileiro da Capital (CRBC), ou ainda da Seita Satânica: haveria uma meia-dúzia de organizações no total. Os guardas evitam deixar numa mesma cela os diferentes membros das gangues – chamados de os “batizados” -, isso porque o fato de pertencer a um bando rival pode ser fatal. Este é um dos raros momentos em que os condenados confessam a sua vinculação.



“Eu fui animador de uma oficina de vídeo durante sete meses no Carandiru”, relata Paulo Sacramento, o realizador do documentário intitulado “O Prisioneiro da Grade de Ferro”, uma série de auto-retratos de detentos. “Eu tentei obter a aprovação do PCC, mas ele permaneceu invisível, a não ser por alguns indícios, tais como detentos calçando tênis novos na última moda”.



O trabalho ou os estudos são raros na prisão. A reincidência é estimada em 60%. Para evitar o superaquecimento das mentes desocupadas, e por cauda da carência de vigias, os detentos não são confinados; eles ficam circulando no seu pavilhão. Na prisão Adriano Marey, perto do Aeroporto Internacional de Guarulhos, 200 guardas vigiam 2.160 condenados, dentro de dependências que foram projetadas para 1.000 prisioneiros. Uma vez que as autoridades não acompanharam o ritmo das construções, faltam 30.000 guardas. Em 2005, o sistema contava 4,9 detentos por vigia, contra 2,17 em 1994.



Em Guarulhos, as portas são abertas às 8h. Os prisioneiros limpam a sua cela, preparam o café da manhã. Eles são trancados novamente ao meio-dia, para receberem os “marmitex”, as refeições que entregues por uma empresa fora da prisão. Então, eles ficam livres até às 17h, quando os guardas, não armados, procedem à chamada. De noite, as janelas refletem a luz azulada dos aparelhos de televisão ligados.



Em junho, pouco antes da Copa do mundo, a administração penitenciária havia autorizado a entrada de aparelhos de tela plana, “a partir do momento em que os prisioneiros pagassem por eles”. Vinte e três aparelhos foram introduzidos na penitenciária de Avaré. “Isso facilitou as nossas operações de busca; agora nós não somos mais obrigados a desmontar os equipamentos de maior tamanho que servem de esconderijo para os celulares, as drogas, lâminas ou fuzis”, ironiza Antonio Ferreira, o secretário-geral do Sindicato dos guardas (Sifuspesp).



Os contatos com o exterior, em prisões onde não existem faladores, são facilitados pela obtenção de privilégios. Os guardas dizem que eles não conseguem dar conta dos controles das remessas de encomendas por Chronopost destinadas aos presos, nem dos 4.000 a 6.000 “marmitex” que entram diariamente em Guarulhos, nem dos advogados desonestos ou das visitas “íntimas” do domingo, que chegam junto com os “jumbos”, as sacolas de supermercado. As autoridades pretendem tornar sistemáticos os detectores de metais na entrada das prisões.



“A disciplina e a ordem não são da nossa alçada”, garante o presidente do sindicato dos guardas, João Machado. “A nossa missão consiste em impedir as evasões”. Aliás, os guardas não entram nas celas, exceto para proceder a operações de busca que são acompanhadas pela polícia, o que explica a existência de túneis, que são cavados sem que o acúmulo de terra chame a atenção. “No complexo penitenciário da Hortolândia, foram descobertos 17 túneis desde o mês de maio, e dez detentos fugiram”, conta João Machado. “Os túneis estavam escorados por vigas, e a eletricidade havia sido instalada; dava para ficar em pé”.



“A verdade é que a justiça manda prender e encarcerar, e então abandona os prisioneiros dentro de depósitos, geralmente desumanos, onde os homens são tratados assim como animais”, comenta, desolado, o Padre Valdir, que vem atuando há muito anos a serviço da Pastoral carcerária, ligada à Igreja católica. Por influência dele, detentos recuperaram a capacidade de reagir, o que foi o caso de “F.W.”, condenado por homicídio e latrocínio a 24 anos de detenção, que passou doze anos atrás das grades.



Em liberdade condicional, “F.W.” trabalha num pet shop onde ele dá banho nos cães. Nos seus momentos de lazer, ele se dedica ao seu “dom”, que ele descobriu durante a sua estada no pavilhão 9 do Carandiru: a música. Junto com dois companheiros, ele havia fundado o grupo Comunidade Carcerária. Eles foram autorizados a gravar um primeiro CD de rap em 2001. Em breve, eles vão gravar o seu segundo disco, além de se apresentarem em shows em festas de família ou em prisões.



“F.W.” se diz disposto a “fazer de tudo” para nunca mais retornar na prisão. “Aquilo foi duro demais; o sistema muda a gente e nos tritura”, confessa ele, depois de vinte meses de liberdade. “Para resistir, só dá para contar com você mesmo, isso porque o pessoal que foi destruído pela prisão pode afundar para sempre”. “F.W.” diz que ele nunca aderiu ao PCC, mas admite que a organização “incentivou” a sua música.



Desde a rebelião de maio, as autoridades de São Paulo vem se esforçando em espionar o PCC de maneira eficiente. A Polícia Federal garante ter desvendado o vinculo existente entre a organização e ataques de bancos que foram perpetrados a partir de túneis, tais como aquele ocorrido em agosto de 2005 no Banco Central de Fortaleza (Nordeste); ou um outro, frustrado, em Porto Alegre (Sul) em setembro de 2006.



As tentativas visando a separar os membros do PCC permitiram que a gangue se ramificasse em outras penitenciárias do Brasil. Segundo o Observatório Nacional das Prisões, este “partido do crime” contaria mais de 100.000 recrutas entre os 361.000 presos do país.



“A nossa burguesia é medíocre, a minoria branca é muito perversa”, declarou, para a surpresa geral, o governador interino do Estado de São Paulo, durante a onda de violência de maio. Claudio Lembo, um membro do Partido da Frente Liberal, o qual, contudo, é fortemente orientada à direita, estima que “a bolsa da burguesia vai ter de ser aberta para poder sustentar a miséria social brasileira” e evitar a explosão das prisões.