Relações de trabalho: o que o Estado tem a ver com isso?

A queda da taxa de desemprego, anunciada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pela Fundação Seade-Dieese, é mais uma dessas notícias que jogam água no fogaréu ateado pela campanha da direita contra o presidente Luis Inácio Lula da

Por Osvaldo Bertolino



 


A taxa de desemprego, diz o IBGE, ficou em 10% em setembro, uma queda de 0,6 ponto percentual em relação ao mês anterior. Já a pesquisa da Fundação Seade-Dieese apurou que o índice de desemprego foi de 16% para 15,3% da População Economicamente Ativa (PEA) na Região Metropolitana de São Paulo. É o menor índice para esse mês desde 1997, quando a taxa ficou em 15,9%. Desta vez, o índice é o menor para o mês de setembro desde 1996, quando a taxa foi de 14,8%. São dados que podem representar importantes sinais de mudanças nas relações sociais brasileiras.


 


O Brasil, é certo, ainda está longe de resolver o crônico problema das relações de trabalho. Afinal, são 8 milhões de brasileiros desempregados e 47 milhões trabalhando na informalidade. O Brasil também é, de acordo com pesquisa da organização Gallup Organization, a terra da insatisfação para quem já conseguiu espaço e salário. O estudo ouviu 1.012 pessoas em 11 regiões e mostra que 78% dos trabalhadores brasileiros não estão “engajados” em  seu trabalho — o que, segundo a Gallup, pode causar um custo produtivo ao país de até R$ 88 bilhões anuais. Destes 78%, 61% se encaixaram na categoria ''não engajados'', ou seja, não psicologicamente envolvidos com a empresa e prontos a deixar o cargo caso recebam proposta de outra empresa.


 


Os 17% restantes estão desencantados com o trabalho e deixam clara sua insatisfação — são os ''ativamente desengajados''. Somente 22% dos trabalhadores brasileiros afirmaram estar satisfeitos com o que fazem. E, por isso, de acordo com a pesquisa, são mais dedicados e produtivos. Mas o Brasil não é o único a sofrer do mal do desalento no trabalho, e pode até comemorar dados mais positivos do que os de Inglaterra e Alemanha, por exemplo, onde apenas 19% e 13% dos trabalhadores, respectivamente, são engajados. Outros, no entanto, como Estados Unidos (28% de engajados) e o nosso vizinho Chile (25% de engajados) apresentam taxas maiores de trabalhadores dedicados.



 


Crise metropolitana



 


O motivo de tanto descaso, diz a Gallup, é o gerenciamento ineficiente de pessoas. Aqueles que não se comprometem com suas tarefas geralmente o fazem por não receberem reconhecimento e atenção quando dão opiniões, e também por não terem idéia de como podem desenvolver a carreira profissional na empresa. A pesquisa mostrou, por exemplo, que 84% dos trabalhadores que pedem demissão deixam o emprego por não conseguirem manter um bom relacionamento com seu gerente direto. Há, nesses números, verdades, mas é importante analisá-los também pelo ponto de vista do trabalho. Num país como o Brasil, o fato de uma pessoa conseguir alguma ocupação, mesmo com a ineficiência gerencial e os baixos salários, já é motivo de grande satisfação.  


 


A miséria entre os brasileiros caiu de 28,2% da população em 2003 para 22,7% em 2005, mostrou pesquisa divulgada em setembro pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). De acordo com o estudo, realizado com base na Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio (Pnad), do IBGE, esta é a maior queda no nível de pobreza no Brasil dos últimos dez anos. A redução da miséria foi motivada, segundo o coordenador da pesquisa, Marcelo Néri, chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV, por fatores como a retomada da oferta de empregos, programas de distribuição de renda e aumento nos gastos previdenciários. Ainda de acordo com o estudo, a miséria nas metrópoles também caiu entre 2003 e 2005, de 22% para 16% da população, o que mostra uma certa reversão da crise metropolitana que está associada a piores indicadores de desemprego.



 


Renda se desconcentrando



 


A Pnad também mostra que o rendimento médio real do brasileiro cresceu 4,6% na passagem de 2004 para 2005. O nível de ocupação registrou resultado positivo no ano passado, atingindo uma parcela de 57% do total da população em idade ativa — o maior patamar nos últimos dez anos. A alta no rendimento registrada entre 2004 e 2005 não foi suficiente para apagar as retrações dos anos anteriores. O valor alcançado no ano passado ainda foi 15,1% inferior ao rendimento apurado em 1996, segundo o IBGE. Entre os homens, o crescimento da renda em 2005 foi de 3,9%; para as mulheres, o valor teve acréscimo de 6,3%. Outro indicador também apontou melhora da situação para a mão-de-obra feminina: enquanto em 2004 a renda conseguida pelas trabalhadoras representava 69,5% da dos homens em 2004, a proporção subiu para 71,2% em 2005.


 


A pesquisa do IBGE também mostrou que a renda vem, lentamente, se desconcentrando. ''Do total das remunerações de trabalho, os 10% ocupados com os maiores rendimentos detinham 47,1% em 1995 e 44,7% em 2005, enquanto os 10% ocupados com os menores rendimentos ficaram com 1,0% em 1995 e 1,1% em 2005'', diz o Instituto. Nos domicílios brasileiros, o IBGE apurou que o rendimento médio mensal ficou em R$ 1.524 em 2005. Na análise agregada de todas as fontes de renda de um mesmo domicílio, a quantidade de moradias com rendimento de até 1 salário mínimo ficou em 13,1%, e a dos que estavam na faixa de 20 salários mínimos, em 3,3%. A população ocupada cresceu 2,9% em 2005 na comparação com 2004, o que significa a entrada de mais 2,5 milhões de pessoas no mercado de trabalho.



 


Privilégio de poucos



 


Essa melhora no nível de vida dos trabalhadores resulta em muitos ganhos. O primeiro deles é o fato de mais gente sair daquela condição de cidadão encurralado. Não por acaso, os apologistas do consumo no Brasil têm sido basicamente aqueles que podem exercer seu inchado poder de compra sem tomar conhecimento das fronteiras nacionais. O resto da população, mantida em situação vulnerável, ignora os benefícios de uma economia baseada no consumo. Os grupos monopolistas repartem os compradores entre si, marcando-os com seus ícones e confinando-os em seus lotes. Mais do que isso: o capital, ao produzir e vender, se imagina fazendo um favor aos trabalhadores. Um disparate.


 


Este talvez seja o ponto principal para um debate que poderia ajudar a debelar vários vícios longamente incrustados no panorama nacional. A elevação do nível de consumo funcionaria como o estopim econômico de transformações sociais. E seria bem-vindo por isso. As travas brasileiras em relação ao consumo está no fato de que ele, enquanto acesso a benesses materiais, sempre foi privilégio de poucos. Vivemos por muito tempo sob uma doutrina econômica que impediu o florescimento de um mercado consumidor forte no país. As empresas não precisavam abrir o leque da sua produção, nem vender mais barato, nem alargar sua carteira de clientes para obter lucros excelentes.



 


Cidadão mais seletivo



 


Se o Estado frear esses abusos, permitindo um mínimo de distribuição da riqueza — idéia proscrita nos círculos que detêm o capital — o consumo se transformará em pré-requisito para que o capital se remunere. O lucro estará cada vez mais atrelado à satisfação e ao poder de compra dos consumidores, bem como à inclusão dos excluídos na ala economicamente ativa da sociedade. A obviedade da importância de um mercado doméstico robusto para o desenvolvimento econômico do país finalmente ganhará assento no debate nacional. É fundamental querermos de verdade que essa realidade aconteça por aqui. A engrenagem que a gera é econômica — não depende de um deus nem da bondade de um líder. Depende, sim, do que o governo está disposto a fazer para que ele se realize.


 


O Brasil só começará a mudar quando as empresas que tratam seus públicos como gado começarem a perdê-los para uma política que os entenda e os atenda. O alcance das mudanças trazidas pelo consumo romperá os limites da esfera econômica. Um consumidor com maiores opções é, por tabela, um cidadão mais seletivo e mais rigoroso. O miserável, por não consumir, não desenvolve nenhum senso crítico. Recebe o que lhe dão e está bem assim. Seja um produto defeituoso, seja um candidato vil. O cidadão afeito ao consumo exerce seu direito de escolha, com parcimônia e rigor, não apenas na hora de desembolsar seu dinheiro para adquirir um produto ou contratar um serviço mas também na hora de exigir direitos, votar, cobrar desempenhos. Isso vale também para as relações de trabalho. No Brasil, o capital imagina que tem o seguinte pacto com o trabalho: eu emprego você e você faz sacrifícios para manter o emprego.



 


Safanões e sopapos



 


De modo geral, essa crença e a pressão das fileiras de desempregados e subempregados têm permitido que um lugar na economia formal seja visto como um favor concedido pelo capital ao trabalho. A manutenção do emprego é o único estímulo concedido pelos patrões aos trabalhadores no país. Os gerentes médios atuam como feitores: domesticam a plebe; supervisionam a execução das tarefas, a conservação das instalações e dos instrumentos; coíbem os atrasos e o descanso. São, enfim, os encarregados de arrancar no chicote o cumprimento das metas estabelecidas de produção e de custo. Ainda há muita gente, milhões de patrícios, trabalhando pela comida ou por pouco mais do que isso. Não é de espantar que, em média, os índices de insatisfação no ambiente de trabalho no Brasil sejam altos e os índices de produtividade, baixos.


 


Em um ambiente baseado em safanões operacionais e em sopapos administrativos, forja-se uma força de trabalho descontente e desencantada. No Brasil, a troca do passado pelo futuro nas relações entre capital e trabalho passará necessariamente pelo abandono da relação capataz-peão — muito presente nas empresas nesses tempos de neoliberalismo. Se a história ainda serve como guia, a defesa da essência da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e dos seus aprimoramentos — destacadamente a Constituição de 1988 — é a principal bandeira que precisa ser fincada nesse campo de batalha.


 


Crise do liberalismo


 


É preciso perceber, evidentemente, que nem tudo nessa legislação é acerto. Mas é preciso perceber também que nem tudo é fracasso. O fundamental é entender que nossas leis trabalhistas são a síntese do embate entre capital e trabalho que atravessou todo o século 20 e refletem nossas vitórias e derrotas. Até os anos 40, os trabalhadores empregaram lutas heróicas e, aos trancos e barrancos, foram arrancando conquistas aqui e acolá. Pode-se afirmar que as refregas das três primeiras décadas daquele século representaram verdadeiras aulas de organização em sindicatos e federações, e inculcaram a primeira noção de força nos trabalhadores brasileiros.


 


Quando o governo do presidente Getúlio Vargas instituiu a CLT, no dia 1º de maio de 1943, ele reuniu em um sistema único todas as leis trabalhistas aprovadas anteriormente. Grande parte delas são artigos que devem ser avaliados como importantes conquistas e que nunca foram aceitos pelo capital. Nesses tempos de mudanças, será preciso um novo contrato, promovido pelo Estado, que imponha limites aos patrões que tratam os trabalhadores como insumo ordinário. De certa forma, essa mudança já vem acontecendo. Mas ainda existe um longo caminho pela frente: benefícios mais atraentes, sistemas de regulação mais modernos, estímulos mais eficientes ao aumento da produtividade, revogação da hierarquia do medo e do mandato dos feitores. Pela natureza do capital, no entanto, sem o Estado atuando na economia nada disso será possível.