Mídia e política: entranhas expostas e luzes no fim do túnel

Por Jonas Valente*
A relação (in)tensa entre a mídia e a política é antiga, mas ganha no último quarto de século um caráter cada vez mais profundo e complexo. O período mais recente da história da democracia brasileira tem no seu início um dos casos m

Ao longo destas últimas duas décadas há diversos exemplos da influência decisiva dos meios de comunicação, mas poucos foram tão escancarados como a cobertura feita sobre o “caso do dossiê”, cuja orquestração foi desmascarada pela revista Carta Capital nas últimas duas semanas.



 Não é necessário aprofundar mais a importância das reportagens de Raimundo Pereira e Antônio Carlos Queiroz, tema tratado por diversos articulistas e analistas políticos nas últimas duas semanas, embora seja fundamental amplificar o eco das revelações produzidas pelos jornalistas para furar o cerco da mídia comercial que obviamente ignorou o desvelar de seu modus operandi. O caso pode e deve ser aproveitado para retomar o necessário debate sobre as causas estruturais da situação da mídia no País hoje e colocar em pauta medidas concretas para democratizar a comunicação no Brasil.



A ação da Rede Globo e de outros grandes meios não é um desvio editorial, como tentam crer alguns defensores do ‘bom jornalismo’. As decisões editorais não só dela, mas do conjunto de meios comerciais denominados grande mídia, são reflexo do claro lado ocupado por seus dirigentes ao longo da história da política brasileira, em episódios que vão desde o apoio à ditadura militar, passando pelo caso das diretas, do debate entre Lula e Collor em 1989 e chegando ao polêmico conjunto de matérias sobre o dossiê. De parceiros, este conjunto de meios passou a ator do jogo político nacional pelo alcance que passaram a ter após anos de recompensas do executivo e do legislativo para a formação de suas redes em parcerias com oligarquias locais.



Estes políticos recebem concessões, ganham ou amplificam sua projeção através do controle da mídia em seus estados, voltam ao Congresso e perpetuam as relações promíscuas. Na nova legislatura, segundo matéria da Agência Repórter Social, serão 80 os parlamentares ligados a alguma estação de rádio ou TV (http://www.reportersocial.com.br/noticias.asp?id=1278&ed=comunicação). O círculo vicioso tem impacto direto para que escândalos como o da cobertura do dossiê continuem sendo algo normal na mídia brasileira, pois num parlamento radiodifusor são poucas as chances dos interesses do serem contrariados. 



Até o presidente já está falando



Frente a este quadro, se torna fundamental que o Executivo tome a iniciativa para que a comunicação no País não seja mais encarada com mero negócio e seja compreendida como direito da população e elemento fundamental da democracia. Isso aconteceu em casos pontuais, como a tentativa do Ministério da Cultura de colocar para a sociedade a proposta de uma Agência Nacional do Audiovisual (Ancinav), iniciativa massacrada pela grande mídia ao perceber o menor sinal de alteração no status quo do setor. Após este episódio, o que se viu foi um receio exacerbado de quadros do governo recolocarem a questão em pauta, temor que perpassou o debate sobre a implantação da digitalização do Rádio e da TV no Brasil. Não só o enfrentamento ao Monopólio foi abandonado como um representante das emissoras foi elevado ao cargo de Ministro das Comunicações, o mineiro ex-repórter da Rede Globo Hélio Costa.



Ainda no decorrer do 1o turno, a grande mídia novamente rosnou ao perceber o cheiro de mudança. Dois periódicos paulistas conseguiram o texto preliminar da comissão temática que então redigia uma proposta para o tema “Comunicação e Democracia” dentro do Programa de Governo da candidatura Lula e divulgaram partes do documento sem nenhum constrangimento de considerar absurda a idéia de “democratizar a comunicação”, pois afinal duas cabeças-de-rede controlarem mais de ¾ do bolo publicitário e da audiência nacionais é algo normal. Outro intento malvisto nas reportagens e novamente classificado como instrumento para cercear a liberdade de imprensa foi a proposta de criação de um “novo modelo institucional” para as comunicações brasileiras, realmente uma heresia quando a nossa legislação para a radiodifusão data de 1962 e está totalmente preparada para os desafios da convergência tecnológica. O temor palaciano voltou a ocupar a cabeça de parte dos quadros da campanha Lula, que tentaram diminuir o acontecido sugerindo que o texto teria ainda um longo caminho para sua aprovação.



Mas a realidade foi mais forte. Apesar do favorecimento dos interesses dos radiodifusores, o que se viu na campanha presidencial foi a inclinação clara pró-Alckmin da grande mídia, cujo mais explícito exemplo foi a cobertura do “caso do dossiê”. Por mais cuidadoso que se pudesse ser para não acirrar a relação com este conjunto de veículos, não era mais possível admitir que estava tudo bem. Tanto foi que até o presidente Lula passou a falar com menos constrangimento sobre o tema. Vale lembrar que a campanha de Lula em 1989 foi um marco ao fazer um enfrentamento simbólico à rede Globo substituindo o nome da emissora pela palavra povo no título dos programas eleitorais produzidos na forma de paródia dos shows da maior emissora nacional.



Em sabatina realizada pelo jornal Folha de São Paulo no dia 19 de outubro, o presidente afirmou ser “possível trabalhar para democratizar” a mídia. “É uma necessidade do país. A democratização dos meios de comunicação é vital para o fortalecimento da democracia”, respondeu Lula a uma pergunta questionando o “perigo” das declarações do petista terem repercussão negativa. Lula foi ainda mais longe e apresentou propostas de como seria esta democratização, sugerindo a criação de um “conselho na sociedade que possa acompanhar a programação, assim como nós criamos o Conselho de Justiça, Conselho do Ministério Público, que não vai interceder no comportamento dele, mas que vai orientar a sociedade”.



No debate promovido pela Rede Record, o tema voltou à pauta por meio de uma pergunta do jornalista Bob Fernandes. Lula foi mais sutil, mas mesmo assim voltou a destacar a importância de democratizar a comunicação, agora sugerindo que isso estaria em curso no processo de implantação da TV Digital no País. Fundamental a defesa do candidato, embora a forma citada esteja imersa em críticas por parte dos movimentos que defendem o uso deste processo para efetivamente quebrar o monopólio midiático tupiniquim.



 Após as entranhas expostas, aparecem luzes no fim do túnel. Resta saber se a defesa do possível presidente reeleito do Brasil é apenas um incômodo do presente ou um projeto para o futuro. Para que vença a segunda opção, a divulgação do “maldito” programa setorial e o encaminhamento de suas propostas já seria um belo passo, importante e necessário diante de um caminho íngreme e extenso. Como afirmou o professor Venício Lima em recente artigo no sítio Observatório da Imprensa, se coloca como urgente para o novo governante eleito a agenda da mídia e a necessidade “da implementação de políticas de comunicação que garantam o equilíbrio entre os sistemas privado, público e estatal, fundado na pluralidade e na diversidade de idéias e opiniões, conforme reza a Constituição”.



 * Jornalista da Agência Carta Maior, integrante do coletivo Intervozes e militante do PT-DF