Vale do Rio Doce: uma multinacional verde-amarela desbotada

No governo Lula, o BNDES, preocupado com a desnacionalização da Vale, agiu para elevar a sua participação na empresa e sofreu uma avalanche de críticas dos “analistas” do noticiário econômico.

Por Osvaldo Bertolino



 


A compra pela Companhia Vale do Rio Doce do controle da mineradora canadense Inco por estimados US$ 13,2 bilhões, o maior negócio de uma empresa brasileira na história, é um desses acontecimentos que levam à reflexão sobre o conceito de Estado. A Vale é a maior produtora e exportadora mundial de minério de ferro e uma das principais produtoras de manganês e de ligas ferrosas. Também produz cobre, bauxita, potássio, alumina e alumínio, entre outros produtos. A canadense Inco é a segunda maior produtora de níquel do mundo, produto largamento utilizado na produção de aço inoxidável e em baterias recarregáveis, e uma importante produtora de cobre, cobalto e de alguns metais preciosos, como platina.


 


A Vale, que foi criada pelo governo federal em 1942 e privatizada em 7 de maio de 1997, já era a maior mineradora diversificada das Américas e fica agora atrás apenas da BHP Billiton, baseada na Austrália, no ranking global do setor. Antes da privatização, era a ''jóia da coroa'' das estatais. Sua venda durante a “era FHC” varreu muita fuligem para debaixo do tapete e continua rendendo polêmicas até hoje. O emaranhado acionário da empresa desafia até os mais entendidos sobre o assunto. O nó é o seguinte: a Vale tem cerca de 10% do controle da Companhia Siderúgica Nacional (CSN), que controla a própria Vale. Além disso, tem participações na Companhia Siderúrgica Tubarão (CST), na Usiminas e na Açominas, concorrentes entre si e possíveis concorrentes da CSN ou da Vale em alguns negócios.



 


Inimigos de ontem



 


Mais: o Bradespar (fundo de participações do Bradesco) está no grupo controlador da CSN e tem participações na Belgo-Mineira e na Vale (diretamente, fora de sua parte da CSN). E a Previ, fundo de pensão do Banco do Brasil, atua na Vale, na CSN, na Belgo-Mineira, na Acesita, na Usiminas. Isso sem falar no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e no Tesouro Nacional, que têm 31,4% das ações ordinárias da Vale. Simples, não é? Qual o problema de tantos nós? Muitos.


 


Os gurus do capitalismo ensinam que uma empresa precisa desenvolver táticas de guerrilha contra o inimigo e que para vencê-lo é necessário fechar portas e janelas para se defender. Nada de informações compartilhadas. Nada de projetos conjuntos. ''O concorrente está se afogando? Coloque uma mangueira de água em sua boca'', costumava dizer o norte-americano Ray Krock, fundador da rede McDonald’s (essa frase foi também uma das preferidas de Roberto Goizueta, ex-presidente da Coca-Cola, morto em 1997). Pois bem: as regras mudaram? Não. É que as privatizações no Brasil entregaram verdadeiras minas de ouro aos obscuros grupos que se formaram para dominar setores estratégicos. Inimigos de ontem se juntaram hoje para formar cartéis que operam uns protegendo os outros. 



 


Desenvolvimento do país



 


Acontece o seguinte: o Estado exerceu uma influência enorme sobre a formação do capitalismo no Brasil. Essa era desenvolvimentista começou em 1938, quando o governo do presidente Getúlio Vargas se empenhou na exploração de petróleo no Estado da Bahia. No período de 1941 a 1946, o Estado construiu em Volta Redonda, Rio de Janeiro, uma grande empresa siderúrgica. Eram os pilares centrais do desenvolvimento brasileiro. A partir de então, o Estado investiu pesado na indústria energética, na siderurgia, na mineração e em transportes. No período de 1956 a 1962, a parcela do Estado nos investimentos aumentou de 29% para 46%. Em 1969, ela constituiu 61% de todos os investimentos.


 


No começo dos anos 90, o Estado controlava praticamente na íntegra a produção de energia elétrica, a extração e o refino do petróleo, os transportes ferroviários, os sistemas de comunicação e de telecomunicação e os sistemas de abastecimento de água. Mais de dois terços da extração de minério de ferro e sua fundição eram feitas por empresas estatais. Toda essa concentração de riquezas foi transferida para mãos privadas, que costuraram um intrincado sistema de relações empresariais sem nenhum compromisso com o desenvolvimento do país.



 


Crime de responsabilidade



 


O processo de entrega do centro da economia brasileira aos grupos privados não se limitou às privatizações. Ele obedeceu uma lógica política que se firmou com a chegada de FHC ao Palácio do Planalto. Um dos traços do capitalismo brasileiro, como modo de produção e forma de organização social, é a sua grande capacidade de unificação. O capital privado, que havia conquistado importantes setores durante a ditadura militar, procurou subordinar à sua influência toda a economia e reorganizar as instituições de uma maneira que seus interesses ficassem acima de tudo. Inclusive da soberania nacional. O capitalismo de hoje em dia luta para destruir qualquer indício de barreiras nacionais e abarcar economias locais e mercados isolados em seu sistema “globalizado”. Eis o motivo para a não aceitação da tese de que os brasileiros devem se ufanar das “multinacionais verde-amarelas”.


 


A conturbada privatização da Vale é uma ilustração exata dessa constatação. A venda incluiu a transferência do direito de exploração de recursos minerais de potencial desconhecido, já que parte deles nem havia sido descoberta ou não estava totalmente avaliada. Foi um desrespeito à exigência de prévia avaliação dos bens a ser vendidos. Na ocasião, subprocuradores da República divulgaram um ''manifesto à Nação'' contendo duras críticas ao governo. No documento, divulgado na véspera da privatização da Vale, eles ameaçaram o presidente da República com uma ação por crime de responsabilidade, o que equivaleria a cassar o seu mandato. FHC estaria sujeito a isso porque a privatização da Vale, no entender dos subprocuradores, ''agride a economia nacional, em sua integridade e independência, por entregar à cobiça privada ou estrangeira a exploração do nosso subsolo''.



 


Xadrez da economia



 


No governo Lula, o BNDES, preocupado com a desnacionalização da Vale, agiu para elevar a sua participação na empresa e sofreu uma avalanche de críticas dos “analistas” do noticiário econômico. O banco pagou R$ 1,5 bilhão pelas ações pertencentes aos trabalhadores da Vale. Com isso, o BNDES passou a deter 11,56% das ações da Valepar, a holding que controla a mineradora. O então presidente do banco, o economista Carlos Lessa, argumentou que fez o negócio por razões estratégicas, para evitar que o controle da Vale caísse em mãos de grupos internacionais. ''Não sabia que a Vale estava ameaçada de desnacionalização'', ironizou o então ministro da Fazenda, Antônio Palocci. O projeto do BNDES era fazer uma grande fusão no setor, criando um conglomerado nacional de porte. E a Vale, com sua participação em várias siderúrgicas estratégicas para o país, seria a peça chave do modelo.


 


Seria uma importante iniciativa diante do que está sendo batizado de segunda onda da “globalização”. Ou seja: a investida das multinacionais norte-americanas e européias, com marcas que há mais de meio século reluzem no mundo dos negócios. A Vale é cobiçada pelo seu papel estratégico no xadrez da economia mundial. A indústria siderúrgica brasileira pretende investir R$ 46,4 bilhões, entre 2007 e 2011, para dobrar a capacidade instalada. Atualmente, o parque nacional pode fabricar até 36 milhões de toneladas de aço bruto por ano. A meta é alcançar 72 milhões de toneladas em cinco anos. O montante de recursos previstos para a empreitada representa um aumento real de 140% sobre os R$ 19,5 bilhões investidos pelo setor entre 2001 e 2005.



 


Interesses nacionais



 


Para acompanhar a expansão, o BNDES também elevará o montante de recursos para financiar o setor. Entre 2001 e 2005, a instituição liberou R$ 4,8 bilhões para projetos de siderurgia. Nos próximos cinco anos, a meta é emprestar R$ 16,7 bilhões — um crescimento de 248%. Entre os projetos que contarão com o crédito do BNDES, está o da Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA), uma parceria entre a Vale e a siderúrgica alemã ThyssenKrupp. O projeto, que alcança um valor total de US$ 3,5 bilhões, inclui a construção de uma usina integrada de placas de aço em Itaguaí (RJ).


 


Diante do forte processo de consolidação do setor siderúrgico mundial, as empresas brasileiras precisam enfrentar o desafio de ganhar escala para não ser absorvidas pelos grandes grupos internacionais. No ano passado, o país produziu 31,6 milhões de toneladas de aço bruto, ocupando a nona colocação entre os maiores fabricantes do mundo. O faturamento total das siderúrgicas brasileiras foi de aproximadamente US$ 22,5 bilhões. Entre empregos diretos e indiretos, o setor ocupou 95.100 pessoas. Só isso justifica uma preocupação do Estado no sentido de criar barreiras às ações de aventureiros que agem movidos por ganhos fáceis em detrimento dos interesses nacionais.