Le Monde Diplomatique: Como Bush está perdendo a guerra

A oposição ao conflito no Iraque já não está restrita ao movimento pacifista. Entre os próprios conservadores norte-americanos, crescem a cada dia as correntes que condenam a aventura militar do presidente e pedem o início da retirada. Por Jeremy Brecher

Nos Estados Unidos, como no resto do mundo, o movimento pela paz está geralmente associado à esquerda. Da Coréia e Vietnã à invasão do Iraque, o conservadorismo tem sido quase sinônimo de apoio ao nacionalismo, militarismo, imperialismo e guerra. Mas uma pequena corrente em sentido oposto nega essa associação. Com o fracasso catastrófico da guerra do Iraque, ela está se tornando uma torrente. As implicações para a hegemonia conservadora da política norte-americana podem ser grandes.



 
A era da Guerra Fria presenciou um amplo consenso norte-americano em favor da corrida armamentista e do confronto com o comunismo. Conservadores como o senador Barry Goldwater (candidato republicano à eleição presidencial de 1964 e partidário na época da intensificação da guerra no Vietnã) foram seus mais ferozes defensores. Mas liberais como John F. Kennedy (assassinado em novembro de 1963) e Lyndon Johnson (presidente de novembro de 1963 a janeiro de 1969, data em que Richard Nixon sucedeu-o na Casa Branca) rivalizaram na liderança a favor da guerra.
 


À medida que o Vietnã tornou-se um fiasco impopular, o maciço movimento pacifista estabilizou-se à esquerda e acabou ganhando a liderança do Partido Democrata, enquanto os republicanos conservadores continuaram a base inabalável de apoio à guerra — e atribuíram a derrota a uma “punhalada pelas costas” desferida pelo movimento pacifista.
 


Quando o governo Bush atacou o Iraque, os republicanos o apoiaram cegamente. Mais da metade dos democratas no Congresso, ao contrário, votaram contra a resolução autorizando a guerra – adotada em outubro de 2002 por 77 a 23 no Senado e por 296 a 133 na Câmara.
 


Uma pequena minoria de conservadores reuniu-se aos opositores da guerra. Patrick Buchanan, ex-redator dos discursos de Nixon e candidato à presidência em 1992 e 2000, declarou que “o movimento republicano foi descaracterizado e tornou-se uma ideologia de fronteiras abertas, globalista, intervencionista, que não é o movimento conservador com o qual cresci” [1]. Advertiu: “Em breve começaremos uma guerra imperial no Iraque com o grito 'À Berlim!' com que os poilus franceses e tommies ingleses marcharam em agosto de 1914″. Quando Saddam for derrotado, “os neoconservadores que sonham com uma ’Quarta Guerra Mundial’” (a terceira foi contra o comunismo) vão começar “intensas guerras curtas na Síria e no Irã” [2]. O parlamentar ultra-liberal Ron Paul votou contra a resolução pela Guerra no Iraque (também apóia a retirada dos Estados Unidos das Nações Unidas).


Um site anarco-capitalista contra a guerra


 
Talvez o mais interessante desses grupos conservadores contra a guerra seja o que mantém o site www.antiwar.com. Esse site é “devotado à causa da não-intervenção e oposição ao imperialismo”. Sua política é libertária (ou anarco-capitalista). Buscaram em Randolph Bourne, crítico da Primeira Guerra Mundial, a visão de que “o Estado prospera com a guerra”, e no escritor conservador anti-guerra fria Garet Garret a idéia de que “entre governo no sentido republicano, ou seja, constitucional e representativo, e um Império, há inimizade mortal”. O site, visitado por muitos ativistas de esquerda, oferece informação detalhada sobre as intervenções militares norte-americanas em todo o mundo. Inimigos implacáveis do que chamam de alas republicanas e democratas do “Partido da Guerra”, seus editores convidam à ação comum os oponentes do militarismo e imperialismo, sejam de esquerda ou direita.



 
Ninguém foi mais inflamado em apoio à guerra do Iraque do que o republicano conservador Walter Jones, cristão devoto e representante da Carolina do Norte. Foi ele que lançou, quando a França tentou bloquear a guerra, uma campanha bem-sucedida para forçar as cantinas do Congresso norte-americano a retirar as “fritas à francesa” [3] de seus cardápios e substituí-las por “fritas da liberdade”.
 


Dois meses depois, Jones assistiu, no seu distrito, Camp Lejeune, ao funeral de um jovem fuzileiro naval morto em Nasíria [4]. Admitiu ter ficado muito emocionado com uma das últimas cartas do soldado, lida por sua viúva. Na ocasição, sua filha deu-lhe um exemplar do livro de James Bamford, A Pretext for War. Ele encontrou-se com Bamford, general pacifista aposentado, e com a ativista pela paz Cindy Sheehan. Finalmente, em meio a considerável controvérsia, apresentou uma resolução requerendo ao governo Bush a elaboração de um calendário de retirada do Iraque [5]. Perguntado se estava temeroso de represálias políticas por sua oposição à guerra, Jones respondeu: “Quero fazer o que acho que meu Deus quer que eu faça”.


O Pentágono se opõe a um ataque contra o Irã


 


Os oficiais das forças armadas americanas são proverbialmente conservadores, votam em massa nos republicanos, apóiam seus superiores da cadeia de comando e previsivelmente acreditam no exercício do poderio militar. Contudo, deram uma poderosa força à oposição conservadora ao intervencionismo unilateral de Bush.


 


Esta oposição tem sido expressa muito abertamente por oficiais da reserva. O general do corpo de fuzileiros navais Anthony Zinni comandou as tropas dos Estados Unidos no Oriente Médio por quatro anos. Opôs-se à guerra contra o Iraque desde o início. No Iraque, diz ele, “somos vistos como uma potência colonial, especialmente quando chegamos sem um mandato de cooperação internacional da ONU”. Os que têm experiência na região “sabiam que seria um desastre” [6].


 


A oposição militar foi particularmente barulhenta no governo Bush devido ao relaxamento do longo compromisso dos EUA com a Convenção de Genebra. Quando se soube que o Conselheiro da Casa Branca de Bush, Alberto Gonzales, tinha sido o arquiteto dessa política, doze oficiais da reserva de alta patente pronunciaram-se contra sua ascensão a procurador-geral. Mais recentemente, altos militares opuseram-se fortemente às tentativas do governo de empreender ataques militares contra o Irã. O Washington Post cita um ex-especialista em Oriente Médio da CIA dizendo que “o Pentágono está argumentando fortemente contra”. De acordo com o relato de Seymour Hersh na New Yorker, os chefes de Estado-Maior das Forças Armadas “concordaram em dar ao presidente Bush uma recomendação formal declarando que se opõem veementemente a considerar a opção nuclear para o Irã” [7].


 


O apoio dos intelectuais conservadores à guerra do Iraque e o governo Bush está em erosão. Talvez o fato mais espetacular tenha sido a defecção de Francis Fukuyama, autor de O Fim da História e o Último Homem [8] e um ícone da direita neoconservadora. Fukuyama assinou uma famosa carta em 1997 clamando pela derrubada de Saddam Hussein pelos norte-americanos. Contudo, opinou na New York Times Magazine neste ano que, “ao aproximar-se o terceiro aniversário do início da guerra do Iraque, parece pouco provável que a história vá julgar com benevolência tanto a intervenção em si quanto as idéias que a animaram”. Acrescentou que “a chamada Doutrina Bush, que serviu de arcabouço para o primeiro mandato agora está em frangalhos” [9].


 


Ataque às liberdades, tema perturbador


 


A falta de apoio chegou agora ao âmago do establishment conservador. William Buckley Jr., considerado o fundador do conservadorismo norte-americano moderno, disse que “não se pode duvidar que o objetivo dos EUA no Iraque não foi alcançado” [10]. Depois do fiasco no Líbano, o eminente colunista conservador George F. Will notou sarcasticamente, a respeito dos desejos neoconservadores de refazer o mapa do Oriente Médio: “A política externa ’realista’ considera a estabilidade do Oriente Médio como o objetivo. Os críticos dos realistas, que encaram o realismo como repreensivelmente despido de ambição, consideravam a estabilidade o problema. Esse problema foi resolvido” [11]. Tanto Buckley quanto Will declararam que George W. Bush, do ponto de vista deles, não é conservador [12].


 


Boa parte do descontentamento conservador provém da extensão radical da “presidência imperial” do governo Bush e seu evidente desprezo por restrições constitucionais ao poder do Executivo . O mais proeminente centro de idéias conservadoras anti-centralistas, o Instituto Cato, publicou recentemente um relato chamado Power Surge: The Constitutional Record of George W. Bush [13], que expõe essa preocupação em linguagem próxima à dos libertários progressistas, como o parlamentar John Conyers. O relatório identifica todo um rosário de transgressões, incluindo a negação de habeas corpus, a violação das convenções internacionais de tortura, esforços para negar o direito a julgamento com júri e a erosão das restrições aos poderes de guerra. De acordo com o Cato, o governo acredita que “quando estamos em guerra, vale tudo — e o presidente decide quando estamos em guerra”. Esta concepção, que deveria “inquietar todos os que se preocupam com a política”, resulta em “um presidente que pode iniciar guerras a seu bel-prazer e a quem nenhuma restrição impede de ordenar que se cometam crimes de guerra, se este é seu prazer”.


 


Neste verão, o mal-estar dos conservadores atingiu em cheio a arena política. O parlamentar republicano Chris Shays, por exemplo, foi um veemente apoiador da guerra do Iraque. Mas, depois de assistir o senador belicista de Connecticut Joe Lieberman ser derrotado numa eleição primária democrata, Shays começou a propor um calendário para a retirada das tropas do Iraque [14].


 


O mito da “punhalada nas costas”


 


O senador republicano e pré-candidato à presidência Chuck Hagel avalia que os acontecimentos no Iraque aparecem como uma “reedição completa do Vietnã”. E “o futuro do Iraque vai ser determinado pelo povo iraquiano, como foi no Vietnã”. Hagel diz que os EUA deveriam começar a retirar as tropas no início do próximo ano [15].


 


Os jornais dos EUA estão cheios de manchetes do tipo “O racha da direita” e “O fim da direita?” Mas o futuro a longo prazo da ala direita da oposição à guerra ainda não são certas.


 


Por uma razão: enquanto uma parte da direita está começando a pedir a retirada, os neoconservadores atacam o governo por ser supostamente fraco em demasia. Julgam que o Irã está ganhando tempo, enquanto constrói seu armamento nuclear, a Coréia do Norte está disparando mísseis impunemente e o Hezbolá amplia seu apoio em todo o Oriente Médio. Newt Gingrich, ex-porta-voz da Casa Branca – que também aspira a uma candidatura presidencial, critica o apazigualmento: “Aceitamos a fantasia diplomático-legal de negociar, enquanto a Coréia do Norte fabrica bombas e mísseis, e negociar, enquanto o Irã fabrica bombas e mísseis. Será que o próximo passo da Condi é dançar com Kim Jong il?” pergunta ele, referindo-se à secretária de Estado Condoleezza Rice e ao líder norte-coreano.


 


Mesmo que não consigam manter os EUA no Iraque, tais defensores estão preparando terreno para atirar o fracasso de suas próprias políticas nas costas de seus oponentes e dos “vira-casacas”. Um mito da “punhalada nas costas” semelhante foi lançado para reanimar o conservadorismo militarista depois da guerra do Vietnã.


 


Grandes mudanças podem estar por vir


 


Ainda não está claro até onde irá a crítica. Enquanto os ativistas do www.anti-war.com promovem uma profunda oposição ao militarismo e imperialismo americano, que seria partilhada por muitos à esquerda, alguns dos críticos conservadores só passaram a ser contra a guerra porque ela não está dando certo. Eles apoiariam guerras futuras com mais chances de sucesso.


 


De qualquer modo, a erosão do apoio conservador à guerra pode ter um impacto significativo na arena política. A estratégia eleitoral republicana exige, em última instância, pessoas que votem contra seus próprios interesses -– contra programas econômicos e sociais que os beneficiariam. Esse truque exige persuadir as pessoas de que sua política imperial podem trazer segurança num mundo perigoso. Quando a própria direita para de engolir esse argumento, grandes mudanças podem estar por vir.


 


 


Joe Scarborough, um ex-parlamentar republicano que agora tem um renomado programa de televisão na MSNBC, recentemente apresentou um painel de debate lançando a seguinte questão: “A saúde mental de George W. Bush está prejudicando a credibilidade dos Estados Unidos internamente e no exterior”. Na tela, desfilava a legenda “Bush é um idiota”? Scarborough explicou que muitos norte-americanos duvidam da capacidade de seu presidente, em particular no caso do Iraque. Este deputado republicano apoiou a guerra. Também ele pensa que é hora de econtrar um jeito de acabar com ela. 


 



[1] New York Times, 8 de setembro de 2002.
 
[2] The American Conservative, editorial, Arlington (Virgínia), 22 de setembro de 2002.
 
[3] Os americanos chamam batatinhas fritas de “french fries” (fritas à francesa). Walter Jones rebatizou-as de “freedom fries”. (N.T.).
 
 [4] Cidade do Iraque (N.E.).
 
 [5] Robert Dreyfuss, “The Three Conversions of Walter B. Jones”, Mother Jones, janeiro/fevereiro de 2006.
 
 [6] “Former Bush envoy, Centcom chief calls Iraq war a blunder”, MSNBC, 5/25/04.
 
 [7] Ler Anatol Lieven, “Fraqueza, declínio e… guerra?”,Le Monde Diplomatique-Brasil, junho de 2006.
 
 [8] Rocco, Rio de Janeiro, 1992
 
 [9] Francis Fukuyama, “After Neoconservatism”, New York Times magazine, 19/02/06. Ler também Hubert Védrine, “Fukuyama, neoconservador arrependido?”, Le Monde Diplomatique-Brasil, setembro de 2006.
 
 [10] Declaração de 26/02/06.
 
 [11] Peter Baker, “Pundits renounce the President: Among Conservative Voices, Discord”, Washington Post, 20/08/06.
 
 [12] “The conservative crack-up”, The National Catholic Reporter, Kansas City, 1o. de setembro de 2006.
 
 [13] Poder Crescente: O relatório constitucional de George W. Bush (N.T.).
 
 [14] E.J. Dione, “Slowly Sidling to Iraq’s Exit”, Washington Post, 29/08/06. Conferir também “Un allié du président Bush mord la poussière”.
 
 [15] No programa Fox News Sunday, 20 de agosto de 2006.