Crescimento do PIB: um choque de realidade

Para reduzir a distância social, o país precisa crescer mais que 4%. E por um longo período. Somente dessa maneira será possível aumentar a renda per capita de forma a aproximar-se dos padrões, digamos, civilizados.

Por Osvaldo Bertolino


 


Uma das teclas favoritas do candidato à Presidência da República de direita, Geraldo Alckmin, é a do crescimento econômico. Essa é mais uma questão que tem servido a manipulações de toda ordem. E o noticiário econômico, como sempre, colabora para alimentar as falsidades. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a divulgação, pela consultoria Austin Rating, de um ranking de crescimento econômico abrangendo 19 países latino-americanos. O veredito é implacável: pelo segundo ano seguido, o Produto Interno Bruto (PIB) — a soma das riquezas produzidas por um país — do Brasil só deve crescer mais que o do Haiti.


 


Segundo a consultoria, o estudo está baseado em dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e do Banco Central (BC). A Austin afirma que o Brasil vai empatar com o Equador (3%) e ficará atrás de países como Paraguai (3,5%), El Salvador (3,5%), Costa Rica (3,7%) e a Bolívia (4,1%) — de Evo Morales, ressalta o noticiário —, num impressionante exercício de adivinhação. Na realidade, os brasileiros, se todos tivessem acesso a informações básicas sobre o mundo financeiro, já deveriam estar acostumados a esse tipo de investida — que não é novo, mas que já causou prejuízos gigantescos e irrecuperáveis aos menos avisados.


 


A ambição desmedida move os especuladores na manipulação de qualquer dado que possa gerar lucros para seus empreendimentos, mesmo à custa do prejuízo e até da ruína de inocentes ou de mal informados. Infelizmente, pelo que vemos, os que não têm acesso ao mercado financeiro, e por isso estão alijados dos principais centros das decisões, é que são as vítimas preferenciais desse tipo de estratégia. Trata-se de antiga prática política da direita. É preciso lembrar que um boato, muitas vezes divulgado, adquire a força e o status de verdade. Não é necessário recuar demasiado no tempo. Há pouco mais de meio século era da maior importância para o nacional-socialismo alemão a figura de Joseph Goebbels, o homem da propaganda de Hitler, para esse fim.


 


Rumo da economia


 


É isso que ora enfrentamos no Brasil, a um custo imprevisível para a imensa maioria da sociedade. Infelizmente, ao dar guarida a notícias evidentemente manipuladas — que hoje têm a força da ditadura das comunicações e a velocidade da luz — o debate eleitoral pode levar gente demais a dar razão aos falsos profetas e às pitonisas que se abrigam por trás de sua divulgação ou da publicação de suas “análises”. Nos últimos anos, vimos insistentemente essas práticas no Brasil. Nesta era de súbitos ataques contra moedas, sejam elas a libra esterlina ou o zloty polonês, feitos por detentores ou gestores de imensas massas de capital, no Brasil esse trabalho tem dispensado a presença dos especuladores.


 


Os ataques aqui são feitos por prelados da mídia, economistas de direita e adivinhos profissionais que vendem seus serviços como consultores. Um exemplo disso é a consulta semanal realizada pelo BC junto ao mercado financeiro e divulgada sob o nome Boletim Focus. Os “analistas” consultados palpitam sobre crescimento, inflação, agronegócio, investimentos e tudo o mais que interessa ao círculo que na prática determina o rumo da economia brasileira. Por tudo isso, a ciranda financeira, que deveria tornar-se menos atraente em confronto com os investimentos em ativos reais e na produção, mantém o seu magnetismo.


 


O crescimento brasileiro, de fato, deve ficar abaixo de 4%. ''Eu confirmo, a economia neste momento está aquecida e deverá continuar aquecida até o final do ano. Agora, que vai completar os 4%, por causa daquele desaquecimento do primeiro semestre, não sei dizer'', disse recentemente o ministro da Fazenda, Guido Mantega. ''Pode ser 3,5% ou 4%, o importante é que a economia está aquecida'', afirmou Mantega. O ministro lembrou dados de emprego, comércio e varejo que sinalizam uma expansão da economia superior a 4% no segundo semestre.



 


Renda per capita



 


Ele também afirmou que um segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva seria mais desenvolvimentista. ''No segundo mandato, o desenvolvimentismo vai ser mais claro. Ele já existe, é um engano achar que não é um governo desenvolvimentista. Já conseguimos o crescimento com criação de emprego e distribuição de renda. Isso é desenvolvimentismo'', disse. ''A prioridade do segundo mandato é o crescimento vigoroso da economia, a geração de empregos e o combate à desigualdade social'', ressaltou. No fundo, esse é o debate que realmente interessa.


 


Crescer 3% ou 4% é muito ou pouco? Dá para crescer mais? Segundo Marcio Pochmann, professor do Instituto de Economia da Unicamp, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, para ''salvar a década'' e o Brasil crescer entre 5% e 6% ao ano, o próximo presidente terá que reduzir os juros. Ele criticou, com razão, os programas de governo dos dois candidatos a presidente por não terem apresentado propostas concretas à recuperação da capacidade de investimento do Estado e a melhora do gasto público. Um crescimento dessa ordem seria o ideal, mas não se deve esquecer algumas particularidades brasileiras.


 


O PIB brasileiro soma algo próximo de 1 trilhão de dólares. Poucos países no mundo superam ou igualam essa cifra. Economias desse tamanho não costumam crescer a taxas acima de 5% ao ano. Mas o Brasil pode estar entrando nesse caminho. Vamos por partes. No contexto de uma retomada depois de um severo “ajuste” neoliberal, um desempenho como o atual pode ser considerado uma vitória. Não é, portanto, uma taxa medíocre. Mas ela está longe de ser suficiente. Para reduzir a pobreza, elevando a renda per capita, o PIB precisa crescer mais. E 3% ou 4% é muito pouco, se for objetivo do governo incorporar a mão-de-obra que está entrando anualmente no mercado de trabalho, além de absorver parte dos desempregados.



 


Questão da produtividade



 


Antes de prosseguir, convém fazer algumas ressalvas. Primeira: crescimento não é igual a desenvolvimento. Entre o final dos anos 60 e o início da década de 80, o Brasil cresceu a taxas anuais superiores a 8%. Nem por isso as desigualdades de renda diminuíram na mesma proporção. A Finlândia não cresceu tanto, mas sua população de 5 milhões de habitantes tem uma renda per capita em torno de 20 mil dólares, segundo o Banco Mundial. Sob diversos parâmetros — expectativa de vida, taxa de mortalidade infantil, índices de escolaridade —, os finlandeses têm características de país muito mais desenvolvido que o Brasil.


 


Segunda ressalva: para crescer e desenvolver-se, um país precisa aumentar a sua produtividade. Isso é feito, basicamente, pela incorporação de máquinas mais modernas, pela qualificação da mão-de-obra e pela adoção de formas mais eficientes de produzir. É necessário que a riqueza maior se transforme num aumento da renda para a maioria da sociedade. A boa notícia é que os ganhos recentes de produtividade se transformaram em aumento do salário real e em preços mais baixos para a maioria dos produtos, e não, apenas, em aumento dos lucros.


 


Retomando o fio da meada: para reduzir a distância social, o país precisa crescer mais que 4%. E por um longo período. Somente dessa maneira será possível aumentar a renda per capita de forma a aproximar-se dos padrões, digamos, civilizados. O ritmo do crescimento da economia precisa ser maior, também, para garantir um outro objetivo: a absorção da mão-de-obra que está entrando todos os anos no mercado de trabalho. É nesse ponto que entra a questão da produtividade. Quanto mais ela aumenta, maior tem de ser o crescimento da economia para evitar uma ampliação do desemprego. (O raciocínio é simples: se as empresas fazem mais com menos gente, a economia precisa ganhar maior velocidade para continuar gerando oportunidades de emprego.)


 


Altas dos preços


 


A Cepal divulgou um cálculo ilustrativo. Se o crescimento da produtividade fosse igual a zero, as economias da região precisariam crescer a uma taxa anual de 2,1% até o ano 2015, apenas para evitar um aumento do desemprego. Se a produtividade crescesse no ritmo de 3,7% ao ano (média do período 1950/1973), então o PIB precisaria variar 5,8% ao ano. Como a produtividade brasileira vem crescendo em média 7% anuais, é claro que o crescimento do PIB precisa ser ainda maior, apenas para não criar mais desempregados.


 


E será que economias de quase 1 trilhão de dólares podem se dar a esse luxo? É claro que tamanho faz diferença, mas é preciso aqui fazer uma outra constatação. Países desenvolvidos já possuem usinas de energia, estradas e outras infra-estruturas para atender a suas necessidades. Nesses casos, o crescimento tende a ser naturalmente mais lento. Mas no Brasil ainda há muito o que fazer. O país precisa, desesperadamente, de melhorias infra-estruturais. A Cepal identificou que, ao menos no médio prazo, o crescimento da América Latina pode ser assegurado pelas altas dos preços internacionais das commodities. A região é dona de grandes reservas minerais. Na avaliação da Cepal, os países latino-americanos deveriam aproveitar o momento mais favorável para reforçar sua presença internacional e rever alguns modelos mais frágeis que ainda servem de sustentação econômica. Entre as prioridades estariam reduzir a dependência das exportações de produtos básicos.


 


Assédio institucionalizado


 


O pensamento progressista latino-americano há tempos discute os obstáculos impostos à industrialização do sub-continente. A Cepal foi a referência maior nesse debate, inaugurado pela reflexão inspiradora de Raúl Prebisch sobre os vínculos desiguais entre as economias centrais e as regiões periféricas, e a necessidade de maior coordenação entre os países da América Latina para superar óbices como a deterioração continuada dos termos de nosso intercâmbio com a Europa e os Estados Unidos.  Sabemos que no Brasil esse desafio não foi enfrentado. O país levou a cabo um extenso programa de substituição de importações, modernizou seu parque industrial, mas manteve largos segmentos inteiramente à margem do processo produtivo, sem acesso às benesses do crescimento.


 


Sem um governo com visão social, o Estado esteve ausente não apenas na tarefa de transferir renda mas também na de habilitar a população a participar da dinâmica produtiva. A máquina pública expandiu-se, mas para contemplar interesses elitistas, sem atenção aos reclamos da maioria da população. Na “era neoliberal”, o assédio institucionalizado de setores privilegiados aos canais de decisão foi explícito. Acentuou-se o vício histórico do patrimonialismo, em que o público se vê refém do privado. Mas essa situação começou a mudar com o governo Lula. Com o avanço da cidadania, a sociedade também avançou. Multiplicaram-se as instâncias de representação. Os movimentos populares abriram espaços cada vez mais amplos para o debate público, atuando como uma verdadeira ágora desses novos tempos.


 


Velhos moralismos


 


O resultado foi o reforço do controle social. O Estado passou a ser mais e mais bem cobrado no desempenho de suas tarefas. Os nichos historicamente privilegiados se viram sob o crivo de segmentos sociais mais vigilantes, que não mais toleram a privatização do Erário. O governo federal tem feito o possível para democratizar o Estado, para que ele se torne mais transparente e responsável. Iniciou a concertação do poder público com os movimentos sociais. A descentralização administrativa e orçamentária também concorreu para aproximar a população do gestor público. Para não falar da nova cultura que se vai consolidando no que diz respeito à utilização dos recursos do Estado.


 


O certo é que o Estado está recuperando a capacidade de cumprir seu papel. Ou melhor: o Estado está se credenciando a cumprir finalmente a meta de universalização dos serviços públicos. Pode-se  dizer que estamos passando de um Estado do mal-estar social para a possibilidade de se ter um Estado virtuoso, que assegure a todos os brasileiros condições satisfatórias de vida. Os meios são as diversas políticas públicas que começam a ganhar corpo. O método é o da parceria entre o Estado e a sociedade, entre o gestor público e o cidadão. Com tudo isso acontecendo, as margens para a atuação política da direta se resumem aos velhos moralismos hipócritas herdados do colonialismo.