Mandioqueiros, trigueiros e comunistas


Lobby do trigo perpetua, no Brasil, a dualidade histórica do alimento popular e das elites


 


Por Carlos Alberto Dória


 



Vivemos a era das cotas. Num país de negros e mulatos mais ou menos branqueados, com uma elite envergonhadamente branca, se discute como, afinal, uma certa parcela dos de baixo pode vir a subir. Parece que o caminho mais curto é levá-los à universidade. E é nas cotas também que o deputado Aldo Rebelo pegou uma carona para propor projeto de lei obrigando que 10% da farinha utilizada no “pãozinho francês” seja a fécula de mandioca. Por esse caminho, argumenta o deputado comunista, teríamos a vantagem do aumento da renda dos pequenos agricultores. Não se chega à universidade, mas vive-se um pouquinho melhor. Grita geral, ou quase.


 


Diz a mitologia da Revolução Francesa que, às massas esfomeadas que clamavam por pão, Maria Antonieta respondeu que comessem brioches. Deu em guilhotina. Sempre que se discute pão parece que há pescoços postos a prêmio.


 


Mas qualquer expert em pâtisserie ou panificação sabe que o uso de duas farinhas combinadas pode dar muito bom resultado, e o próprio leitor pode fazer o seu teste, adaptando uma boa receita de brioche 1 -talvez o mais “nobre” dos pães, como Maria Antonieta bem sabia-, incorporando 10% de amido de mandioca. Sabe-se também que, além do amido, a qualidade do pão depende do fermento e dos demais elementos, além do modo de fazê-lo.


 


Mas persiste até hoje entre nós o dualismo do trigo e da mandioca, como já se manifestava no Brasil quinhentista, reproduzindo padrões alimentares europeus que se bifurcavam no “pão branco”, exclusivamente de trigo, e no “pão preto”, de centeio, cevada ou farinha de trigo de baixa qualidade. Mais tarde, pela carência de cereais na Europa, ao pão preto incorporou-se a farinha de milho americano, sendo chamada, em Portugal, farinha “meada” (trigo e milho), “terçada” (trigo, milho e centeio) ou, ainda, “quartada” (milho, trigo, centeio e cevada).


 


O que aconteceu na colônia foi que o pão popular reinol abriu espaço à mandioca. Era postura obrigatória que à escravaria se concedesse o “direito” de plantar umas tantas covas de mandioca, nos finais de semana, pois assim impedia-se que senhores de engenho, que não forneciam o necessário alimento aos seus escravos, os obrigasse a roubar das plantações da vizinhança para a própria subsistência, propagando os “daninhos ladrões formigueiros” 2. Aos índios, por sua vez, a farinha de trigo parecia indigesta e imprópria para o consumo.


 


Foi assim que o milho e a mandioca se firmaram como alimentação de animais, negros e índios, ficando a farinha de trigo de qualidade restrita às elites brancas. E, ao contrário do que a historiografia consagrou, ela já estava presente ao lado da prosperidade açucareira no século 16. Anchieta observava que “alguns ricos comem pão de farinha de trigo de Portugal, máxime em Pernambuco e Bahia, e de Portugal também lhes vêm vinho, azeite, vinagre, azeitonas, queijo, conserva e outras coisas de comer”. Assim, ”a concepção simplista de uma adesão universal à farinha de mandioca por parte do povoador lusitano de 500 deriva de má leitura, dos primeiros cronistas” 3.


 


Por isso, quando o deputado Aldo Rebelo propõe o amálgama de duas farinhas, seguindo a diretriz comunista de que haveria uma ampla distribuição de renda, visto que a mandioca é produto típico da pequena propriedade familiar, mal sabe que está mexendo também numa poderosa matriz ideológica de exclusão, enraizada no gosto alimentar.


 


Mas as idéias não são coisas etéreas. Enraízam-se em interesses. O senhor Lawrence Pih, empresário pioneiro na adesão ao PT em tempos mais heróicos, ameaçou: se a lei passar, o seu moinho, o Pacífico (sic), faria na Argentina, e não aqui, um investimento de R$ 200 milhões! Assim, finalmente, depois de marchas e contra-marchas, os líderes da cadeia produtiva do trigo e o setor mandioqueiro chegaram a um acordo, anulando a obrigatoriedade da adição de mandioca à farinha de trigo. O lobby trigueiro venceu, mais uma vez, o partido dos mandioqueiros.


 


Antonio Carlos Henriques, da Associação Brasileira das Indústrias de Panificação, afirma que a obrigatoriedade da mandioca macularia o tradicional pãozinho francês. Sem a imposição, ao contrário, diz que a panificação poderá criar agora, livremente, o “pão brasileiro”, produzido com amido de mandioca no lugar da farinha de trigo.


 


Mas as coisas não são assim, exclusivamente “culturais”. A Argentina, como se sabe, retirou o subsídio para exportação da farinha de trigo com o objetivo de ampliar a oferta interna e conter a inflação e pode, ainda, estabelecer cotas de exportação. Tais medidas beneficiam os moinhos brasileiros, que se queixavam da competição da farinha da Argentina, ainda que agora sejam obrigados a buscar trigo mais caro em outros países, como o Canadá e a Rússia. Para os moinhos, a iniciativa de Aldo Rebelo é um verdadeiro estraga-prazeres. E o recuo diante do projeto de lei 4.679 corresponde à segunda derrota da iniciativa de Aldo Rebelo, que já havia tentado aprovar algo semelhante em 2001.


 


Entende-se. Em 2006 estima-se que o Brasil importará 60% dos 10 milhões de toneladas de trigo que consome, ao custo de US$ 800 milhões. Não é pouco. O projeto de Aldo Rabelo distribuiria parte desse dinheiro aos produtores de mandioca do país todo, o que não acontecerá.


 


De fato, é uma perda expressiva da perspectiva social. A mandioca é toda ela produzida em pequenas propriedades. Mas também o trigo no Brasil advém da pequena propriedade, sendo que apenas 4,2% vêm de grandes cultivos. A diferença é que a mandioca se cultiva no Norte e Nordeste, o trigo no Sul. Além disso, o trigo é para o comércio, enquanto a mandioca está atrelada à subsistência, e o seu uso na panificação representaria uma grande expansão da sua produção.


 


O “não” à mandioca, liderado pelos trigueiros, baseia-se em argumentos quase sempre falsos. O primeiro deles é a qualidade do pão, coisa que o leitor pode derrubar em sua própria cozinha. O segundo, parcialmente verdadeiro, é nutricional. A mandioca, de fato, possui menor teor de proteína: 2,2 g contra 12 g do trigo, em cada 100 gramas de pão. Mas o pãozinho francês não é, nem real nem idealmente, a principal fonte de proteína do brasileiro.


 


Em terceiro lugar, os trigueiros não estão preocupados com a qualidade do pão. Prova é que o bromato de potássio, elemento cancerígeno que simula a maciez e o aspecto crocante da casca do pão, apesar de proibido, é amplamente utilizado na fabricação do pãozinho francês, sendo que tanto o Sindicato da Indústria de Panificação e Confeitaria quanto as autoridades sanitárias fazem vistas grossas para o delito.


 


O pior argumento, porém, é o de que o mercado deve escolher o pão que deseja, e o pão de trigo puro é o melhor produto, não se justificando uma reserva de mercado para a fécula de mandioca. Trata-se de um sofisma, pois o pãozinho francês não é uma escolha livre. Ele é regulado por leis e, há cerca de um ano, o próprio governo flexibilizou o conceito de “pãozinho francês” ao admitir, para baixar o seu preço, que ele possa ser vendido por quilo, e não mais por unidade padrão. Antes, era obrigatório que o pãozinho francês possuísse 50 gramas; agora não, segundo norma do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial.


 


Então, esse pão proletário, de “cesta básica”, atende mais ao custo da dieta popular, à inflação, do que a um suposto sabor eletivo dos consumidores. Igualmente falso é dizer que, para o uso da mandioca, é preciso que os chefes criem o “pãozinho brasileiro” que caia no gosto popular. O “gosto popular” já estava testado antes da generalização do uso da farinha de trigo.


 


O nosso pão branco, chamado “pãozinho francês”, adquiriu esse nome não por se decalcar em qualquer receita francesa, mas por imitação elitista de final do século 19, quando o pão branco de casca dourada -de aparência similar à baguette francesa- parecia indispensável para constituir, aqui, modos civilizados de comer. Não havia, contudo, padronização de farinhas.


 


A farinha de trigo puro, com as especificações hoje existentes, é produto que se desenvolveu no Brasil apenas após a Segunda Grande Guerra Mundial, amplamente apoiada nos programas norte-americanos de ajuda aos países da América Latina e de acordo com os interesses dos grandes moinhos de trigo de capital norte-americano.


 


O pãozinho francês é, ao mesmo tempo, expressão do avanço da industrialização das matérias-primas da panificação e signo da dependência. Não tanto do paladar, mas do big business. O trigo, pouco a pouco, e pelos subsídios que recebia, foi expulsando da dieta matinal brasileira tanto os produtos de farinha de milho quanto os de farinha de mandioca.


 


Esse processo de branqueamento social do pão culminou no monopólio dos grandes moinhos. Hoje são raros os padeiros que façam o pão como expressão de uma arte ancestral, como nas velhas padarias. O pão é fruto de uma mistura preparada pelos moinhos e que já chega pronta nas padarias, onde se acrescenta apenas água e se assa o dito “pão francês”. O volume de produção nas padarias também diminuiu, e a profissão de padeiro praticamente desapareceu quando os supermercados avançaram sobre o comércio do pão. Assim, as velhas padarias, agora mais com cara de lanchonetes, desaprenderam a fazer o pão. Delas não sairá, portanto, o “pãozinho brasileiro”, segundo o nacionalismo oportunista da Associação Brasileira das Indústrias de Panificação.


 


Ainda que o “pão social”, com fécula de mandioca, tenha sido momentaneamente enterrado, fica a questão da nacionalização dos amidos e, sem dúvida, o seu preço e o gosto serão a sua alavanca.


 


O pão de queijo, que aos poucos vai conquistando mercado, mostra que o gosto popular não é tão ortodoxo quando prefeririam os panificadores trigueiros. Além do queijo, em sua composição entra justamente a fécula de mandioca.


 


Por outro lado, a Embrapa tem mais de 200 variedades de mandioca já identificadas. Muitas com sabores bem particulares. Mal se conhecem os mistérios gustativos da mandioca para dizer que ela não serve ao pão nosso de cada dia.


 


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*Carlos Alberto Dória é sociólogo, doutorando em sociologia no IFCH-Unicamp e autor de “Ensaios Enveredados”, “Bordado da Fama” e “Os Federais da Cultura”, entre outros livros. Acaba de publicar “Estrelas no Céu da Boca – Escritos Sobre Culinária e Gastronomia” (ed. Senac).