Messianismo republicano conspirou contra Obrador no México

Ameaçada, a direita mexicana decidiu impedir a vitória de López Obrador “de qualquer jeito”. Para isso aderiu ao “messianismo republicano” que nada ou muito pouco tem a ver com a democracia. A vitória do candidato do PRD era inaceitável para os Estados Un

Às vésperas das eleições presidenciais de 2 de julho passado, Enrique Krauze, autor de alguns livros fundamentais sobre a história contemporânea do México, enumerava a este repórter alguns dos “perigos” que Andrés Manuel López Obrador representava para a ainda inconclusa “transição para a democracia” que, segundo esse ponto de vista, tinha começado em 2000 com a chegada ao poder de Vicente Fox Quesada, correligionário de Felipe Calderón Hinojosa, a quem a Justiça acaba de declarar presidente, apesar da onda de denúncias e da mobilização de milhões de opositores.



O autor de “La Presidencia Imperial”, ensaio sobre a onipresença do Partido Revolucionário Institucional, que governou o país durante 72 anos sem admitir qualquer oposição, acusa López Obrador de pertencer à “Sagrada Família” “Priista”, porque este militou nele quando jovem, mas que deixou em 1988 para formar o Partido da Revolução Democrática, convertendo-se num tenaz opositor do regime de partido único mantido pelo PRI.



Na verdade o PRI, que, através do Presidente Carlos Salinas de Gortari, impulsionou o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, mantém uma aliança de interesses e de programa com o PAN de Fox/Calderón, para garantir “a continuidade na mudança”. Foi graças a esse entendimento, mal e mal dissimulado, entre o PRI e o PAN, que os nada independentes membros da Justiça Eleitoral impediram a recontagem universal das urnas. Essa era a exigência do PRD, que na contagem oficial foi derrotado por 250 mil num total de 42 milhões de votos.



Sem a reabertura completa das urnas, o Tribunal Eleitoral proclamou na semana passada o conservador Calderón Hionojosa o presidente eleito do México, o que abre uma crise política de prognóstico incerto.



“Ameaça populista”
O argumento do prof. Enrique Krauze não se diferencia do de outros formadores de opinião na América Latina, como, por exemplo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ou o colunista diário do Miami Herald, Andrés Hoppenheimer, sobre a “ameaça populista” que cresce na região, desde que Hugo Chávez e Evo Morales chegaram ao poder na Venezuela e na Bolívia, respectivamente.



López Obrador, diz Krauze em relação ao México, representaria um desequilíbrio na equação de poder, pondo água no moinho de Chávez, compartilhando com este a preferência por um modelo político que inclua “a consulta direta” à sociedade, “desprezando” as instituições da república.



Krauze, um intelectual que é referência para a inteligência conservadora e para a mídia hegemônica, se manifesta favorável a uma “democracia enxuta”, o que significa um elogio da democracia formal, cujo esgotamento está na raiz da crise de representação me participação que sufoca toda o México e toda a América Latina.



Krauze chega ao ponto de dizer que Obrador, que desde 3 de julho lidera um movimento de resistência civil contra o “esvaziamento das instituições”, não passa de um “Messias Tropical”, com traços “provincianos e populistas”, um inimigo do “progresso e da liberdade” que ele, Krauze, deseja para a sua pátria.



Além disso, diz Krauze, fazendo coro com Hoppenheimer do Miami Herald, Lopez Obrador cultiva uma perigosa veleidade anti-americana, o que seria um “retrocesso” em relação às “conquistas da era Fox, como a da completa independência do Banco Central em relação a contaminações políticas”.



Derrota a qualquer custo
Ao longo da nossa entrevista em julho passado, Krauze, membro da Academia Nacional de História do México, mostrou uma erudição que inibia qualquer refutação por parte do repórter. Mas com o passar do tempo, uma nova leitura da entrevista permitiu descobrir no subtexto de suas respostas algumas chaves de leitura para o atual quadro mexicano.



Implicitamente, as afirmações de Krauze mostram que o bloco dominante mexicano – PAN, PRI, a rede televisiva e as câmaras patronais, mais a Igreja Católica – tinham decidido impedir o triunfo de López Obrador “de qualquer jeito” – “a como sea”, como se diz aqui no México.



Nesta cruzada para impor à força a democracia formal, as elites pareceram atuar tomadas por um “messianismo republicano”. Além disso havia implicações geopolíticas que tornavam “inaceitável” uma vitória de Obrador.



Para os Estados Unidos, o México é o país mais importante dessa região. Prova disso foi a incontinência verbal do presidente George Bush, que cinco dias depois das eleições cumprimentou Calderón por sua vitória, sendo logo corrigido por seu porta-voz, que lembrou estar então a eleição sob pendência judicial.



A pressa de Bush está em harmonia com as preocupações estratégicas sobre as ameaças que pairam sobre as democracias ao sul do Rio Bravo, e que já foram classificadas pelo General James Hill, ex- chefe do Comando Sul daquele país. No dia 24 de março de 2004 o general Hill afirmou, perante o Senado dos Estados Unidos, que o Hemisfério está diante de “uma ameaça emergente melhor descrita como um populismo radical, no qual se abatia o processo democrático ao diminuir, ao invés de aumentar os direitos individuais.



E acrescentou que “alguns dirigentes” latino-americanos “exploram frustrações profundas com o fracasso dos processos democráticos em tornar disponíveis bens e serviços esperados. Ao explorar essas frustrações causadas pela desigualdade social e econômica, esses dirigentes conseguem ao mesmo tempo reforçar suas posições radicais e alimentar o sentimento anti-americano.



Escudeiro perfeito
Aos olhos da Casa Branca e de seus aliados latino-americanos, Calderón é o melhor antídoto contra essa avalancha populista. Temendo concepções religiosas muito rígidas, Calderón também seria o escudeiro perfeito para Washington no que se refere à transição cubana aberta pelo estado de saúde delicado de Fidel Castro.



Calderón é bem visto pela comunidade cubana de Miami, e pelo maior líder anti-castrista no mundo ibero-americano, o presidente do Partido Popular espanhol, José María Aznar. Este, como Jorge Bornhausen e César Maia animaram um debate no ano passado, no Rio de Janeiro, sobre a “transição democrática” na ilha, um eufemismo que mal dissimula o lobby pró-Miami.



Além de visitar o Rio, no ano passado Aznar esteve no México, onde declarou seu apoio a Calderón, em cuja campanha estiveram presentes quadros políticos do PP espanhol. Como Bush, Aznar cultiva uma espécie de “messianismo republicano”, que nada ou muito pouco tem a ver com a democracia. Em abril de 2002 ambos foram os dois únicos presidentes que reconheceram o golpe de estado liderado, pelo empresário Pedro Carmona contra o presidente Hugo Chávez.