Israel pagará caro pela derrota no Líbano, diz professor

Por semanas, Israel bombardeou moradias, pontes, refúgios, retirantes, indústrias, cemitérios, esperando que a destruição terrível levantasse a população contra o Hezbolá, ensejando a sua débâcle política e militar. O terrorismo de Estado praticado no

Israel pagará caro, não pelos crimes praticados no Líbano, mas por ter sido inapelavelmente derrotado, nos limites das possibilidades reais do confronto. Governo e exército israelense erraram tudo, do começo ao fim. Para tentar destruir o Hamas, o Hezbolá e o governo libanês, apoiaram-se na prisão de dois soldados, enquanto mantêm oito mil reféns. Tudo para seguir a construção do Grande Israel, sempre na esteira dos interesses do imperialismo anglo-estadunidense no Oriente Médio.


 


O projeto de vergar a vontade de resistência com um longo período de bombardeio maciço, recurso utilizado vitoriosamente no Iraque, em 1991, pelos anglo-estadunidenses, e na Iugoslávia, em 1999, pelo USA e OTAN, tropeçou na capacidade da milícia do Hezbolá de responder ao tiro grosso israelense com quatro mil foguetes que, apesar da mira errática e do fraco poder de destruição, desorganizaram o norte urbano e rural de Israel, golpeando econômica e psicologicamente uma população educada na idéia de que na guerra sofre e morre apenas a população civil árabe.


 


Com os libaneses unidos em torno do Hezbolá, o Tsahal — exército israelense — foi obrigado a ingressar no sul do Líbano, de onde fora escorraçado, em 2000, pela guerra de usura dos milicianos do Partido de Deus. A promessa de rápida e fulgurante campanha, semelhante ao quase passeio até Beirute, de 1982, que paradoxalmente deu origem ao Partido de Deus, revelou-se uma enorme bravata e transformou-se em uma seqüência de amargas surpresas.


 


As colunas dos poderosos blindados Merkavas superaram prepotentes as fronteiras libanesas para repetir as proezas realizadas no passado nos campos abertos do Egito, Síria, Jordânia. Esperavam esmigalhar facilmente, como nas favelas palestinas, a resistência de irregulares armados com fuzis de assalto, granadas de mão e, não raro, pedras recolhidas ao chão, na eterna luta desesperada do David árabe maltrapilho contra o hiper-armado Golias israelense, sempre vitorioso.


 


Minha terra, minha gente, minha casa


 


As escarpas do Líbano meridional servem pouco ao avanço de blindados e muito à resistência de combatentes que defendem seus quintais. O Tsahal não esperava que os poucos milhares de milicianos possuíssem modernas armas. Comumente, israelenses foram obrigadas a lutar, corpo a corpo, em torno de tanques incendiados. O Hezbolá anunciou a destruição de 160 blindados. Apenas após a trégua, mais sessenta carros foram arrastados, destruídos, de volta para Israel. Cada Merkava custa em torno de doze milhões de reais.


 


Os tiros certos dos milicianos destruíram também as expectativas de exportações dos invulneráveis blindados Merkava, o orgulho da indústria bélica israelense, construídos à sombra dos anglo-estadunidenses. Os grandes heróis tecnológicos dos combates no sul do Líbano foram indiscutivelmente as armas individuais anti-tanques russas, algumas delas construídas sob licença pela Síria e o Irã, com destaque para a bazuca anti-tanque RPG-29 Vampiro. Em verdade, os combates no sul do Líbano parecem registrar, no plano tático-militar, verdadeiro redimensionamento da importância dos pesados e caros blindados, à disposição apenas dos grandes Estados, diante de baratas armas unipessoais anti-blindados, de acesso bastante mais fácil.


 


As forças armadas israelenses beberam todo o fel amargo na taça da derrota. Recuaram, diversas vezes, obrigadas a abandonar posições próximas à fronteira. Em 31 de julho, moderna fragata foi destruída no litoral sul do Líbano e helicópteros caíram abatidos e danificados. A inesperada resistência registrou o treinamento, a disposição e a flexibilidade da milícia libanesa. Registrou, igualmente, que, tirando as lições da invasão e da resistência no Iraque, os armamentos sírios e iranianos adaptam-se para guerra de usura, abandonando a ilusão de afrontar diretamente exércitos de alta tecnologia.


 


Insensíveis ao sofrimento libanês, em diversos graus, os governos dos EUA, Inglaterra, Alemanha e França esforçaram-se para que o confronto terminasse com a destruição do Hezbolá. Diversas vezes, Condoleezza Rice, secretária de Estado estadunidense, vetou o fim dos combates, já que não estariam ainda dadas as condições para “paz permanente”, ou seja, a vitória de Israel. Com os sucessivos golpes da resistência libanesa, mudou de idéia e apressou o fim dos combates para que o súcubo israelense não fosse ainda mais esbordoado e a guerra não desandasse ainda mais.


 


A invasão geral do Líbano, anunciada em 10 de agosto, por quarenta mil soldados estacionados na fronteira, terminou paradoxalmente exercendo forte pressão sobre o governo de Israel, para que aceitasse o que jurara inaceitável. Alguns dias mais de conflito, o exército israelense teria que superar a fronteira e travar guerra certamente desastrosa, com já talvez quase vinte por cento de seus blindados danificados. Após ter arrasado as cidades e as infra-estruturas libanesas; assassinado mais de mil civis, em grande parte crianças; jurado destruir para sempre o Hezbolá e sua milícia; prometer não retornar sem os dois soldados aprisionados, o governo israelense aceitou trégua, em 14 de agosto, que consagrou o Hezbolá como o pequeno David que venceu finalmente o Golias brutamonte, comprovando, perigosamente, para toda a região, que a resistência e a vitória são, sim, possíveis.


 


Guerra, imperialismo e eleições


 


A vitória do Hezbolá fortaleceu a Síria, obrigada a retirar-se do Líbano, em 2005, para que Israel pudesse ali fazer o que quisesse, quando quisesse, como realmente o fez. Sobretudo o Irã fortaleceu-se com a derrota de Israel. No sul do Líbano, ficou claro, em pequeno, o que poderá ocorrer, em grande, não apenas no Iraque, no caso de ataque às instalações nucleares do Irã, como querem Bush, Blair e Olmert. Para muitos o ataque ao Líbano foi o primeiro combate da guerra do Irã. A pesada derrota israelense e a enorme dificuldade em que se encontra o governo Olmert dificultam ataque imediato, antes das eleições estadunidenses para a Câmara e o Senado, em novembro deste ano, como desejaria Bush.


 


Os anglo-estadunidenses obtiveram respiro no Iraque incentivando banho de sangue sectário entre xiita e sunitas. A vitória dos xiitas do Hezbolá, no Líbano, em apoio aos sunitas do Hamas, da Palestina, pressiona pela unificação da resistência no Iraque. Hassan Nasrallah, 46, o midiático dirigente do Hezbolá, prosseguirá desancando com ainda maior força a luta sectária do al-Qaeda, organização que apresenta como criatura estadunidense. A derrota israelense fortalece, igualmente, a resistência afegã, que vem obtendo, em 2006, apoio entre a população e vitórias sobre a Otan, a tal ponto que os estadunidenses já falam em substituir Hamid Karzai, presidente afegão democraticamente eleito, o atual bode expiatório do desastre afegão.


 


Com a guerra do sul do Líbano, a posição de Israel degradou-se fortemente. Há consenso mundial sobre a intencionalidade dos ataques à população e instalações civis. As fotos de meninas israelenses escrevendo sobre bombas que estraçalhariam a população libanesa dimensionaram a degradação moral israelense, sob o veneno da política de expansão territorial incessante. Sobretudo, começa a instalar-se entre os senhores do mundo a desconfiança na possibilidade de Israel impor a paz ocidental à região.


 


A guerra perdida envolveu por um mês uma enorme parte da população de Israel, com um número de mortos e feridos, sobretudo de soldados, não desprezível para população de pouco mais de cinco milhões de judeus israelenses. O conflito enfraqueceu o consenso interno e o mito da invencibilidade do Tsahal. Fracassou igualmente a estratégia do militarismo sionista de circunscrever a guerra e a violência aos territórios palestinos, garantindo a paz da vida em aquário aos israelenses.


 


A derrota do militarismo abre, fragilmente, oportunidade histórica a Israel. No Oriente Médio, todas as grandes forças reconhecem seu direito de subsistir, nas fronteiras reconhecidas pela comunidade internacional. Ainda que o programa de nação unitária e laica, reunindo todos os povos da Palestina, seja nesse momento de materialização quase impossível, o rompimento com o expansionismo sionista e o imperialismo anglo-estadunidense permitiria paz jamais sonhada pelos israelenses, impulsionando a democratização dos Estados árabes conservadores.


 


Nesse sentido, as últimas aventuras do governo e do exército israelense, após a trégua, para galvanizar o militarismo no país, denunciadas pela própria ONU, devem ser compreendidas também como ataque à imprescindível maturação de consciência democrática e pacifista do povo israelense.


 


Mário Maestri, 58, é professor do Curso e Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Artigo publicado no site Fazendo Média (http://www.fazendomedia.com/novas/internacional110906.htm)