Assassinatos raciais assombram os EUA

O congresso dos EUA está considerando a criação de unidades especiais para casos antigos no Departamento de Justiça e no FBI, com um orçamento anual de US$ 5 milhões, que se concentrariam exclusivamente em mortes não solucionadas da época dos direitos civ

A carta chegou à mesa de Chip Burrus há cerca de 18 meses.


 


Dois casais negros, George e Mae Dorsey e Roger e Dorothy Malcom, tinham sido brutalmente assassinados por uma turba branca na Geórgia, ela dizia. E os detalhes assustaram o diretor assistente do FBI, mesmo 60 anos após o crime ter sido cometido.


 


“Eu nunca soube deste (caso) e me considero um estudioso do Sul”, disse Burrus, que tinha acabado de assumir o posto de diretor assistente da divisão de investigação criminal do FBI quando a carta chegou. “Você começa a se perguntar, 'Quantos mais destes casos ainda existem?'”


 


Após ordenar que todos os escritórios de campo do FBI revirassem seus arquivos e visitassem pessoas e grupos que pudessem ter informação sobre mortes não solucionadas da época dos direitos civis, Burrus encontrou entre 35 e 50 destes casos por todo o país, predominantemente no Sul.


 


Mas podem estes casos de 40, 50, 60 anos atrás serem solucionados?


 


“Nós não teremos condição de concluir muitos deles, provavelmente”, disse Burrus. Mas “você não pode esquecer. A Justiça não pode simplesmente esquecer. Apesar de terem 50 anos, ainda não significa que não devemos olhar para eles e usarmos as leis possíveis para tentarmos solucioná-los”.


 


O Congresso está considerando a criação de unidades especiais para casos antigos no Departamento de Justiça e no FBI, com um orçamento anual de US$ 5 milhões, que se concentrariam exclusivamente em mortes não solucionadas da época dos direitos civis. Mas o Congresso chegou tarde ao movimento. Autoridades estaduais e federais já estão reabrindo estes casos na Geórgia, Mississippi, Flórida, Alabama e outros Estados.


 


Esta nova urgência em relação aos assassinatos não solucionados de um dos períodos mais violentos dos Estados Unidos foi provocada em parte por uma série de indiciamentos bem-sucedidos, em anos recentes, em casos de assassinato da época dos direitos civis e pelo temor entre as famílias das vítimas e agências de manutenção da lei de que os suspeitos e testemunhas, atualmente septuagenários ou octogenários, possam não viver por muito mais tempo.


 


Para alimentar ainda mais o movimento para solução dos casos antigos se encontra a força crescente de autoridades negras eleitas no Sul, o surgimento de uma nova geração de promotores no Sul dispostos a colocar a era racialmente explosiva para trás e a necessidade das testemunhas e perpetradores idosos de limparem suas consciências antes de sua morte, segundo grupos de direitos civis e a polícia.


 


Por todo o país, 29 assassinatos da época dos direitos civis foram reinvestigados desde 1989, resultando em 27 prisões e 21 condenações, segundo o Southern Poverty Law Center, uma organização sem fins lucrativos em Mongtomery, Alabama, cuja missão é monitorar grupos de ódio e fornecer auxílio legal em casos de direitos civis. Vinte e dois destes casos ocorreram no Sul.


 


O mais recente avanço ocorreu na Flórida em agosto. Após a reabertura pela quarta vez dos assassinatos de Harry e Harriette Moore por bombas incendiárias em 1951, os investigadores do Estado encontraram novas evidências -uma confissão de um suspeito no leito de morte que foi perdida do arquivo de investigação- e acusaram quatro homens brancos pelas mortes no Dia de Natal. Todos os quatro já estavam mortos quando o caso foi encerrado.


 


Em Alabama em 29 de agosto, o procurador-geral Michael Jackson do Condado de Dallas -o primeiro afro-americano a ocupar o cargo no Estado- anunciou que estava iniciando a investigação da morte do agente de direitos civis Jimmy Lee Jackson, em 1965, que foi morto a tiros por um policial estadual. Os investigadores estaduais e o FBI deverão auxiliar no caso.


 


James Bonard Fowler — o policial que atirou em Jackson e reconheceu publicamente seu papel pela primeira vez em 2005, em uma entrevista para a revista do grupo cristão de justiça social Sojourners — disse que foi em defesa própria. Outras testemunhas contestam o fato.


 


“Estes são eventos que ajudam o Sul a lembrar e a encarar a si mesmo. São coisas da quais a maioria dos sulistas brancos não quer acreditar sobre si mesmos”, disse Mark Potok, do Southern Poverty Law Center.


 


Susan Glisson, diretora do Instituto para Reconciliação Racial da Universidade do Mississippi, disse que há um lado negativo na reabertura de antigas feridas nacionais.


 


“As pessoas justificadamente estão preocupas com a possibilidade do levantamento de questões que são dolorosas e controversas poder às vezes retroceder as coisas”, disse Glisson. Mesmo assim, ela disse, isto não deve impedir os investigadores e promotores de reabrirem antigos casos.


 


“No mínimo, o início de uma avaliação honesta do passado, o começar a dizer a verdade, supera a dor que isto causa”, disse Glisson.


 


O único caso na Geórgia na lista do FBI é aquele conhecido como linchamento da Ponte Moore's Ford -as mortes descritas na carta entregue na mesa de Burrus.


 


Em julho de 1946, os Malcoms e Dorseys, que eram parentes, foram levados à Ponte Moore's Ford, às margens do Rio Apalachee no Condado de Walton, colocados um ao lado do outro e baleados centenas de vezes.


 


Dezenas de pessoas podem ter visto ou participado do linchamento, mas ninguém foi preso.


 


As autoridades acreditam que o linchamento foi uma retaliação à briga que Roger Malcom teve com Barney e Bob Hester, que eram brancos, na fazenda de Hester, 10 dias antes dos assassinatos. Barney Hester foi esfaqueado durante a briga e Roger Malcom foi para a cadeia gritando: “Eu não vou sair desta! Eles vão me matar”.


 


Malcom foi solto da cadeia um dia antes do assassinato.


 


Burrus se recusou a discutir a investigação de Moore's Ford a não ser dizer: “Nós estamos em um ponto crucial no momento”.


 


Ele disse que outros casos da Geórgia poderão ser examinados: “Eu acho que há vários que receberão uma segunda análise”.


 


Bobby Howard do Social Circle tem sido o guardião da história do caso Moore's Ford desde 1968, quando o legista local, Dan Young, lhe mostrou as fotos dos corpos das vítimas e lhe deu duas listas — uma dos supostos participantes brancos e uma dos negros que supostamente sabiam a respeito.


 


Howard disse que costumava desconfiar dos investigadores da Geórgia e agentes do FBI interessados em reexaminar as mortes após ignorá-las por 60 anos. Mas com o esforço recém-organizado pelo FBI para concluir tais casos, Howard disse acreditar que um avanço no caso Moore's Ford pode não estar longe.


 


“Eu estou realmente empolgado com isto no momento. Eu nunca me senti assim antes”, ele disse. “Com tudo o que tem acontecido, eu acredito que estão realmente falando sério.”


 


Em uma série de julgamentos desde 1994 -uma série de indiciamentos que o escritor David Halberstam chamou de “muitos pequenos Nurembergs”- as autoridades mandaram para a prisão os homens responsáveis por alguns dos homicídios mais infames daquela era: o atentado a bomba de 1963 contra a Igreja Batista da Rua 16, em Birmingham, Alabama, que matou quatro meninas; o assassinato em 1963 do ativista de direitos civis Medgar Evers, que foi baleado diante de seus filhos; e os assassinatos em 1964 de três defensores de direitos civis que desapareceram perto de Philadelphia, Mississippi, enquanto investigavam o incêndio de uma igreja negra.


 


Vários dos condenados, que eram septuagenários, octogenários e nonagenários, morreram na prisão.


 


A maioria dos casos não solucionados envolve vítimas conhecidas por poucas pessoas além de suas famílias e comunidades, com a exceção da morte de Emmett Till. O adolescente negro de Chicago estava visitando parentes no Mississippi em 1955, quando foi torturado e morto, supostamente por assoviar para uma mulher branca. A mãe do menino realizou um funeral com caixão aberto e reproduziu amplamente a foto do rosto desfigurado de Till para que o mundo visse o que estava acontecendo no Sul.


 


Em 1955, um júri todo branco absolveu dois homens brancos, Roy Bryant e J.W. Milam, no caso. Mas eles posteriormente confessaram o assassinato em uma entrevista para a revista “Look”. Ambos já morreram. O caso ajudou a provocar o movimento dos direitos civis.


 


Promotores federais e o FBI anunciaram em 2004 que reabririam o caso. Em março, eles disseram que não fariam indiciamentos devido aos cinco anos do estatuto de limitações para violações federais de direitos civis terem expirado.


 


Mesmo sem a pressão adicional de uma atenção nacional como no caso de Till, a polícia está descobrindo que casos menos conhecidos podem ser problemáticos para serem reabertos, ainda mais solucionados. As lembranças se perdem com as décadas, as circunstâncias em torno dos antigos casos tornam difícil para as autoridades determinarem se um homicídio de fato ocorreu, ou se ocorreram violações de direitos civis que permitiriam a intervenção do governo federal.


 


Mas o longo tempo entre os crimes e as novas investigações permite que testemunhas antes apavoradas e parentes dos suspeitos se mostrem cada vez mais dispostos a contarem o que sabem.


 


E isto, disse Mark Vukelich, chefe da divisão de direitos civis do FBI, é o maior ativo para os investigadores do que todas as novas tecnologias que aplicam nos casos.


 


“O que funciona a nosso favor é o fato da mudança de atitude”, disse Vukelich. “Eu acho que é um maior aliado do que o aspecto científico.”


 


Fonte: UOL, traduzido da Cox Newspapers