Para cientista político, mídia superestima tensão na Bolívia

Na última semana, a Bolívia viveu dias de protestos da oposição ao governo de Evo Morales, especialmente em quatro dos nove departamentos (correspondente a estados) do país. No centro da disputa, estão os métodos de votação das matérias na Assembléia Cons

Uma imprecisão regimental na lei de convocação – que estabelece uma maioria de dois terços para a aprovação do projeto final – gerou ruidosos atritos. Para o Movimento ao Socialismo (MAS), partido do presidente Morales, o princípio só se aplica para a aprovação definitiva do texto. Nas questões específicas, valeria a norma parlamentar de maioria simples.



O MAS obteve 53% dos votos nas eleições dos constituintes, no início de julho. A oposição busca obstruir os projetos governamentais, alegando que tudo deve ter como pressuposto a maioria qualificada de dois terços. Sem conseguir resolver a pendência no âmbito da Assembléia Constituinte, a oposição busca a pressão das ruas, nos departamentos em que tem maioria. Entre eles, estão os dois mais ricos do país, Santa Cruz e Tájira, nos quais o partido de direita Poder Democrático e Social (Podemos) é hegemônico.



O jornalista e professor de Ciência Política da Universidade Real de La Paz, Roger Cortez, acha que o MAS caiu numa armadilha. “Tentam resolver um problema político na base da aritmética”. Para ele, a Assembléia pode até produzir dois projetos de Constituição. “O poder constituinte real é o povo, que aprovará ou não o texto no referendo convocado para após o fim dos trabalhos”. No último domingo (10), Cortez concedeu a seguinte entrevista à Carta Maior, por telefone.



Após os protestos da oposição, como está a situação na Bolívia?
A situação em La Paz é bastante calma. Mesmo nas regiões onde houve a paralisação – os departamentos de Santa Cruz, Tajira, Beni e Pando – a tensão está se dissipando. Há uma impressão distorcida sobre o que está se passando, potencializada por um forte jogo midiático. A situação ficou séria, mas menos séria do que os meios de comunicação tentaram fazer crer. Da parte das forças oficialistas, penso haver uma falta de clareza sobre a situação, que as levou a cair numa armadilha. Elas entraram no debate sobre as competências da Assembléia Constituinte, se ela era originária ou não, isto é, se ela refundaria as instituições nacionais ou não. O partido do governo, o MAS, não tem essa questão clara. O fato é o seguinte: a Assembléia não elabora uma Constituição, mas um projeto de Constituição. Essa discussão tenta resolver através de palavras um problema político, de correlação de forças. No ponto, a Assembléia Constituinte não é originária e não está acima dos outros poderes e estes não deixaram de funciona. O poder constituinte originário é do povo, no referendo que aprovará ou não a nova Carta, com a participação de todos os bolivianos. Em meio a essa confusão, a direita se aproveita para tomar a ofensiva. Com isso, o MAS se rende à direita.



Qual é o problema regimental?
A confusão do MAS é a seguinte: eles querem que vá se aprovando cada etapa por maioria simples e ao final, o projeto seja aprovado por dois terços. Esta é a armadilha. Eles querem inverter o procedimento parlamentar, em que um projeto geral é aprovado por maioria qualificada e depois seu detalhamento é feito por maioria simples.



Como no Brasil, em que os artigos gerais de nossa Constituição foram aprovados por dois terços e seu detalhamento, na legislação ordinária, deve se dar por maioria simples?
O MAS quer inverter esta lógica. Quer resolver um problema político através de um truque aritmético. A busca de hegemonia do MAS na sociedade boliviana não se fez e não se fará por truques, mas por ganhar o coração das pessoas. E o MAS tem de ter a segurança que seus adversários são minoritários, mas controlam os meios de difusão ideológica.



Mas o que diz a lei convocatória da Assembléia Constituinte?
A regra diz que o projeto será aprovado pela Assembléia por dois terços. Não há um detalhamento sobre como isso será feito. Isso abre espaço para a criação de uma tensão artificial. O lógico é que o material destinado ao referendo seja aprovado por dois terços. Há mesmo a idéia de que a Assembléia aprove dois projetos, um da maioria, outro da minoria e o referendo decidirá o que vale. Não é uma idéia consolidada, mas ela existe. Em termos práticos, seria grave termos dois projetos, mas é uma hipótese possível. No entanto, o problema de fundo não se resolve. É preciso ver que, nas condições em que o MAS chegou ao governo, não dá para se resolver as coisas na base do truque. É possível ao partido conseguir uma maioria, como já vem acontecendo. As lógicas partidárias não são rígidas na Assembléia e ela tem um grau de autonomia relativa, que permite aos constituintes se colocar acima das regras dos partidos.



E como se deu a paralisação de protesto nos quatro departamentos? Há um impulso separatista por trás de tudo isso?
É preciso examinar as quatro regiões onde os protestos ocorreram. Há um departamento mais rico, que é Tajira. Há outro, com uma dinâmica econômica maior, que é Santa Cruz. Mas os outros dois, onde ocorreram distúrbios – Beni e Pando – se resolverem se separar do país, morrem de fome. É importante ver que a paralisação atingiu os setores populares nesses lugares. Não foi uma movimentação apenas das elites. O problema é que elas são hegemônicas em algumas partes. Para mudar isso, a gestão de governo tem de melhorar. Há ainda um baixo investimento público e, por inexperiência, o MAS não consegue resolver questões básicas, como o desemprego, apesar de ter obtido amplo apoio popular com a nacionalização das riquezas do subsolo. Parece que a agremiação começa a perceber esses problemas e a tentar resolvê-los. A oposição tenta reverter a derrota que sofreu nas urnas. Quando questiona a legitimidade do governo, aproxima-se do comportamento da direita venezuelana.



Nesses últimos dias houve também uma mudança da cúpula da empresa de petróleo estatal, a Yacimientos Petrolíferos Federales Bolivianos (YPBF). Em que medida esse fato se conecta com a crise na Constituinte?
Ali houve uma soma de incapacidade gerencial, inexperiência e falta de critérios. O ex-presidente da empresa, Jorge Alvarado, um engenheiro de petróleo formado na Universidade Patrice Lumumba, em Moscou, mostrou-se incapaz e desatualizado para exercer a função. Há suspeitas de corrupção. Apesar disso, o presidente Evo Morales, por confiança e amizade, o manteve no cargo por mais de um mês e meio após a eclosão de problemas graves. Ele retardou a mudança e não escutou apelos do próprio MAS. Há uma diferença entre as duas crises. Na Assembléia Constituinte, o problema é de tática política. Creio que na YPBF o caso é mais sério. Mostra que o presidente Evo precisa ter uma conduta mais política e menos messiânica.