Marilena Chauí: “Há uma muralha jurídica” diante da esquerda

“Há uma muralha jurídica que impede um partido de esquerda realizar metade de suas propostas”, na medida em que “o Estado brasileiro foi montado pela classe dominante brasileira”, afirma a filósofa Marilena Chauí, ao defender a reforma política na entrevi

Conversando com a filósofa Marilena Chauí percebe-se algo que já é evidente em suas obras: não se trata de uma intelectual qualquer. Fala de fato aquilo que pensa e não tem medo de assumir posições difíceis quando o momento é adverso. Foi assim recentemente quando, em meio à crise vivida pelo governo Lula, virou “saco de pancadas” de muitos, principalmente da mídia conservadora que chegou a aventar um dito “silêncio” irreal.



Mas isso não a abalou. Continua na esquerda, no PT e acredita na refundação do partido que ajudou a construir. Repudia o acordo feito com o PSDB que evitou uma devassa no governo FHC e prega, como tarefa urgente para o país, a reforma política para a “democratização do Estado brasileiro, que tem uma forma completamente oligárquica e autoritária”. Confira trechos da entrevista a seguir (a íntegra está na edição de setembro de Fórum), em que a filósofa fala sobre estrutura partidária, direita e esquerda e o que se pode esperar de um eventual segundo governo de Lula.



Fórum: Levando em consideração que estamos em meio ao processo eleitoral, a senhora pode iniciar esta entrevista fazendo uma reflexão a respeito da reforma política?



Marilena Chauí: A reforma política é questão prioritária, e digo isso porque aconteceram dois momentos decisivos na história brasileira que transformaram a forma das instituições políticas brasileiras e fizeram-na a ser como são hoje. O primeiro instante abordei em Leituras da Crise, livro da Editora Perseu Abramo. Trata-se da reforma realizada por Geisel e Golbery. Naquele momento, se faz um arranjo político de maneira a garantir mais poderes à Arena em relação ao MDB. E o resultado incide particularmente no problema da representação. Por conta disso, a forma da representação no Brasil ainda hoje está toda determinada por uma visão de poder do final da ditadura.



Mesmo com o processo de democratização do país, não se tocou naquilo que, do ponto de vista da operação da política, foi a chave do poder ditatorial. Então, quando me refiro à necessidade da reforma política, o primeiro alvo é desmontar a estrutura partidária montada pelo general Golbery do Couto e Silva.



O segundo instante é o que acontece com o Estado brasileiro durante o governo Fernando Henrique, que, entre outras metas, teve as de desconstruir, desinstitucionalizar e desconstitucionalizar o país pela demolição do aparelho estatal. Aí temos um campo minado. Como é que se vai efetivamente governar, legislar, representar e operar a presença do Estado na área social e na definição do perfil econômico do país se, por conta da forma como se estrutura a representação, o governante não pode contar com base legislativa? A noção do voto proporcional, a aritimetização da representação, a falsa proporcionalidade e a desconsideração dos mecanismos efetivos dessa representação tornam impossível um partido político que ganhe no Executivo governar o país. E os governantes convivem em escala menor com esse problema no plano do estado e no plano municipal. O resultado disso é a falsa aliança, na medida em que, para que ela existisse efetivamente, seria necessário definir um projeto político e um programa de governo que representasse efetivamente as posições sociais, econômicas e políticas dos aliados. E isso não tem acontecido no Brasil. Nem mesmo na aliança do PFL com o PSDB ou na do PT com o PL, que foi uma brincadeira. Isso significa que o atual modelo também compromete o partido como instituição, porque ele não consegue exprimir-se em termos nacionais e não tem condições de realizar no governo a expressão do seu projeto político-partidário. Isso é uma catástrofe e vale para todos os partidos.



Fórum: Mas a crise de 2005 teve como ponto central a questão da corrupção, a senhora então parece apontar que isso está relacionado à forma de organização política do país?



Marilena: Não se pode fazer do combate à corrupção um combate moral. É verdade que têm aqueles que não se deixam corromper, mas a verdadeira corrupção se dá por conta da forma como está estruturada a instituição, que produz como ação possível dela a corrupção. Então, quando penso a reforma política, tenho que tratar da mudança da representação e da reforma partidária, do modo de expressão do Legislativo e do Judiciário, da relação entre cada partido e a aliança que ele realiza e sua expressão nos projetos e programas sociais. Isto tudo implica também uma mudança no nível do aparelho estatal.



É bem verdade que o governo Lula recompôs muito do aparelho estatal, mas há ainda outro problema para além da decomposição a que foi submetido no governo FHC. Na medida em que o Estado brasileiro foi montado pela classe dominante brasileira, ele é regulado juridicamente por um conjunto de leis, pareceres, resoluções, decretos e portarias que a concepção que essa classe tem da política, do Estado e do que deve ser um governo. Há uma muralha jurídica que impede um partido de esquerda realizar metade de suas propostas.



Quando estávamos na prefeitura [Marilena Chauí foi secretária de Cultura no governo de Luiza Erundina em São Paulo], cada proposta que vinha de uma das secretarias ou da prefeita e que tinham relação com a questão social encontrava uma barreira no setor jurídico que explica por que, do ponto de vista da lei, não se podia realizar aquilo. Então, a primeira resposta que se tem do ponto de vista jurídico é sempre um “não pode”. E vai desde o “não pode” de uma gravidade imensa até o “não pode” folclórico. Não pode uma atividade cultural com os deficientes mentais, porque isso é uma coisa para a Secretaria de Saúde. E a Secretaria de Saúde não pode fazer oficinas com os deficientes mentais porque isso é uma coisa da Secretaria de Cultura. Além dessa coisa ridícula, deste “não pode” ridículo, há o “não pode” para valer. Não pode mexer na iluminação da cidade, na rede de esgoto, não pode intervir no plano diretor, não pode fazer a tarifa zero… E assim vai, ou seja, não há como realizar um projeto de esquerda. Um programa de governo de esquerda é minado, destruído cotidianamente pela estrutura do Estado.



Sendo assim, reforma política também tem que ter em mente a democratização do Estado brasileiro que tem uma forma completamente oligárquica e autoritária. Não basta o conjunto de propostas que a Constituição tem, fruto do trabalho dos movimentos populares, é preciso vontade política e um poder político capaz de desenvolver a democratização do Estado.



Fórum: O presidente Lula no início do seu mandato não optou por um certo “bom-mocismo” na relação com o status quo? Será que ele não pode repetir esse caminho caso seja reeleito?


Marilena: Infelizmente ele optou pela transição. E eu fui contra isso. Achei um absurdo aquela coisa de bolo de noiva [nome do local onde se instalou a equipe de transição do governo Lula]. Muitas vezes, escrevi sobre o risco de pensar o início do governo como uma transição. Não se podia fazer com a política neoliberal do FHC uma transição, teria que ter havido uma ruptura. O que você chama de “bom-mocismo” foi efetivamente não mexer na política econômica que estava implantada e não fazer aquilo que, ao meu entender, teria sido indispensável e que teria evitado o que aconteceu no ano de 2005. Deveria ter sido feita uma devassa naquele governo. Não se fez a devassa, não se propôs a ruptura com o poder econômico e se aceitou como forma de iniciar o percurso a transição.



Fórum: A senhora tentou argumentar contra isso, conversar com outros acadêmicos, com gente do PT a respeito de suas posições contra esse modelo de transição?


Marilena: Fizemos reuniões de intelectuais com o Paulo Vanuchi, fizemos uma primeira reunião lá no Banco do Brasil, com o Lula, Palocci, todos. E houve uma longuíssima arenga do Palocci, do Zé Dirceu etc., explicando porque seria daquele jeito. Um grupo, do qual faziam parte o Chico de Oliveira e o Fabio Konder Comparato, disse então “tchau e bênção”. Outro grupo se mortificou, comeu as unhas e foi para casa. E alguns, como eu, ficaram lá para ser saco de pancadas do país. Para poder justificar ao país o injustificável, viramos saco de pancadas. Mas à época, pensava o seguinte: é por um desejo infantilmente esquerdista que não quero que seja assim. Preciso ser racional, realista, e entender os limites que a realidade impõe ao nosso desejo…



Fórum: O argumento a favor do caminho de uma transição era convincente?


Marilena: Sim, era uma coisinha depois da outra. Tudo o que eles explicavam tinha uma certa lógica, um caminho. Houve momentos em que havia até cronograma. Coisas como, no mês tal será assim, no outro assado e nós ficamos completamente convencidos de que o cronograma tinha sentido (risos). A sorte do Lula é que ele tinha um outro conjunto de ministros e de quadros no setor social fazendo, dentro dos limites que a estrutura estatal permite, uma mudança profunda.



Fórum: Dentro desse contexto, como a senhora explica o PSDB? Qual a seu ver é o projeto político-partidário deles?



Marilena: É preciso levar em conta que o PSDB nasce contra o quercismo. Sai de dentro do PMDB contra o Quércia e com um discurso moralista, mas, na prática, a saída teve a ver com o fato de o grupo que o organizou ter perdido poder no PMDB. Ou seja, o Quércia tinha ganho a parada e esse grupo resolveu sair. A saída também precisa ser entendida a partir da mesma lógica da não-entrada desse grupo no PT. Por que esse grupo não entrou no PT? Ouvi deles que não iam entrar porque não aceitavam ser conduzidos por um macacão azul. É literal. Diziam “não vamos ser conduzidos por um macacão azul”. A criação do PSDB se dá por falta de alternativa. E por que decidem se assumir como social-democratas? Também é preciso levar em conta o que tinha acontecido com a social-democracia que os levou a se denominar assim. A social-democracia era o new labor e a Terceira Via, portanto um compromisso claro com a política neoliberal. A aliança que se deu com o PFL, embora deva ser explicada a partir de todos os defeitos que é o horror da nossa estrutura partidária e a forma da representação que temos, não é gratuita. Foi a escolha de um aliado que não tem programa. O programa do PFL é manter as coisas como estão para ver como é que fica, ele tem como meta a manutenção do poder que vem desde o período colonial. Por isso, insisto, essa aliança não foi casual. Foi a aliança da ausência de programa e projeto de um grupo que tinha por objetivo a permanência de certas formas de poder econômico e político, com o programa da Terceira Via, que é perfeitamente compatível com a hegemonia neoliberal e com a perspectiva oligárquica do PFL.



Fórum: E o Fernando Henrique foi o grande intelectual desse processo?



Marilena: Sem dúvida. Ele é uma inteligência fervorante. Em 1981, estava escrevendo Democracia e Socialismo e fui estudar um pouco o que se dizia do Brasil e, particularmente, o que os sociólogos diziam. E a diferença entre os escritos dele e os dos outros me deixou impressionada. Era de uma inteligência extraordinária. Ele é a alma dessa concepção, não tenho a menor dúvida. Por um lado, o que estava na cabeça dele era dar a si próprio um destino. Para ser rei, ele teria que se dar um destino. Mas também, além de assegurar a si um destino, tinha por objetivo realizar aquilo que todos os escritos dele, como sociólogo, sugeriam. E uma coisa nuclear nos escritos dele é a idéia de modernidade. E o que é a modernização nessa concepção? É fazer o país se equiparar aos países do capitalismo desenvolvido. Se estivermos up to date com o que os países de capitalismo central estão realizando, então estamos realizando algo moderno. Ora, o que eles realizavam era o neoliberalismo, mas com viés da Terceira Via.



A busca dessa modernidade definiu a política do PSDB. Ou seja, não é verdade o “esqueçam o que eu escrevi”. Um dos pólos fundamentais da escrita sociológica do Fernando Henrique é a paixão pela modernidade, que o leva, no momento em que vai fazer política, a realizá-la com aquilo que era entendido naquele momento como modernizador.



O segundo elemento, se você toma a tese sobre os escravos, todos os textos sobre a teoria da dependência, ele explica o Brasil a partir de um critério. Esse critério é Estado, o capital nacional e o capital internacional. Ou seja, a análise exclui a classe trabalhadora. Não tem classe trabalhadora. O trabalhador não é sujeito histórico, não é sujeito político. É o que aparece na tese de doutorado dele sobre os escravos, tidos como instrumentos passivos da vontade do senhor. As revoltas, as rebeliões, as formas de compromisso que assumem com os senhores, todo o trabalho dos escravos para se constituir em um novo sujeito foi ignorado.



Fórum: Mas com toda essa trajetória do Fernando Henrique e do próprio PSDB, por que o PT cogitou uma aliança com os tucanos para as eleições de 1994?



Marilena: Essa aproximação quase ocorreu várias vezes. E está programada uma nova aproximação. Ouvi dizer que vai haver tentativas nesse sentido.



Fonte: http://www.revistaforum.com.br