O seqüestro do Pentágono pelos neoconservadores também é um desastre

Há períodos em que os acontecimentos se precipitam e o mundo muda de figura em meses ou anos e outros nos quais a estrutura da realidade parece resistir a qualquer mudança. As guerras mundiais e a queda do Muro de Berlim foram exemplos do

Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa


 


 
 


Nos anos de euforia da década de 90, quem queria parecer atual e sensato previa décadas de petróleo barato, dissolução das fronteiras culturais, esvaziamento dos Estados Nacionais, triunfo universal e ininterrupto da globalização neoliberal, crescimento galopante dos lucros e de uma “nova economia” virtual, livre de crises e restrições ao crescimento.


 


Se um autor de ficção científica desejasse ser levado a sério ao descrever um futuro de crise ininterrupta, arrogância imperial, chauvinismo nacionalista, fanatismo religioso e violação sistemática da privacidade e das liberdades individuais, faria bem em projetá-lo, no mínimo, para uns 50 anos no futuro.


 


Tivemos 50 anos em cinco, como dizia Juscelino Kubitschek. O 11 de Setembro de 2001 pôs as rodas do carro da história em movimento desde o começo do novo século, atropelando milhões de desavisados. Pôs a nu uma realidade turbulenta mal contida por uma frágil aparência de normalidade e nos fez ver a espada de Dâmocles que há muito tempo pendia de um barbante meio deteriorado.


 


Hegel, responsável pelo primeiro dos mal-entendidos sobre o “fim da história”, foi mais feliz e realista ao escrever que “a coruja de Minerva voa ao anoitecer” – ou seja, que as grandes transformações são difíceis de apreender e só a posteriori se tornam compreensíveis para a razão, a filosofia e a análise histórica. Mas as interpretações apressadas, por arriscadas que sejam, são inevitáveis – nesses momentos, mesmo uma visão turva e parcial é melhor que a completa cegueira.


 


Como insiste o historiador estadunidense Eric Foner, em ensaio publicado no portal History News Network, o que não se pode aceitar, nesse debate ainda longe de ter sido adequadamente aberto, é a pretensão de fechá-lo – presente, desde o primeiro momento, no discurso chauvinista e intimidador dos neoconservadores estadunidenses.


 


Como, exemplificou Foner, o escritor goano-americano Dinesh D’Souza, que no livro What’s So Great About America (O Que os Estados Unidos Têm de Tão Maravilhoso – assim mesmo, sem ponto de interrogação, insistem os elogios dos resenhistas conservadores) dita que princípios como liberdade e tolerância são unicamente “ocidentais” e a única razão para tal povo iluminado estudar outras partes do mundo é para apontar a própria superioridade – e quem pensa de outra maneira, garante a orelha, é “gente que fornece argumentos para o terrorismo”. Ou ainda William Bennet, autor do Livro das Virtudes, que no belicoso Why We Fight (Por Que Lutamos) afirma que os intelectuais dos quais discorda “semeiam confusão generalizada e debilitante” e “enfraquecem a resolução do país”.


 


O discurso de Washington imediatamente descreveu o atentado terrorista como um “ataque à própria Liberdade” e manifestação de ódio às “nossas liberdades”, tema que continuou a obcecar as manifestações oficiais. A operação que devastou o Afeganistão, após a má reação dos aliados à inacreditável arrogância da expressão “Justiça Infinita”, foi rebatizada “Liberdade Duradoura” e a invasão de Bagdá, chamada “Liberdade do Iraque”.


 


O documento “Estratégia de Segurança Nacional” de 2002, primeira formulação oficial e explícita da doutrina da guerra preventiva, abria-se não com uma discussão da conjuntura global, mas com uma invocação da Liberdade, definida como “democracia política, liberdade de expressão, tolerância religiosa e livre empresa, idéias justas e verdadeiras para qualquer pessoa em qualquer sociedade”.


 


Os supostos inimigos do terrorismo adotaram com entusiasmo não só o discurso de Osama bin Laden sobre a inevitabilidade de um confronto entre o Islã e o Ocidente cristão, como também seu presumido desprezo pelas liberdades e pelos direitos humanos, a ponto de um conhecido analista militar, Ralph Peters, advertir seus leitores sobre a impossibilidade de “vencer guerras ‘orientais’ com valores ‘ocidentais’ ”.


 


Sob toda a veneração verbal à deusa que ergue sua tocha à entrada do porto de Nova York, o que se viu de mais concreto foram ações de vários países, mas mais notavelmente dos próprios Estados Unidos, para restringir as liberdades reais. Ao exaltar a “Liberdade” como abstração, jogaram no esquecimento que as liberdades hoje desfrutadas não são uma característica constante e essencial do “Ocidente” ou dos EUA, mas uma conquista relativamente frágil de lutas históricas, muitas delas bem recentes, e que precisa ser defendida, em primeiro lugar, das tendências autoritárias dentro de sua própria “civilização”.


 


 
 


A noção de “Guerra ao Terror” ameaçou tornar-se pretexto para um estado de emergência permanente, pois a guerra a uma abstração é impossível de vencer e por isso mesmo livre de limites na lógica, no tempo ou no espaço. Com ela se quer justificar o abandono da Convenção de Genebra, a tortura de prisioneiros de guerra, política de atirar primeiro e perguntar depois em suspeitos de pele escura, a violação sistemática da privacidade de todos, a expulsão arbitrária de estrangeiros e a detenção, sem direitos, acusação concreta ou limite, de qualquer suspeito de ser “combatente ilegal”. Bem como a política de ataque preventivo, nuclear caso se julgue conveniente, a qualquer nação, cujo governo seja tido, com ou sem provas palpáveis, como inimigo da liberdade e, portanto, dos Estados Unidos. Ou inimigo dos Estados Unidos e, portanto, da liberdade. Em novilíngua, dá no mesmo.


 


Não só a equipe de Bush júnior, como grande parte do povo estadunidense, acredita cada vez mais que seu governo tem o direito de estabelecer as normas de comportamento para o resto do mundo, enquanto age como bem entender. Os termos “Império” e “imperialismo”, pouco ouvidos antes do 11 de Setembro, a não ser entre os mais chatos, teimosos e dogmáticos dos marxistas, voltaram à moda – mas desta vez com conotação não de crítica, mas de orgulho. Não foi à toa que a saga de George Lucas, que começou por uma apologia à rebelião, terminou por contar a história de uma República que se torna um Império.


 


Há não muitas décadas, o termo “Império” evocava nos estadunidenses a idéia de opressão – os tempos da detestada dominação britânica ou o fictício “Império do mal” da série Guerra nas Estrelas, que Ronald Reagan assimilou à União Soviética do mundo real. Hoje, políticos, escritores e analistas sentem-se à vontade ao discutir a necessidade de seus concidadãos arcarem com o “fardo do Império” e, implicitamente, se identificarem com o Império Romano de Calígula ou ao Império Britânico de Jorge III.


 


É como se a elite estadunidense tivesse decidido que não bastava o piloto automático do mercado financeiro para dirigir a espaçonave Terra. Ao atravessar a turbulência, aproveitou a oportunidade para tentar assumir o manche e proclamar isso abertamente. Rompeu o automatismo da globalização para implementar o objetivo político neoconservador do “Novo Século Americano”, da mesma maneira que os seqüestradores do 11 de Setembro quebraram a rotina impessoal dos vôos de carreira para implementar os de Bin Laden.


 


A elite julgava ser capaz de, por meio do uso sem limites da força, ensinar o mundo não só a temer, como a amar os Estados Unidos, exatamente como a Al-Qaeda pretendia fazer com o Islã. Mas os resultados foram ainda mais perversos, contraproducentes e desastrosos. Depois de arrasar o Afeganistão sem chegar a capturar os presumíveis responsáveis pelos atentados, neutralizar o Taleban e muito menos criar uma ordem estável no país, a máquina do Pentágono foi jogada contra o Iraque e fez mais de 100 mil vítimas civis, reduzindo quase à insignificância as 3 mil do World Trade Center. E esse país até então hostil à Al-Qaeda e ao fundamentalismo tornou-se um dos principais campos de treinamento e de batalha do terrorismo.


 


 
 


Em Guantánamo, Abu Ghraib, Fallujah e Haditha e nas prisões secretas da CIA, cuja existência foi confirmada pelo presidente Bush júnior na quarta-feira 6 de setembro, os EUA exibiram ao mundo, escancaradamente, o que têm de pior, como nos piores momentos da Guerra do Vietnã. Se antes a imagem dos EUA no mundo árabe já não era das mais simpáticas, hoje o ódio é alimentado todos os dias por novas imagens de atrocidades que nada ficam a dever às violências cometidas pelos terroristas. A opinião pública no exterior mostrou-se mais difícil de controlar ou ignorar do que se imaginava.


 



Uma pesquisa de opinião mostrou que 76% dos iraquianos acreditam que a razão para seu país ser invadido foi o controle do petróleo. As outras duas razões mais citadas foram a construção de bases militares e o apoio a Israel, opiniões também muito sensatas. Já nos EUA, um terço das pessoas diz acreditar que os atentados de 11 de Setembro foram uma conspiração de seu próprio governo e outro terço julga que Saddam Hussein foi um dos responsáveis.


 


Do ponto de vista da estratégia neoconservadora, o pior é que os EUA perderam parte do seu poder de intimidar seus inimigos ao se atolar no Iraque, como mostra a atitude desafiadora de governos e povos da Bolívia à Coréia do Norte. O recrutamento de voluntários para as Forças Armadas tornou-se cada vez mais difícil e os imensos custos econômicos e políticos da ocupação do Iraque lançam dúvidas sobre a possibilidade de Washington ousar envolver-se em mais alguma aventura.


 


O poder real de intervenção do Pentágono mostrou-se menor que seu poder virtual. Washington, hoje, parece ter menos controle sobre os acontecimentos do que há dez anos. A tagarelice sobre o Império parece em boa parte uma manifestação de nervosismo em relação ao risco de perdê-lo, que não parecia existir quando o controle dos fluxos financeiros parecia suficiente para manter a ordem global.


 


No plano interno, o quadro é um pouco diferente. O Judiciário impôs alguns recuos às práticas autocráticas da Casa Branca. Recusou-se a reconhecer a suspensão da Convenção de Genebra no que se aplica aos “combatentes inimigos” detidos em Guantánamo e declarou ilegais vários aspectos do chamado “Patriot Act”, incluindo o poder dos órgãos de segurança de monitorar comunicações privadas sem autorização judicial e de proibir esses prestadores de serviços de advertir os usuários sobre a bisbilhotice do governo.


 


Mas a idéia de que os EUA precisam de um Império não sairá facilmente da pauta e, provavelmente, será reforçada a cada vez que o poder real parecer lhes escapar mais das mãos. As correntes principais da oposição dita democrata aderem à teoria e prática do imperialismo explícito no plano externo. A popularidade de Bush júnior caiu quase continuamente dos 90% de setembro de 2001 para os 36% de hoje, mas parece ainda acreditar que a invasão do Iraque, mesmo que pudesse ter sido mais bem conduzida, foi uma decisão correta. Os dogmas do patriotismo e a ignorância do mundo exterior deixaram o público despreparado para compreender o sentido do que se passa e a história por trás das surpresas que o aguardam.


 


Fonte: Carta Capital