Enciclopédia “Latinoamericana” marca um novo tempo

Não há nada semelhante publicado nos últimos 20 anos. Com mais de uma centena dos mais importantes intelectuais latino-americanos entre os autores, obra de 1,4 mil páginas capta diversidade e tensões de uma abertura histórica.

por Gilberto Maringoni – Carta Maior


 


Atenção! O leitor deve ser avisado, em nome de todos os manuais de jornalismo, que a seguir virá um artigo parcial, subjetivo, não isento e interessado. O autor do arrazoado abaixo é um participante do livro cuja resenha comete. Este aviso é feito por um dever de honestidade. A maior parte do que vai na imprensa é matéria interessada, mas inexistem avisos deste tipo.


 


É o seguinte: a imprensa não deu muita bola, mas a Latinoamericana (ou Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe), da Boitempo Editorial, é uma das maiores obras literárias dos últimos vinte anos no Brasil e no continente. Não há volume editado neste período, ao sul do Equador, a reunir nomes do quilate de Chico de Oliveira, Anibal Quijano, Álvaro Garcia Linera (que após a edição fechada elegeu-se vice-presidente da Bolívia), Emir Sader, Atilio Borón, Ana Esther Ceceña, Mike Davis, Fernando Martínez Heredia, Flávio Aguiar, Iná Camargo Costa, Luiz Alberto Moniz Bandeira, Marcio Pochmann, Margarita López Maya, Ricardo Antunes, Theotonio dos Santos, para ficarmos em alguns dos 123 autores de ensaios e verbetes.


 


Seus números são impressionantes. Poderiam ser anunciados como feitos de algum candidato a governador. A enciclopédia possui 980 verbetes, 1.040 fotos, 95 mapas e 136 tabelas, 21 gráficos e fichas com dados gerais sobre cada país da região. Concentra-se nos últimos 50 anos da história do continente e encerra um conjunto de quase 1.400 páginas, escritas por autores mais de 20 países. Além disso, é graficamente exuberante. Mas a importância maior da Latinoamericana não está nos números.


 


 


Abertura histórica


 



Está no fato de ela ser uma obra dos tempos que correm. Não seria possível concebê-la e concretizá-la há uma década, quando o continente estava imerso no obscurantismo das idéias do fim da história, dos anos em que o altar do Consenso de Washington era o depositário inconteste de todos os sacrifícios feitos em nome da estabilidade fiscal e dos afagos aos investidores. Os países da região foram então reduzidos a “mercados emergentes”, castrados em sua soberania e tornaram-se campos de prova das mais diversas experiências de ajuste macroeconômico. A enciclopédia não poderia vicejar num terreno desses. Ao contrário, ela é obra de um tempo em que a história se abre no continente.


 


Emir Sader lembra, na introdução, da marca de dois acontecimentos do ano de 1967, “emblemático no reconhecimento mundial do continente por dois acontecimentos, trágico um, glorioso outro”. E cita a morte de Che Guevara, na Bolívia, que coincidiu com a publicação de Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez. São de fato acontecimentos luminosos, mas ambos crepusculares e melancólicos.


 


O assassinato de Che, por motivos óbvios, assinalou o início da derrota sangrenta da esquerda e do movimento popular no continente, cujos pontos definidores foram os golpes no Brasil, Chile e Argentina, num espaço de pouco mais de uma década. E o livro de Garcia Márquez, embora marcasse mundialmente a existência de uma vigorosa narrativa original, a mesclar em vida e delírio os destinos e desatinos continentais, assinalava o definhamento de uma dinastia criolla, a dos Buendia, no coração de um dos países mais cindidos pelas desgraças sociais da região, a Colômbia.


 


A Latinoamericana – o futuro tratará de evidenciar – é obra comparável, em sentido inverso, àqueles dois eventos. Primeiro, pela própria grandeza do trabalho. Historicamente, enciclopédia é obra de períodos em que a História se abre, ao contrário da conjuntura de quatro décadas, ou mesmo de dez anos atrás.


 


A Enciclopédia original


 



A Enciclopédia original – organizada por Jean le Rond d'Alembert e Denis Diderot entre 1751 e 1772 é, nas palavras de Eric Hobsbawm, um “produto típico do iluminismo do século XVIII”. É fruto da arquitetura do racionalismo e do cientificismo, da tentativa de se explicar o universo em suas múltiplas facetas. Não representava uma síntese, mas uma coletânea de várias sínteses, uma espécie de livro dos livros, uma bíblia da inteligência. É a obra, por excelência, que prenuncia a revolução industrial, a revolução francesa, com a decadência do antigo regime, e a chegada de uma nova classe ao poder político. Busca ser um facho contra as trevas e tabus do pensamento e da ação.


 


Se o romance é, no dizer do marxista húngaro Georg Lúkacks (1885-1971), a epopéia burguesa, a enciclopédia é sua razão. O primeiro é a síntese do indivíduo diante da História, somente interpretado em sua inteireza quando a burguesia irrompe na cena, com seus dramas de homens e mulheres que tentam fazer-se a si mesmos. A Enciclopédia, por sua vez, capta o momento imediatamente anterior. Inexistia um projeto claro de revolução burguesa, o que havia eram contradições e esgarçamentos no tecido social. A Enciclopédia não era síntese, pois foi fruto de um tempo da condensação racional ainda em construção. É antes uma antologia de sínteses totalizadas em cada tópico particular. Também não é produto do gênio isolado, como o de um Balzac, mas de um imenso coletivo variado e plural, em seus 28 volumes originais. São mais de 130 autores, entre os quais Voltaire, Montesquieu e Rousseau. Logo no primeiro tomo, Diderot refere-se à tarefa empreendida. ''Quando se considera a matéria imensa de uma enciclopédia, a única coisa de que nos podemos aperceber distintamente é que ela não pode ser obra de um só homem. Como é que um só homem, no curto espaço de tempo da sua vida, conseguiria conhecer e desenvolver um sistema universal da natureza e da arte?''


 


Iluminismo antiliberal


 


Paralelos históricos são sempre inexatos, mas a comparação aqui é inescapável. A América Latina sai das trevas neoliberais ainda tateando no escuro. Mas é a região do globo na qual as tensões da História mais se agudizam. Aqui o modelo neoliberal foi aplicado in extremis. E é também o local onde a reação social a ele surgiu com mais vigor. Neste canto do mundo aconteceram as revoltas da água, a reação de massas aos planos de ajuste, a eleição de governos a contestar no todo ou em parte o modelo neoliberal, como Hugo Chávez, Evo Morales e Nestor Kirchner. Na região também há a busca por um iluminismo conceitual, que restitua aos povos o direito de pensar em alternativas e colocá-las em prática.


 


Apelemos para as palavras do cientista político inglês Perry Anderson. Em uma conferência proferida em Havana, em 2003, ele analisava os impasses regionais: “Aqui e somente aqui, a resistência ao neoliberalismo e ao neo imperialismo conjuga não apenas o cultural, senão o social com o nacional, quer dizer, comporta uma visão emergente de outro tipo de organização da sociedade e outro modelo de relações entre os Estados. Em segundo lugar – e este é um fato usualmente esquecido – é a única área do mundo com uma história contínua de transtornos revolucionários e lutas políticas radicais há um século. Nem na Ásia, nem na África e nem na Europa encontramos equivalentes à cadeia de revoltas e revoluções que marcaram a experiência singular latino americana, a qual, há um século, vem dando conta de novas explosões que se sucedem a derrotas”.


 


Social e politicamente, poder-se-ia comparar a Latinoamericana com o ciclo iniciado com a rebelião zapatista no México, em 1994, e que teve no movimento dos Fóruns Sociais Mundiais – nascidos no Brasil sob as bênçãos da administração petista de Porto Alegre – o impulso para a criação de uma atmosfera menos rarefeita ao debate. Coleções de múltiplas sínteses, como a Latinoamericana, os Fóruns também enfrentam o dilema de serem totalizantes na diversidade e nos particularismos. Não há agora a grande narrativa épica a amalgamar a Terra do Fogo ao Rio Grande, mas há o reconhecimento de que o cipoal de tentativas pode gerar um novo ciclo político, econômico e social. Há uma imensa disputa pelos rumos, alicerçadas todas por um crescente sentimento antiimperial.


 


O lançamento da Latinoamericana marca o período do ressurgimento da Política com inicial maiúscula. Da Política feita a quente, nas ruas, como na Argentina de 2001, na Venezuela de 2002 e na Bolívia de 2005. É o tempo em que os governos mais identificados com o estuário neoliberal colheram aberta derrota nas urnas. Gente como Carlos Menem, Alberto Fujimori, Fernando Henrique Cardoso, Gonzalo Sánchez de Lozada enfrenta hoje situações que vão do ostracismo a ordens de prisão. Enfim, são anos de resistência dispersa. Embora tenham sido eleitos numa maré de negação dos modelos de ajuste estrutural, existe pouca unidade programática entre os novos dirigentes continentais neste início de século XXI. Não há sínteses construídas, mas há convergências em formação.


 


A Latinoamericana é a obra desses embates. Não é um dicionário da região, pois não há nela uniformidade de estilos, abordagens ou enfoques, embora haja unidade editorial. Cada verbete é um ensaio, desde a dissecação de grandes temas – Trabalho, Literatura, Cinema, Riqueza, Música, Mídia, Energia, Esquerda etc. – e países, até os tópicos mais específicos, como biografias, instituições e acontecimentos. Tampouco é uma “Barsa de esquerda”, como escreveu um jornalista, na tentativa de desqualificar a obra. A lógica dessa gente é a seguinte: há os trabalhos “imparciais” e os de esquerda, que seriam sempre subjetivos e distorcidos. Falta de folhear atentamente o volume. O que mais há são informações e dados checados e rechecados por vários revisores. E isso não a torna um volume que “reúne dados sobre a América Latina”, no dizer de outro resenhista de caderno cultural. Informação e opinião fazem o combustível e o dínamo de uma obra viva, positivamente contraditória em si e imprescindível para quem deseja realizar um mergulho na exuberância política e social do continente.


 


Organizada fundamentalmente por Emir Sader e Ivana Jinkings a Enciclopédia Latinoamericana não é um livro. É a marca e a definição de uma caminho sem roteiro pré definido. Virão novas sínteses? Dependerá das tensões sociais e políticas representadas e interpretadas nessas centenas de páginas.


 


Fonte: Agência Carta Maior