Paulo Betti: A ética da hipocrisia

Por Paulo Betti, na Folha de S. Paulo*


Nos últimos dias, venho sendo submetido por setores da mídia e dos meios político, intelectual e artístico a um linchamento moral que deveria preocupar os democratas sinceros de nosso país. Ele oculta, sob

Nesse episódio, tive pouquíssimas chances de defesa, de demonstrar o sentido completo da minha frase, extraída por repórteres ávidos e ansiosos à saída de um encontro entre artistas e o presidente: “Não se faz política sem sujar as mãos”. “Sem pôr a mão na merda”, de fato acrescentei, desnecessariamente, para delícia dos que buscavam munição para a renhida disputa eleitoral deste momento.



Embora a Folha tenha publicado minha carta aclarando o sentido das declarações, elas continuam sendo usadas como “prova” do colapso da ética entre nós.
Por outra frase, também dita sob o calor das cobranças, um dos maiores e mais respeitáveis músicos brasileiros, o maestro Wagner Tiso, vem sofrendo igual massacre.



Os jornais e os jornalistas, os artistas, os intelectuais e os políticos que protagonizam esses ataques sabem de quem estão falando. Conhecem nossas trajetórias. Lembram-se de mim associado à trajetória do PT, mas também à memorável batalha de Betinho “Pela Ética na Política”. Sabem que constatar as transgressões como inevitáveis não é o mesmo que defendê-las. É lamentável que o sistema político exija um pragmatismo que suja as mãos, mas é só pelo reconhecimento da existência dessas mazelas que poderemos superá-las.



Todos sabem que falei coisas óbvias, que dispensariam explicações em outro contexto e momento. Temos um sistema de financiamento privado de campanhas que a todos contamina. Com esse sistema, acaba a fronteira entre o público e o privado. Quem tiver mais acesso aos endinheirados arrecada mais, obrigando-se, nos cargos públicos, a responder com reciprocidade.



Enquanto fez campanhas vendendo bonés e estrelinhas, o PT não teve chances de chegar ao poder. Em 2002, diante do favoritismo de Lula, os cofres se abriram. E o partido se envolveu com forças das quais deveria ter guardado distância. Errou por fazer o que todos sempre fizeram.



Nem por isso devem ser linchados os que, mesmo condenando esse erro, defendem a reeleição de Lula pela qualidade do governo que vem fazendo, voltado para os mais pobres, dando-lhes mais poder de compra e alguma chance de ascensão social. Por estar vivenciando a melhora de suas vidas, e não por amoralismo, é que a maioria dos eleitores o apóiam, segundo as pesquisas. Nosso sistema político permite a eleição direta do presidente da República, mas não lhe garante a governabilidade. A profusão de partidos dispersa o voto para a Câmara. Lula teve 52% dos votos em 2002, mas o PT ficou com 17% das cadeiras.



Em busca da maioria, todos os presidentes têm sido obrigados a buscar acordos e alianças. Acabam dependendo do apoio das forças do atraso político, que, em troca, pedem cargos, verbas e mesmo recursos financeiros com a desculpa de que têm dívidas de campanha.



O PT caiu nesse antigo alçapão. Nem por isso se deve negar o direito da maioria dos eleitores de reeleger o presidente. Nem por isso é democrático e “ético” o massacre daqueles que, como eu, declaram o voto acreditando na liberdade e na democracia que construímos em jornadas de lutas -das quais também participei. Mais que hipocrisia, há na exploração de minha frase um misto de autoritarismo com oportunismo político.



É autoritária porque reproduz o germe de todos os sistemas totalitários: desqualificar os que não se alinham com o pensamento dominante. Para calar, o primeiro passo é desmoralizar. Assim fazem as ditaduras.



É oportunista porque explora minha condição de artista, e as identidades que isso acarreta, para auferir dividendos eleitorais. Há coisa mais suja que isso? Estamos chegando a um grau preocupante de intolerância. Depois das eleições, em nome da democracia, precisamos baixar as armas e recuperar a cordialidade, traço de nossa cultura.



* Ator-diretor e produtor; participou, entre outros, dos filmes “Lamarca” (1994) e “Guerra de Canudos”