Camponesa preside a Assembléia Constituinte boliviana

A presidente da Assembléia Constituinte instaurada em 6 de agosto na Bolívia é uma indígena de 42 anos. Dirigente do movimento de mulheres camponesas, Silvia Lazarte foi eleita representante do departamento (estado) de Santa Cruz, uma das regiões do pa

O MAS venceu as eleições no departamento de Santa Cruz com uma diferença de 1% em relação ao segundo partido mais votado, o Podemos (Poder Democrático e Social). A diferença garantiu que Lazarte fosse a segunda candidata eleita pelo partido em Santa Cruz, já que, nas eleições para a Constituinte, o partido mais votado em cada departamento elegia dois candidatos, com alternância de gênero.



Graças a esse mecanismo, a Assembléia Constituinte boliviana terá a participação de 88 mulheres, em um total de 255 eleitos.



Agricultora, Silvia Lazarte trabalhava com produção de folhas de coca, no departamento de Cochabamba. Resolveu então se mudar para a zona rural de Santa Cruz onde, como dirigente do movimento de mulheres camponesas, participou ativamente das mobilizações contra a privatização da água e dos recursos naturais bolivianos, no início da atual década. Esses protestos deram origem ao processo de emergência de lideranças indígenas e camponesas – todos eles chamados apenas de “campesinos” há mais de 50 anos – pelo qual passa a Bolívia hoje.



Em sua sala ainda improvisada, atrás do palco do teatro Gran Mariscal, em Sucre, onde estão sendo realizados os debates da Assembléia, Lazarte recebeu Carta Maior. Para conceder a entrevista, pediu para que todos os assessores saíssem da sala ''para não fazerem barulho'', solicitou que as perguntas fossem apresentadas antes de começar a respondê-las. Anotou-as todas em sua agenda. Começou a rápida conversa apresentando-se. ''Primeiro, bom dia. Meu nome é Silvia Lazarte Flores, fui executiva da Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia Bartolina Sisa e atualmente estou como presidente da Assembléia Constituinte de Bolívia''. Leia a entrevista:


Carta Maior – Qual o significado da participação das mulheres indígenas na Assembléia Constituinte?

Silvia Lazarte – Esta é uma pergunta muito significativa. Felizmente, graças a Deus, toda a marginalização nos favoreceu para que nós mulheres nos organizássemos em toda a Bolívia, apesar de todas as repressões, injustiças e discriminação. Hoje existem organizações departamentais regionais e nacionais. Foi muito difícil começar o trabalho da organização das mulheres, mas, uma vez conformado, caminhamos muito.



Nós mulheres sofremos, fomos marginalizadas desde o nascimento. A maior parte de nós não pôde ter educação, chegar a ser profissionais, porque as famílias priorizavam a educação dos homens.



Temos organizações de homens e também de mulheres e, portanto, ambos lutamos pedindo uma mudança definitiva, com os nossos próprios recursos, os recursos naturais da Bolívia. Isso nos trouxe à presidência. Felizmente, graças a Deus, tivemos consciência no campo e nas cidades bolivianas e o povo pediu uma mudança. Dentro desta mudança, pedimos um presidente indígena, o senhor Evo Morales Ayma. Mas a Constituição Política atual tem contradições. O presidente camponês e indígena, o senhor Evo Morales, não pode conduzir o país com esta Constituição. As contradições são tantas que não deixam deputados, senadores nem o presidente exercer suas funções.



Portanto, homens e mulheres do povo boliviano decidimos que era necessário convocar uma Assembléia Constituinte. Isso nos custou sangue, nos custou muitas lágrimas, muito choro. Em diferentes departamentos, em diferentes organizações, sobretudo em La Paz, em El Alto, tantos morreram e nenhum presidente anterior fez a convocação da Assembléia [nos protestos de 2003, mais de 60 pessoas foram assassinadas]. Quando derrubamos o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, o presidente seguinte, Carlos Mesa, não cumpriu o compromisso com o povo e não convocou a Constituinte. Ela só foi instituída recentemente, quando Evo Morales assumiu o governo.



Outros partidos minoritários não queriam que fizéssemos uma lei convocatória, mas o povo nos exigiu constantemente. Nos custou fazer mobilizações, marchas para aprovar esta lei. O que o povo boliviano pediu foi uma mudança definitiva. Queremos cumprir com isso. Nós mulheres tivemos que lutar junto com os homens. Nós mulheres temos nossos filhos, netos, filhos e filhas e decidimos lutar para fortalecer nossas organizações.



CM -Qual o maior desafio que vão enfrentar durante a Assembléia Constituinte? O que esperam dos movimentos sociais?

SL – O povo do campo e das cidades nos deu seu voto e por isso temos um compromisso para cumprir neste mandado. O trabalho que temos que fazer é coordenar, junto com nossas organizações sociais, o que diz o povo e transformar isso em propostas.



O trabalho das mulheres, mais que tudo, é cumprir este compromisso. Nós mulheres sofremos por esta mudança. Clamamos por uma mudança dia e noite e agora este trabalho depende de nós. Este é o trabalho e compromisso, fazer uma Constituição originária.



Cada organização, seja em nível local, departamental ou nacional, tem a obrigação de seguir cada um dos constituintes. O povo organizado tem que nos velar, especialmente aos que fomos eleitos pelo MAS, que somos 142 constituintes. No total, somos 255 constituintes e cada um entrou com um voto e cada pessoa que deu seu voto em cada cidade tem o direito de controlar o constituinte. Esperamos que cada organização faça o controle que lhe corresponde.



CM – O que se aprendeu nas lutas na Bolívia e que mensagem elas trazem para os outros povos latino-americanos?

SL – Aqui estamos muito organizados entre homens e mulheres originários e indígenas. Temos 36 etnias organizadas e somos conseqüência da luta. Tomamos esta decisão de levar em frente a Assembléia Constituinte. Então, como mulheres e homens indígenas, desejamos também que lutem, como lutamos na Bolívia.



Compartilhamos nossas idéias e nossos problemas com o Brasil e com toda a América Latina. Quando participamos de eventos internacionais, fazemos intercâmbio de nossas vivências. Nós irmãos e irmãs indígenas temos uma só causa, uma só. Desde a capital da província de Chuquisaca, como presidenta da Assembléia, rogamos, mas que tudo às mulheres indígenas, que sigam em frente porque temos nossos filhos e filhas e temos que lutar.