Locomotiva americana pode parar

Por Márcia Pinheiro, na revista Carta Capital*


Dos 11,4 trilhões de dólares do Produto Interno Bruto (PIB) americano, nada menos que 8,1 trilhões de dólares são gerados pelo consumo das famílias. Essa mega

Os blogs de economistas internacionais de renome estão a ferver, com alertas sobre a iminência de uma recessão, em razão do eventual estouro da bolha imobiliária americana. Na quarta-feira 23, a Associação Nacional de Corretores de Imóveis divulgou que a revenda de moradias caiu 4,1% em julho, ante junho, um porcentual acima do que os analistas estimavam. E um mau presságio.



De acordo com o professor da Universidade de Princeton Paul Krugman, o crescimento dos EUA desde a crise das empresas pontocom – com o crash da bolsa de tecnologia Nasdaq, em 2002 – deu-se basicamente pela supervalorização dos imóveis. O truque foi simples, enquanto durou. Os consumidores compraram residências a prazo e continuamente refinanciaram seus bens, para a complementação de renda. Mas, desde o ano passado, essa espiral especulativa perdeu fôlego. Para tudo há um limite, até para os preços dos arranha-céus em Manhattan.
Segundo o conceituado economista-chefe do Banco Morgan Stanley, Stephen Roach, a palavra-chave que explica a ante-sala da recessão é o mercado de trabalho. O crescimento da oferta de empregos nos últimos quatro meses está 35% abaixo da média registrada desde 2004. Menos emprego resulta em consumo mais parcimonioso, pois mesmo a cultura de endividamento dos norte-americanos está sujeita a sustos.



O analista Jared Bernstein, do Economic Policy Institute (EPI), um centro de pesquisas norte-americano, também chama a atenção para a redução constante da criação de novas vagas de trabalho. Abriram-se 113 mil postos em julho de 2006, muito abaixo da média mensal de 190 mil registrada em 2005, sem computar os meses atípicos afetados pela temporada de furacões. Adicionalmente, diz, a taxa de desemprego subiu dois décimos entre junho e julho, para 4,8%.



Um artigo de Roach, publicado no jornal britânico Financial Times em 14 de agosto, sustenta que o consumo já caiu 2,5% de abril a junho. A percepção de riqueza do cidadão americano reduziu-se com o desinflar dos preços dos imóveis. O Federal Reserve (Fed) também contribuiu para o esfriamento da atividade, ao ter promovido 17 altas consecutivas do juro básico, desde junho de 2004, de 1% para os atuais 5,25% ao ano. Não é pouco.



Reza a teoria que os apertos monetários levam de três a nove meses para ser percebidos pela economia real. Ou seja, os efeitos da escalada do custo do dinheiro ainda estão para ser sentidos em sua plenitude pelo consumidor. Mas o pé no freio dos gastos das famílias já é visível. O PIB dos EUA cresceu apenas 2,5% anualizados no segundo trimestre, ante o aumento de 5,6% nos três primeiros meses deste ano.
Na visão de Bernstein, do EPI, o processo de desaquecimento econômico tem como ponto de partida o desmonte da bolha imobiliária. “A construção de novas casas está estável desde abril e o número de vagas cortadas no setor já soma 25 mil no ano”, afirma. Em sua avaliação, o segmento da construção civil tem um efeito multiplicador perverso: do lado mais óbvio, minguam os empregos diretos. Do mais complexo, há a redução das atividades relacionadas a vendas de imóveis e ao financiamento de hipotecas.



A possibilidade de uma recessão é discutida abertamente por analistas americanos. Peter Cohan, da consultoria Peter S. Cohan Associates, diz que não está sequer descartado um cenário de estagflação (estagnação econômica associada ao aumento contínuo dos preços). Se, de um lado, os salários tornaram-se pouco inflacionários nos EUA, pela concorrência dos importados asiáticos e pela perda do poder de barganha dos sindicatos americanos, de outro, os preços das commodities não param de subir.



O economista cita alguns fatores essencialmente incendiários para o descontrole dos preços: o barril do petróleo registrou uma alta média de 21,5% ao ano desde janeiro de 2001 e o preço do ouro teve aumento de 19,2% anuais desde aquele mês. Para suportar custos como estes, prossegue Cohan, o americano aproveitou-se das taxas de juro baixas, adquirindo imóveis e tomando empréstimos dando-os como garantia. Mas com uma eventual ruptura abrupta da bolha imobiliária e as atuais taxas de juro – elevadas para os padrões americanos – a farra tende a acabar. E acabar mal, com devoluções dos imóveis e até falências pessoais.



O professor Nouriel Roubini, da Universidade de Nova York, é tão ou mais incisivo. Segundo projeta, a possibilidade de uma recessão instalar-se nos EUA até o fim do ano subiu de 50% para 70%. Em tom irônico, Roubini afirma que tanto o Fed como os investidores insistem em desconsiderar a realidade e se apegam a quatro “contos de fada”. O primeiro seria a crença de que a economia americana vai continuar crescendo a uma taxa entre 3% e 3,5% ao ano. Os dados sobre o mercado de trabalho desautorizariam tal previsão. O segundo conto asseguraria que, mesmo em cenário recessivo, o Fed teria como arma cortar os juros, o que revitalizaria a atividade. A história, segundo Roubini, mostra que não são tão automáticas as respostas da economia a movimentos de política monetária. Inseguros, os empresários sempre esperam por momentos de maior clareza para tomar as suas decisões de investimentos.



A terceira ilusão seria uma mudança no eixo de poder econômico-financeiro dos Estados Unidos para a Ásia, Europa e para os mercados emergentes, notadamente a China. Para o economista, seria simplório acreditar que os efeitos de uma recessão da maior economia do mundo possam ser assim tão diluídos e acomodados a curto prazo. Por fim, acredita-se que não haveria uma fuga desordenada do dólar. Tal conto de fadas não resistiria ao fato de que o mundo – em especial as economias asiáticas – mostra cada vez menos disposição de financiar os déficits gêmeos americanos (em conta corrente e fiscal, de 726 bilhões e 318 bilhões de dólares, respectivamente, em 2005).



Até mesmo conhecidos republicanos, como Paul Craig Roberts, ex-secretário-assistente do Tesouro no governo Ronald Reagan, abriram fogo contra o suposto descaso de George W. Bush com o mercado de trabalho local. Segundo escreveu Craig no site www.counterpunch.org, no ritmo atual, os EUA tendem a se tornar um país de Terceiro Mundo em 20 anos. Em seu entender, o rápido processo de deslocalização da indústria para a Ásia (o chamado offshoring) resultou na criação de apenas 2,059 milhões de empregos nos últimos cinco anos, muito aquém dos 9 milhões necessários somente para compensar o crescimento populacional do país no período.



A se confirmar o quadro de estagnação nos Estados Unidos, a economia brasileira sofreria bastante. De imediato, haveria uma retração das importações americanas de produtos brasileiros. Os EUA são o maior destino individual das vendas externas do Brasil, com 18% de participação no total. Trocar de mercado da noite para o dia não é tarefa fácil no circuito internacional.



Mas os riscos não se esgotam na corrente comercial. Ainda tendo em mente o quadro recessivo, haveria uma tendência à aversão ao risco e o estrangulamento da liquidez global. O real tenderia a se desvalorizar, com fuga de investidores para portos mais seguros. O risco-Brasil subiria. Como sempre, o prejuízo sobraria para os países emergentes, com vulnerabilidades. A maior brecha brasileira é a dívida interna, que monta 1 trilhão de reais e metade dos quais vence até o final de 2007. Refinanciá-la hoje já exige malabarismos do Tesouro Nacional. Novamente, o mundo pode estar diante de um novo ciclo depressivo. O ambiente econômico internacional não deve ser promissor para o próximo presidente da República.